A mudança que tarda…
“Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos.”
Mia Couto
E porque entendo que é importante questionarmos o estabelecido, eis mais um artigo esclarecedor, que ajuda a compreender o quanto é urgente mudar mentalidades. Depois, também, porque a actualização dos conhecimentos é uma necessidade que se impõe.
“OUTRA PRÁTICA PEDAGÓGICA É POSSÍVEL E É LIBERTÁRIA”
“Para que a educação autónoma se dê de forma crítica e participativa é preciso que haja coragem para desafiar e desconstruir algo que já está imposto e que é tratado com naturalidade.
Desconstruir este discurso dominante que tanto molda pensamentos e ações, dando assim a oportunidade e possibilidade de educadores e educandos construírem juntos os discursos que condiz e satisfaz suas necessidades reais.
É preciso questionar o atual modelo a fim de transformá-lo em algo que de fato supra uma das maiores necessidades da educação hoje, que cada criança/adolescente se torne o principal autor de sua história, participando criticamente na produção de seus conhecimentos. Porém também se torna necessário que o professor auxilie a criança neste processo, não de uma maneira condutora, mas sim demonstrando as diversas possibilidades de se resolver um problema, deixando que a própria acerte ou erre em sua escolha e que a partir dessa experiência construa um pensamento crítico e significativo sobre o que acabou de vivenciar.
A cultura especializada da escola não pode se afastar da cultura social de suas crianças, senão assim a impossibilitará de saber como reagir aos problemas que a vida a impõe. Não se pode esquecer que a educação já existia antes mesmo da escola, portanto é preciso tomar cuidado para que essa educação escolar não esteja apenas a serviço de uma ideologia dominante a fim de normatizar pensamentos e comportamentos.
A participação ativa se torna algo muito significativo na vida de seus educandos, fazendo com que se sintam parte atuante de um dos processos mais importantes das suas vidas. Deve-se decidir por uma pedagogia política e ética, pensando em sua relação com o outro, saber que o conhecimento é socialmente construído em relação ao outro.
Sem objetivos predeterminados, explorar outras formas de pensar e de atribuir significações ao mundo, atribuindo um significado importante à subjetividade, sendo o aprendizado um processo ativo e não uma transmissão pré-moldada do conhecimento. Todos são parte do contexto, observando e interpretando o mundo, somos constituídos pela linguagem, logo, não podemos viver fora dela.
A construção da linguagem nos leva a um mundo criado a partir da coexistência com o outro e faz surgir aquilo que é humano.
Na Itália há um belo exemplo da possibilidade, onde outro conceito de educação surge da necessidade social de transformar sua realidade. Em Reggio Emilia é adotada a «pedagogia da escuta» que contesta a ideia de educação como transmissão e reprodução, o processo de documentação pedagógica propicia meios para a participação democrática na discussão e na avaliação da prática pedagógica, assim o significado de escola requer uma atenção democrática.
A escola deve ser um lugar de prática ética e política e em Reggio isso é reafirmado através da pedagogia da escuta que requer que o educador pense no outro como alguém que ele não pode aprisionar. A pedagogia do escutar dá seus ouvidos a ideias, pensamentos, questionamentos de crianças e adultos, é o esforço para se extrair sentido daquilo que é dito, sem noções preconcebidas, sobre o que é certo ou apropriado.
Reggio busca aspiração em seus fundadores, que as experiências no fascismo ensinou a eles que as pessoas se tornam perigosas a aceitarem tudo o que lhes é imposto sem questionamento, e para garantir a construção de uma nova sociedade essa lição teria de ser transmitida, para assim preservar a visão de que as crianças podem e devem pensar e agir por si. Logo, ética e política caminham juntas em uma educação que rejeita vínculos regulatórios e uma educação como transmissão de normatização.
Para a mudança de fato acontecer em nossas escolas quais seriam os limites e as possibilidades de novas práticas educacionais que formam para a participação e criticidade de nossas crianças, uma nova proposta pedagógica deveria ser estudada, para que as crianças de hoje se tornem adultos críticos e capazes de transformarem/melhorarem sua realidade.
As contribuições teóricas, e até mesmo práticas, da educação libertária foram esquecidas ao longo da história de nossa pedagogia oficial. Pouco se falava, e pouco se encontrava por escrito até poucas décadas atrás, sempre houve rejeição desta prática pedagógica por parte de nossas instituições de ensino que faz uso de uma pedagogia do adestramento.
A pedagogia libertária segue a linha política e filosófica da educação como um meio para a transformação da sociedade, é oposta a uma educação que seja meramente para a reprodução, estando assim próxima à prática que acontece na região de Réggio Emilia na Itália, os pensadores anarquistas ao falar e experimentar outras relações, não concluíram nada de diferente do que surge na Itália pós-fascismo. O anarquismo vê na educação um papel estratégico para a transformação da ordem capitalista e a formação de uma nova ordem social. A preocupação maior dessa pedagogia é formar homens livres e conscientes, capazes de transformar a sociedade.
A educação contemporânea é defensora da escola pública, porém isso se tornou uma preocupação de muitos educadores libertários, já que essa defesa é recente em nossa história, nascendo junto com as Revoluções Burguesas, o que para eles transparece querer transformar os «súditos» em «cidadãos», operando as transformações políticas para as sociedades contemporâneas através de uma educação única, alimentando um sentimento de identidade nacional fortalecendo assim a constituição do Estado-Nação.
Os educadores libertários não acreditam e não aceitam essa forma de educação, para eles o Estado se utilizará desse veículo de formação/informação para disseminar as visões sócio-políticas de seu interesse, sendo assim uma educação revolucionária só pode se dar fora do contexto do Estado. Sua proposta é de que a própria sociedade organize seu sistema de ensino, na construção de um ensino que seja o reflexo de seus desejos e interesses, pensando em conjunto em como aplicar seus recursos. Autogestão e apoio mútuo para eles é o caminho para a construção de uma sociedade mais solidária e preocupada com o bem comum. A educação libertária se fundamenta no conceito de educação integral, ou seja, no desenvolvimento mais profundo, independentemente de sua origem de nascimento, de todas as suas faculdades físicas e intelectuais, e se conceitua também no envolvimento de todas as partes, família, escola e comunidade, a educação integral deve estar integrada a todas as esferas que possa atingir. Em Reggio Emilia e na Escola da Ponte, há esta preocupação de uma educação integral, são escolas que nascem de uma necessidade social, com uma educação para a transformação.
Os primeiros movimentos educacionais libertários na história do Brasil ocorreram em meados da década de 1920, e se espelhavam no movimento educacional que ocorria na mesma época em outros países, principalmente na Espanha, lugar que Ferrer y Guardia sistematizava as bases da educação anarquista em sua Escola Moderna, essas novas práticas tinham como base «o respeito à liberdade, à individualidade, à expressão da criança, reorganizando o fazer pedagógico imprimindo-lhe autêntica função revolucionária» (Kassick).
As contribuições do geógrafo anarquista francês Élisee Reclus (1830-1905) à pedagogia libertária demonstra sua enorme preocupação e rejeição ao autoritarismo escolar laico e religioso de seu tempo, sempre denunciando o perigo da especialização excessiva. Em sua obra «O Homem e a Terra», insiste na importância da brincadeira, da educação, do apoio mútuo mestres e alunos (Antony, 2011). Reclus foi, e é, um grande pedagogo de sua época, e para todos que hoje estudam a pedagogia libertária, seus escritos contribuem para novas práticas pedagógicas, e Reclus não foi apenas um teórico, mas também um praticante desta outra possibilidade pedagógica.
As contribuições teóricas. e até mesmo práticas, são inúmeras, tanto em âmbito nacional quanto em âmbito internacional. É importante evidenciar que a preocupação por parte dos teóricos libertários pela educação não se inicia neste século, e sim há dois séculos. Estes estudiosos sempre enxergaram na educação o principal caminho para a transformação social por sujeitos autónomos, e essa transformação só pode ser alcançada fora de uma educação hegemónica.
Através da mudança e de um querer mudar, é possível pensar em outras práticas pedagógicas, que fujam desta normalização imposta pela política neoliberal, e que com bases em valores libertários e democráticos, participação ativa nas decisões, atuação frente às necessidades, comprometimento e responsabilidade com o seu destino e a prática da liberdade e da autonomia dos educandos, é possível a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Serão os sujeitos da sua própria história.
Conceito de Educação Autónoma:
“Educação Autónoma: Para Adorno, filósofo alemão, a crise da Educação é, na verdade, a crise da formação cultural da sociedade capitalista como um todo. Na opinião dele, o problema da Educação está no fato de ela se ter afastado do seu objectivo essencial, que é promover o domínio pleno do conhecimento e a capacidade de reflexão. A escola se transformou em simples instrumento a serviço da indústria cultural, que trata o ensino como uma mera mercadoria pedagógica em prol da «semiformação». Essa perda de valores, segundo o autor, anula o desenvolvimento da autorreflexão e da autonomia humana. Adorno critica a escola de massa por ela, segundo ele, instalar e cultuar a massificação. O resultado disso é a deformação da consciência.”
Ponto de vista:
“Educação é um componente de bem estar e é usado na medida de desenvolvimento económico e qualidade de vida, que é um fator fundamental para determinar se o país é desenvolvido, em desenvolvimento ou subdesenvolvido. Entende-se que a educação, sob a perspetiva de direitos, deve estar acessível (gratuita para todas as pessoas sem discriminação), disponível (instituições de ensino em número suficiente e apropriadas), ser aceitável (adequada e relevante de acordo com os instrumentos de direitos humanos) e adaptável (capaz de ajustar-se às demandas da comunidade educativa) a todos os seres humanos igualmente sujeitos desse direito. Nesse sentido o Estado é o garantidor central desse direito e deve ser responsável pela sua oferta universal e gratuita.”
Referência:
“Anarquia significa ausência de coerção e não a ausência de ordem. A noção equivocada de que anarquia é sinónimo de caos se popularizou entre o fim do séc. XIX e o início do séc. XX, difundida pelos meios de comunicação e de propaganda patronais, mantidos por instituições políticas e religiosas. Nesse período, em razão do grau elevado de organização dos segmentos operários, de fundo libertário, surgiram inúmeras campanhas antianarquistas. Outro equívoco banal é se considerar anarquia como sendo a ausência de laços de solidariedade (indiferença) entre os homens, quando na realidade, um dos laços mais valorizados pelos anarquistas é o auxílio mútuo. À ausência de ordem – ideia externa aos princípios anarquistas dá-se o nome de «anomia».”
Por Dentro:
“Educação Libertária: – Podem-se definir três grupos de entendimento da educação na sociedade: educação como redenção, educação como reprodução e educação como transformação. A pedagogia libertária, assim como as demais pedagogias progressistas, segue a tendência filosófica-política da educação como transformação da sociedade. A pedagogia libertária espera que a escola exerça uma transformação na personalidade dos alunos, num sentido libertário e auto gestor em que ela o institui, com base na participação dos grupos, mecanismos institucionais de mudança, através de assembleias, conselhos, eleições, reuniões e associações.”
Bibliografia
SILVA, Núbia. (n.d). Outra Prática Pedagógica é Possível e Libertária. Revista Conhecimento Prático – Literatura. Editora Escala. nº 61. pp. 20-23.
site – www.escala.com.br