A ousadia da transformação

Publicado por: Milu  :  Categoria: A ousadia da..., PARA PENSAR

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“Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e pensei o quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro.”

Virginia Woolf

“Mabel Burin pergunta-se se as mulheres podem, realmente, ter outros desejos que não os propostos pela cultura dominante; interroga-se também sobre o custo emocional a pagar pelas mulheres que alimentam outros desejos que não são os socialmente prescritos. No desejo de viver para o outro e em cumprimento do seu papel (ou para representar o seu papel), foram treinadas na abnegação, na entrega e no sacrifício, em detrimento de atitudes de iniciativa. O que as mulheres «devem desejar» é esboçado insistentemente nos mitos, na literatura, na publicidade, nas mensagens televisivas e no cinema. Mas, significantemente, nessa nómina de desejos, que inclui os já consabidos, não figuram – ou não figuravam até há pouco tempo – a autonomia económica, os espaços sociais para a mulher na esfera pública ou as possibilidades de desenvolvimento pessoal.

Não é fácil encontrar na história mulheres que definam estes desejos. No início da revolução romântica, Olympe de Gouges declarava:

«Mulher desperta: o toque a rebate da razão faz-se ouvir em todo o universo. Reconhece os teus direitos».

À sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã seguiu-se a Defesa dos Direitos da Mulher, de Mary Wollstonecraft.

(…)

As palavras de Mme. de Staël exprimem fielmente as aspirações femininas para além das petições igualitárias: «Tudo quanto tende a comprimir as nossas faculdades é sempre uma doutrina aviltante; há que dirigi-las para o objectivo sublime da existência, o aperfeiçoamento moral; mas não é através do suicídio deste ou daquele poder da nossa era que nos tornaremos capazes de nos elevar a essa meta: sobram-nos meios para nos aproximarmos dela».

Para além de uma justa petição de direitos, as românticas reclamam liberdade moral. Por seu turno; Charlotte Brontë – tal como as suas irmãs – exprime do seguinte modo a necessidade de enfrentar a vida em plenitude:

«Lembrei-me de que o mundo real era grande e que, aos que tinham a coragem de se lançar nele em busca da vida verdadeira, oferecia uma vasta gama de esperanças e temores, de sensações e emoções no meio dos seus perigos.»

A importância de uma consciência de mulher, definida e clara, conhecedora dos entraves, mas também das possibilidades: «Que pretendo eu?[…] É isto que quero, porque é inútil querer algo melhor» (Jane Eyre). Sem liberdade moral – como a que nos propõem as românticas -, o progresso no trabalho, os espaços sociais e públicos ou o desenvolvimento pessoal não passam de «cedências compassivas» de um estado de coisas inalterado.

Quais os desejos que as mulheres calam?

Ao formular esta pergunta, Burin responde que são todos os que questionam a realidade das mulheres – tristeza, angústia, hostilidade – e também os desejos de autonomia, de fruição sexual, de prazer, de saber, ou seja, todos os desejos ligados ao ser para si.

Adiar os desejos ou renunciar a eles leva à insatisfação, à frustração e, até, à violência. Da repulsa passamos ao sentimento de culpa. 

A história das renúncias femininas é também a história da frustração, da insatisfação e das atitudes extremas. Vejamos um exemplo clássico:

Nora – a personagem de Ibsen em Casa da Boneca – renunciou a tudo, e em especial a si própria, para salvar o marido, Helmer, e salvar aquilo que entendia ser o seu lar: um reduto para se dedicar ao homem e aos filhos. A resposta são censuras e humilhações. «Fostes injustos comigo», diz Nora. E mais adiante: «Quando estava em casa do meu pai, ele expunha-me as suas ideias e eu partilhava delas; se tinha as minhas próprias ideias, ocultava-as, pois não lhe teriam agradado. Chamava-me a sua bonequinha e brincava comigo como eu brincava com as minhas bonecas. Depois vim para tua casa…» As acusações são explícitas e cortantes: «Das mãos do papá passei para as tuas. Dispunhas de tudo a teu bel-prazer, e eu participava nisso, ou fingia que participava: não sei ao certo, talvez uma coisa e outra, meio por meio […] Vivi das piruetas que fazia para te divertir. Por isso te satisfazia. Tu e o papá foram culpados em relação a mim. Cabe-vos a responsabilidade de eu não servir para nada.»

A decisão de Nora é abandonar o ambiente familiar: marido e filhos. Na verdade é mais do que isso: Nora fala de si reportando-se a necessidades mais importantes: «Acho que antes e mais sou um ser humano, como tu…, ou, pelo menos, devo tentar sê-lo. Sei que a maioria dos homens te daria razão, e que são ideias como as vossas que vêm nos livros. Mas já não posso deter-me a pensar no que dizem os homens, nem no que vem nos livros. Preciso de ter opinião própria sobre o assunto e de tentar compreender as coisas» (Casa da Boneca, de Henrik Ibsen).

O conflito ocorre quando os desejos da mulher são impostos e, por conseguinte, fictícios. Mais próximo, se possível, está August Sdrindberg, ainda que, para mim, menos «modelar» do que Ibsen. Em  A Menina Júlia, o autor sueco apresenta a história de uma mulher cujos desejos são considerados impossíveis: liberdade para ser ela própria, liberdade para se fazer a si mesma, liberdade para expressar as suas emoções:

«Foi ele [o pai] que me educou no desprezo pelo meu próprio sexo, meio homem, meio mulher! De quem é a culpa do que aconteceu? Do meu pai? Da minha mãe? Minha? Acaso tenho eu alguma coisa que seja minha? Nem sequer tenho um pensamento que não tenha recebido da minha mãe.» No fim, Júlia põe termo à vida, incapaz de suportar o sentimento de culpa e, sobretudo, incapaz de enfrentar uma situação de pressão intolerável: «De quem é a culpa?…E que importância tem isso? No fim de contas, sou eu que tenho de arrastar com ela e com as consequências.»

A incapacidade ou a proibição de dar vazão aos desejos pode desembocar em violência. As mulheres têm o hábito de virarem uma boa parte dessa violência contra si (é o caso do conhecido recurso moderno aos fármacos, à automedicação; os modelos antigos convidavam ao suicídio, como vimos). À possível ou temida sanção social junta-se a sanção interna, feita de intensos sentimentos de culpa com que costumam punir-se quando tentam romper com os padrões convencionais que regem as suas vidas. Na opinião de algumas terapeutas, o reconhecimento e a expressão da hostilidade para consigo, além de porem em causa a sua realidade, expunham-nas a uma forma de sanção social, o serem consideradas nervosas ou histéricas, com a carga de zombaria que, por vezes, acompanha esses qualificativos. Segundo Burin, a hostilidade pode ser um recurso vital se, em vez de a usarmos para nos molestarmos, fizermos dela um desejo de transformação.

Também acontece que nos envergonhamos de alguns desejos, como o de ser protegida, de mostrar «fraqueza»: pedir ajuda chega a parecer-nos humilhante, devido ao esforço que precisamos de fazer para seguir a pauta que nos manda ser fortes numa concepção errada. O medo de não ser fraca não é contraditório, embora à primeira vista pareça. Os sentimentos associados ao feminino utilizam-se para reforçar a humilhação; as ameaças provêm dos outros, são eles que nos fazem sentir vulneráveis.

A concepção da mulher como produtora de situações de harmonia revela-se uma missão impossível e a fantasia leva-nos à frustração. A eterna disponibilidade faz com que nos sintamos invadidas e que desejemos ter o nosso próprio espaço vital e mental, um quarto nosso, para voltar a citar Virginia Woolf.

No entanto, os tempos estão a mudar. Vimos atrás que a mulher de hoje é um sujeito em transição e, por isso, está exposta a transformações da sua objectividade que podem exigir um elevado custo psíquico, dada a necessidade de constante aprendizagem. Ana M. Fernández assinala que as mudanças mais importantes que as mulheres têm de enfrentar, neste período de transformação do seu lugar social, levam-nas do ser para os outros ao ser para si, da passividade à actividade no terreno sexual, de um código privado a um código público…

A partir do socialmente condicionado, as mulheres propõem-se o desejável no interior do já instituído, mas, ao mesmo tempo, surgem outros desejos que dão novas significações ao ser mulher. É preciso que estes anseios se tornem efectivos através de novas representações e de novas práticas femininas que legitime a sua maneira de viver e a percepção do próprio corpo. Necessitamos de tempo e de espaço psíquico para termos oportunidade de nos ligar aos nossos desejos.

Mas, se agirmos de acordo com os nossos desejos emergentes, distinguimo-nos, lê-se em Agridulce; se ousarmos separar-nos psicologicamente, rompemos fileiras. Quebramos o conhecido, o laço de fusão, soltando-nos, singularizando-nos e, talvez também, mostrando-nos possuidoras de projectos e ambições próprias, algo muito temido pela ordem masculina.

Para concluir, recorremos a Marcela Lagarde: precisamos de aprender a ler os nossos actos para saber dar-lhes prioridade e averiguar qual a nossa potência real, tangível. A liberdade começa no poder de distinguir os desejos destrutivos dos desejos criativos.”

 

Bibliografia

 

ALBORCH, Carmen. (2004). Mulheres Contra Mulheres. Rivalidades e Cumplicidades. Editorial Presença. Barcarena. pp. 111- 115.

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