A raiz do mal!

Publicado por: Milu  :  Categoria: A raiz do mal!, SOCIEDADE

 

“Não se pode, por isso, infligir a uma mulher adúltera o cilício, nem muitas vigílias, nem o jejum porque o homem poderia suspeitar de adultério se a vir fazer semelhante penitência. E, por outro lado, o corpo da mulher está de tal modo em poder do marido que não  se pode enfraquecê-lo sem o consentimento deste. Pelo contrário, ela deve alimentar e cuidar do seu corpo para que este esteja apto a ser utilizado pelo homem […]”. 

 

Tomás de Chobham in Pilosu (1995:  102)

A respeito do post de hoje, pouco tenho a acrescentar. É ler e reflectir. Apetece-me dizer que aqui estão alguns dos pais do pecado e dos interditos e, sobretudo dos carrascos das mulheres. Ajuda a compreender como foi possível durante séculos manter a mulher num estado de submissão, de inferioridade…

Em breve farei um outro post com algumas perguntas que era suposto fazer às mulheres durante a confissão… que coisa mais miserável… é certo que vivemos um outro tempo, não posso alhear-me desse facto. Não é correcto criticar factos passados com o olhar actual. As gerações futuras também se irão admirar com o nosso “modus vivendi”.  Criticar-nos por deixarmos que certas coisas tivessem acontecido, aliás, que estão ainda a acontecer. Por outro lado, também é certo que a Igreja, se pudesse, continuaria a agir como se estivéssemos na Idade Média. É que de vez em quando surpreendemos-lhe uma fraqueza, um tique do passado.

Mas vamos a factos, eis George Duby, historiador e especialista na Idade Média:

“Estêvão de Fougères foi capelão de Henrique Plantageneta, um dos padres que procediam às liturgias na casa real. Tão bem serviu o seu poderoso senhor que se tornou, em 1168, bispo de Rennes. (…). Para guiar os homens no sentido do bem, e muito especialmente os homens da Igreja a quem era imposta a castidade e que era necessário encorajar a luta contra os seus apetites, escreveu em latim vidas de santos, em particular a de Guilherme Firmat, exemplo da renúncia às alegrias do corpo. (…). Para Estêvão, a mulher é portadora do mal. É o que repete vigorosamente no «Livre des manières», redigido entre 1174 e 1178″ (Duby, 1996: 11-12).

“Este longo poema – trezentas e trinta e seis estrofes, mil trezentos e quarenta e quatro versos – é, sob uma forma aprazível, um sermão, ou melhor, uma colecção de seis sermões, cada um deles dedicado a uma categoria social, sublinhando os seus defeitos específicos e propondo-lhe um modelo de conduta. (…).

(…) o autor falou dos dominantes, os  reis, os clérigos, os cavaleiros. Passa a seguir aos dominados, os camponeses, os burgueses e por fim as mulheres.  Pela primeira vez no que hoje resta da literatura em língua profana, as mulheres são mostradas como constituintes de uma «ordo» dotada da sua moral própria e sujeita às suas próprias fraquezas. Estas são aqui denunciadas com aspereza e brio” (Duby, 1996: 12-13).

“Estêvão nada inventou, limitou-se a multiplicar os termos brejeiros que dão força ao seu discurso virulento. Com efeito, espraiou-se numa ampla, numa muito antiga corrente de ditos misóginos. (…).

(…) foi beber directamente a duas obras que tinha à mão no armário de livros da residência episcopal. Em primeiro lugar, ao «Livre des dix chapitres», escrito meio século antes por um dos  seus predecessores na sé de Rennes, Marbodo. Este ao tratar «Da Prostituta», assentara em oitenta versos forjados vigorosamente um contorno assustador da mulher (Duby, 1996: 17-18).

Um bispo, Burchardo de Worms, elaborou a obra intitulada «Decretum» que

“consiste em um tratado austero, um manual prático de administração, uma «colectânea canónica», como dizem os eruditos” . Com efeito, mostra onde está o direito reunindo, classificando os «cânones», as decisões tomadas ao longo da história nos concílios, nas assembleias de bispos, e as prescrições contidas nesses livros chamados «penitenciários», porque indicavam, para cada pecado, a pena que haveria de resgatá-lo. Há décadas que se compunham inventários desses. Ajudavam os chefes da Igreja a desempenhar uma das suas principais funções: julgar, definir, baseando-se na autoridade dos seus antecessores,  as infracções a fim de as reprimir e, assim, assentar um pouco mais solidamente as regras de uma moral. (…).

Burchardo acumulou  as fichas, ordenou-as convenientemente, elaborou o seu «Decreto» para seu uso pessoal e para o dos seus amigos. Tinha sido monge em Lobbes. Um dos seus antigos mestres, que se tornara abade de Gembloux, bem como o bispo de Espira, deram-lhe uma mãozinha. Quando pensamos nos instrumentos muito fracos que então dispunham os letrados, quanto mais não fosse para fixar as palavras por escrito, a amplitude da obra realizada espanta. O seu rigor, a sua clareza deslumbram.

Impôs-se.

Transcreveram-na por toda a parte nas dioceses do Império e da metade norte da França. Nesta parte da cristandade, todos os bispos se serviram dela durante o século XI e até ao fim do século XII, para buscar o pecado e dosear equitativamente os castigos redentores. (…). Dos vinte livros  que o compõem, os cinco primeiros tratam do clero e dos sacramentos (…). Vem a seguir um catálogo exaustivo dos pecados que há para extirpar punindo-os conforme a sua gravidade” (Duby, 1996: 18-20).

“Com efeito, no século XII as modalidades de administração do sacramento da penitência iam sendo lentamente elaboradas. Os padres tinham que ajudar os pecadores a purgar-se inteiramente, portanto, submetê-los ao questionário, forçá-los à confissão. Assim que o penitente começava a reconhecer os seus pecados, seria bom atiçar nele a vergonha” (Duby, 1996: 21).

“Também Burchardo dispunha de um modelo. Cem anos antes, na mesma região, Reginon, antes abade de Prüm, então abade de Saint-Martin de Trier, tinha, a pedido do bispo de Ratbodo, que exigia ser guiado nas suas visitas pastorais através da diocese e nas sessões do tribunal episcopal, escrito dois livros, «Das causas gerais e Da disciplina eclesiástica». No segundo figura um questionário, um interrogatório sobre o pecado. Burchardo achou-o de tal modo precioso que o transcreveu integralmente no início do Decretum, na parte consagrada aos poderes do bispo. Aqui, porém, as perguntas são formuladas de um modo diferente. Não pelo padre ao pecador arrependido, mas pelo bispo a sete homens escolhidos em cada paróquia, sete jurados «maduros, de bons costumes e verídicos». Ficam de pé diante do prelado. Este admoesta-os: «Não ides prestar juramento diante de um homem mas diante  de Deus, vosso criador […]. Cuidai de nada esconder, de não serdes condenados pelo pecado dos outros.»”

“O pecado dos outros, na verdade, não o seu.”

“Não  se pretende que vasculhem a sua consciência e confessem as fraquezas próprias. Devem revelar tudo o que sabem, o que viram, ouviram dos pecados cometidos em seu redor, na comunidade popular. O bispo passa a interrogá-los: «Há nesta paróquia um homicida? Um parricida? […] Não há quem tenha ousado cantar junto da Igreja canções dessas que fazem rir?» Sucedem-se assim oitenta e nove perguntas que vão, também elas, dos crimes mais patentes, os crimes de sangue que maculam toda a população, aos delitos sexuais muito íntimos e aos mínimos gestos de desrespeito para com o sagrado. Trata-se de um processo «inquisito» como os que o poder público instaurava periodicamente para restabelecer, para manter a paz.

É um documento que revela os primeiros avanços de um movimento que teve grandes consequências para a história da nossa cultura. Vemos no início do século X a ala activa da Igreja aperfeiçoar os seus processos de controlo e de dominação.

Vemo-la infiltrar-se, insinuar-se no seio do povo fiel por intermédio de emissários ajuramentados, encarregados, sem levar em conta  «nem amor, nem temor, reconhecimento ou afeição familiar», de detectarem, com olhos abertos, ouvidos à escuta, os menores indícios do que ela define como pecado. Vemo-la apertar assim com uma boa volta de parafuso a sua presa sobre a conduta dos leigos. 

É um primeiro passo.

Um século mais tarde, no tempo de Burchardo, a ferramenta aperfeiçoa-se consideravelmente. O padre passa a manter o diálogo, olhos nos olhos, confidencialmente, com o paroquiano.

O bispo delegou nele o seu poder de vigiar e punir, recomendando-lhe que «use de grande discrição, distinga entre aquele que pecou publicamente e fez penitência pública e aquele que publicou secretamente e confessa por si». A Igreja passa a estar à altura de regulamentar as coisas mais íntimas. Mergulhando o olhar muito além do que os inquiridores do século X estavam em posição de descobrir, toma sob a sua alçada gestos e pensamentos que ninguém antes tinha por culposos e que, nomeando-os descrevendo-os, transforma em delitos, alargando assim indefinidamente o campo da ansiedade, desse medo do inferno que leva a que as pessoas se inclinem diante dela” (Duby, 1996: 21-23).

 

Bibliografia

DUBY, Georges. (1996). As Damas do Séc. XII. Eva e os Padres. Teorema. 3º volume. Lisboa.

PILOSU, Mario. (1995). A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Editorial Estampa. Lisboa.

 

 

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