A morte do príncipe encantado

Publicado por: Milu  :  Categoria: A morte do príncipe..., FEMINISMO

 

“Viver é isso: Ficar-se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências.”

 Sartre

 

Na saga de tentar compreender o mundo que me rodeia, os jugos a que somos submetidos (as), eis mais um excerto de um livro que me ajudou a esclarecer algumas das minhas antigas interrogações. Com Colette Dowling  no seu “Complexo de Cinderela”, porque tudo tem uma origem, uma explicação. Muito importante: Aconselho vivamente a que leiam o trecho que se encontra no fundo do post, logo após as referências bibliográficas.

 

Estou só no terceiro andar de nossa casa, de cama, em razão de uma forte gripe, tentando evitar que a doença passe aos outros. Sinto o quarto grande e frio e, com o correr das horas, estranhamente inóspito. Começo a recordar a rapariguinha pequena, vulnerável e indefesa que fui. Ao cair da noite já me sinto imprestável, não tanto pela gripe quanto pela ansiedade. “O que estou fazendo aqui, tão solitária, tão distanciada dos outros, tão… incerta”, pergunto a mim mesma. Que coisa estranha ver-me tão perturbada, afastada de meus familiares e de minha vida tão ocupada e frenética… desligada…” (Dowling, 1982: 11).

O fluxo de pensamentos se interrompe e reconheço: eu «sempre» estou só. Cá está, sem aviso prévio, a verdade ignorada às custas de tanto dispêndio de energia.”

(…)

Desde aqueles dias passados na cama, aprendi que há muitas mulheres como eu, milhares e milhares de nós, criadas de um modo tal que nos impossibilita encarar a realidade adulta de que toca a nós, apenas, a responsabilidade por nós mesmas. Podemos até verbalizar essa ideia mas, no íntimo, não a aceitamos. Tudo na forma de sermos educadas continha a mensagem de que seríamos parte de alguma outra pessoa – que seríamos protegidas, sustentadas, alimentadas pela felicidade conjugal até o dia da nossa morte.

É claro que, uma a uma, descobrimos – cada uma de nós com os instrumentos respectivos – a mentira dessa promessa. Porém, foi apenas nos anos 70 que se deu uma modificação no cenário cultural, e as mulheres passaram a ser vistas, concebidas e tratadas de modo diferente. As expectativas em relação a nós mudaram. Foi-nos dito que os nossos velhos sonhos de infância eram débeis e ignóbeis, e que existiam coisas melhores a ambicionar: dinheiro, poder e a mais ilusória das condições, a liberdade. A capacidade de escolhermos o que faríamos das nossas vidas, como pensaríamos e a que daríamos importância. Liberdade é melhor que segurança, diziam-nos; a segurança aleija.

Logo descobrimos, contudo, que a liberdade assusta.

Ela nos apresenta possibilidades para as quais não nos sentimos equipadas: promoções, responsabilidade, oportunidades de viajarmos sozinhas sem homens a nos conduzirem, oportunidades de fazermos amigos por nossa conta. Todo o tipo de perspectivas rapidamente abriu-se às mulheres; juntamente com isso, porém, vieram novas exigências: que cresçamos e paremos de esconder-nos sob o manto paternalista daquele que escolhemos para representar o ente “mais forte”; que comecemos a basear nossas decisões em nosso próprios valores, e não nos de nossos maridos, pais ou professores. A liberdade requer que nos tornemos autênticas e fiéis para connosco. Aqui é que surge a dificuldade, repentinamente, quando não mais basta sermos «uma boa esposa», ou «uma boa filha», ou «uma boa aluna».

Pois ao iniciarmos o processo de separar de nós as figuras de autoridade a fim de nos tornarmos autónomas, descobrimos que os valores que julgávamos serem nossos não o são.

Pertencem a outrem – a pessoas de um passado vivo e demais abrangente. Por fim a hora da verdade emerge: «Realmente não tenho quaisquer convicções próprias. Realmente não sei no que acredito».

Esta experiência pode ser bem ameaçadora. Tudo o de que tínhamos certeza parece desmoronar tal como uma avalanche, enchendo-nos de incerteza em relação a tudo – e aterrorizando-nos. Esta atordoante perda de estruturas de apoio antiquadas – crenças em que nem mesmo cremos mais – pode marcar o início da verdadeira liberdade. Mas seu carácter assustador pode fazer-nos recuar para o conhecido, o familiar, aparentemente tão seguro.

Por que é que, tendo a chance de crescer, tendemos a recuar? Porque as mulheres não estão acostumadas a enfrentar o medo e ultrapassá-lo. Fomos sempre encorajadas a evitar qualquer coisa que nos amedronte; desde pequenas fomos ensinadas a só fazer as coisas que nos permitissem sentirmo-nos seguras e protegidas. O facto é que não fomos jamais treinadas para a liberdade, mas sim para o seu oposto: a dependência” (Dowling, 1982: 11-12).

(…)

Ocorre que, como veremos, desde pequenas as mulheres são incentivadas a uma dependência doentia. Qualquer mulher que se auto-analise sabe quão destreinada foi para sentir-se confiante perante a ideia de cuidar de si própria, afirmar-se como pessoa e defender-se. Na melhor das hipóteses, pode ter representado o papel de independente, intimamente invejando os meninos (e posteriormente os homens) por parecerem tão naturalmente auto-suficientes.

A auto-suficiência não é um bem agraciado aos homens pela natureza; ela é um produto de aprendizagem e treino.

Os homens são educados para a independência desde o dia de seu nascimento.

De modo igualmente sistemático , as mulheres são ensinadas a crer que, algum dia, de algum modo, serão salvas.

Esse é o conto de fadas, a mensagem de vida que ingerimos juntamente com o leite materno.

Podemos aventurar-nos a viver por nossa conta por algum tempo. Podemos sair de casa, trabalhar, viajar; podemos até ganhar muito dinheiro. Subjacente a isso tudo, porém, está o conto de fadas, dizendo: aguente firme, e um dia alguém virá salvá-la da ansiedade causada pela vida. (O único salvador de que o «menino» ouve falar é ele próprio)”(Dowling, 1982: 13)” .

(…)

“Fugindo da Luta”

“Como Simone de Beauvoir observou tão astutamente há mais de um quarto de século, as mulheres aceitam o papel de submissas «para evitar a tensão envolvida na construção de uma existência autêntica»” (Dowling, 1982: 16).

“O Desejo de Salvação”

“Podemos nem sempre reconhecê-lo (…), porém ele existe em todas nós, emergindo quando menos se espera, permeando nossos sonhos, abafando nossas ambições. É possível que o desejo feminino de ser salva tenha as suas raízes nos primórdios da História, quando a força física masculina era necessária para proteger mulheres e crianças de perigos naturais. Mas tal desejo não é mais adequado nem construtivo. Nós não necessitamos ser salvas.

As mulheres hoje se acham entre o fogo cruzado de velhas e radicalmente novas ideias sociais; a verdade porém é que não podemos mais refugiar-nos no antigo «papel». Ele não é funcional, nem uma opção verdadeira. Podemos crer que o seja; podemos desejar que o seja; mas não é. O príncipe encantado desapareceu. O homem das cavernas é hoje menor e mais fraco. Na realidade, em termos do que se requer para a sobrevivência no mundo moderno, ele não é mais forte, mais inteligente ou mais corajoso do que nós.

Todavia, ele «realmente» tem mais experiência” (Dowling, 1982: 22).

“O Complexo de Cinderela”

“Existe somente um instrumento para obtermos a «libertação», e esse é emancipar-nos desde dentro. 

“A tese deste livro é a de que a dependência psicológica – o desejo inconsciente dos  cuidados de outrem – é a força motriz que ainda mantém as mulheres agrilhoadas. Denominei-a «Complexo de Cinderela»: uma rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as mulheres numa espécie de penumbra e impede-as de utilizarem plenamente seus intelectos e criatividade. Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha transformar suas vidas” (Dowling, 1982: 26).

 

Bibliografia

DOWLING, Colette. (1982). Complexo de Cinderela. Melhoramentos. São Paulo. Brasil.

“Em meados da década de 60, Colette Dowling fez uma descoberta chocante. Atacou rápida e violentamente todas as ideias preconcebidas que tinha sobre si mesma. «Achei que o que eu realmente queria era alguém que tomasse conta de mim. Não era apenas uma questão de ter alguém pagando as contas, eu queria protecção emocional por tempo integral. Alguém que amenizasse o choque entre o mundo e eu». Enfrentando esta verdade sobre si mesma, e durante o processo se liberando, a autora continuou a achar que os mesmos desejos permaneciam escondidos no coração de milhões de outras mulheres. 

Complexo de Cinderela aborda um fenómeno que o movimento feminista ainda não tinha confrontado: está profundamente enraizado nas mulheres o desejo psicológico de serem cuidadas por alguém, de serem aliviadas de suas responsabilidades essenciais para consigo mesmas, de «serem salvas».

O fenómeno «complexo de cinderela» é um sistema de desejos reprimidos, memórias e atitudes distorcidas que se iniciaram na infância, na crença da menina de que sempre haverá uma outra pessoa mais forte a sustentá-la e protegê-la. Esta crença é sempre alimentada e com o tempo ela se solidifica, seguindo a mulher em sua vida adulta e resultando em todas as espécies de medos interiores e descontentamentos. O mais destrutivo para a autora é que essa crença mantém vivo na mulher um sentimento de inferioridade. 

Complexo de Cinderela causará um choque de reconhecimento em todas as mulheres que inconscientemente sempre sabotam seus próprios futuros ou sentem medo de ficar sozinhas. «O medo é que se nós realmente nos mantivermos, terminaremos sem ajuda, perderemos a feminilidade, não amaremos e não seremos amadas». Enfrentar este medo frágil e reagir contra ele, é o que leva à verdadeira independência (texto de apresentação do livro impresso nas badanas da sua respectiva capa e contracapa).

 

 

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