A Misoginia – Calvário das Mulheres
“Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem o seu consentimento.”
Eleanor Roosevelt
Li uma vez que, quando Simone Beauvoir andava mergulhada em bibliotecas, nas suas pesquisas para colher material para o seu livro “O Segundo Sexo”, deu por si com vontade de gritar devido às barbaridades sobre as mulheres que ia lendo, proferidas pelos antigos filósofos. Deixo-vos aqui a prova de que ela, Simone Beauvoir, tinha razão…
A ler:
“A misoginia pode ser definida como uma forma de rancor ou hostilidade às mulheres, que, por vezes, atinge manifestações violentas. Mais um passo, já no terreno do patológico, assiste-se à ginecofobia, que é o ódio às mulheres, inspirado na crença de que são seres perigosos e malignos, a quem se teme e deseja mal, por se achar que são dotados de um poder superior, o qual é entendido como ameaça” (p. 46).
“B. S. Anderson afirma que o ódio e o medo das mulheres estão tão imbricados na cultura ocidental que se tornaram um facto quotidiano, mais do que um conceito psicossocial digno de análise. De Aristóteles a Freud, e até posteriormente, tanto na alta cultura como no saber popular, os estereótipos de denegrimento da mulher encontraram ampla difusão e aceitação” (p. 47).
(…)
“«A imprecação do feminino», como lugar-comum literário em que a misoginia se tinge de sarcasmo e adquire tons burlescos e satíricos, nasce e consolida-se na lírica grega. Na obra de Hesíodo, que inicia a tradição misógina na literatura grega, as mulheres perdem o seu antigo prestígio. O poeta encara a mulher como uma espécie à parte, a «raça das mulheres», que não nasce da terra. Na sua obra, as mulheres provocam a hostilidade pela sua alteridade e pela atracção que exercem; são odiadas por serem seres socialmente improdutivos, embora imprescindíveis para dar descendência aos varões, e temidas porque dotadas de encantos irresistíveis. O poeta apresenta-nos a natureza feminina como maldosa e causadora das desgraças dos seres humanos.
(…)
Hesíodo propõe a seguinte história: Prometeu tinha conseguido fechar todos os males numa ânfora. Foi a curiosidade – defeito tradicionalmente associado à mulher – que impeliu Pandora a abrir o vaso da desgraça. Outra versão admite que o vaso continha todos os bens. Neste caso, os bens voam para o Céu – na primeira tradição, os males espalhavam-se pela Terra -, mas em ambos só a esperança permanece fechada e ao dispor dos mortais.
São estas as duas correntes mais comuns, conhecidas a partir de Hesíodo. No entanto, há uma linha anterior que pode facilitar a compreensão da «imprecação do feminino»: uma primeira versão do mito de Pandora aproxima-se, até, da tradição judaico-cristã. Zeus, zangado com o atrevido Prometeu, decide vingar-se da raça humana e manda modelar uma mulher em argila. Dá ordens para que a sua figura se assemelhe à das deusas. São-lhe atribuídos encantos e beleza, mas Hermes concede-lhe a maldade e a falta de inteligência. Assim se consuma a vingança contra a raça humana: enviando uma mulher para o mundo terreno. Pandora identifica-se com o fim de uma suposta idade de ouro. Por influência dos poemas de Hesíodo, a felicidade perdida e a presença de mulheres ficaram indissoluvelmente ligadas no imaginário da cidade” (p. 51).
“Ésquilo não apresenta as mulheres, no seu conjunto, como um mal e uma fonte de desgraça para os homens: só denigre as que se revoltam contra os homens e querem ir além do papel que a cidade lhes outorgou. (…). Ao passo que Ésquilo continua a traçar uma distinção muito clara entre uma feminilidade positiva e outra negativa, a diferença desvanece-se nas tragédias de Eurípedes. A raça das mulheres deixa de ser representada como a encarnação da alteridade e, nas suas obras, elas são agrupadas num colectivo com características e natureza próprias. As mulheres são vistas numa certa assimetria com os homens. A progressiva atenuação da ginecofobia relaciona-se, provavelmente, com a consolidação dos valores democráticos. Em Eurípedes pressentimos que a mulher tem voz própria – o que não significa que o seu destino final venha a ser alterado. (…) a protagonista de Electra confessa ao irmão, antes do matricídio, que
«é coisa indigna que em casa mande a mulher e não o esposo».
Já era muito ter voz e conhecer a possibilidade de comunicar, pelo que dificilmente se poderia esperar que comunicassem algo diferente do que delas se esperava, social e mitologicamente (…).
Com a comédia de Aristófanes surge a crítica da misoginia. Nota-se nas suas obras uma certa compreensão das mulheres e um sentimento de compaixão pela inferioridade em que a sociedade as colocou. A diferença entre Eurípedes e Aristófanes consiste em que, no teatro do primeiro, as mulheres são representadas como seres perigosos e temíveis, e a invocação da solidariedade feminina costuma acarretar a morte dos homens; já nas comédias de Aristófanes, as mulheres são tudo menos seres pavorosos e repelentes, e a sua tomada do poder é motivo de hilariedade, mais do que de temor. A acção das mulheres sublinha os males existentes ou, então, põe-lhes cobro.
(…) «Para obter dinheiro, a mulher é do mais engenhoso que existe, e estando no governo nunca se deixará aldrabar, pois quem está acostumado a enganar são elas (…)»” (pp. 52-53).
(…)
“Será Platão a reconhecer (para tornar possível o seu projecto político) que as mulheres possuem capacidades iguais às dos homens; mas, embora ache que algumas podem superá-los, continua a considerá-las inferiores, em geral. Segundo Mercedes Madrid, Platão não gosta de mulheres, mas não as despreza, embora abra caminho ao sexismo feroz de Aristóteles, aonde confluem todos os lugares-comus da tradição misógina.
Aristóteles define as fêmeas pela sua inferioridade anatómica e fisiológica, caracteriza-as pela falha e transfere para a totalidade do mundo animal o a priori da inferioridade das mulheres baseada na sua subordinação social. O filósofo grego esteia a excelência masculina na afirmação de que a fêmea é um macho mutilado, estéril, uma malformação da natureza; priva as mulheres de autoridade moral, nega-lhes toda a independência por força da incapacidade de controlarem as emoções e, por conseguinte, submete-as à razão do homem, que se define pela capacidade de mandar (em De generatione animalium). Os encantos irresistíveis das mulheres, que as tornavam temíveis e poderosas, transformam-se em carência, defeito e inferioridade. Deste modo, o temor foi substituído pelo desprezo, a diferença pela inferioridade, a ginecofobia pelo sexismo” (pp. 54-55).
“Na tradição hebraica, a mulher surge como um ser perverso, Criada com o fim de proporcionar felicidade e companhia ao homem, como complemento deste, pecou e levou Adão a pecar, e por isso as suas filhas terão de pagar a sua culpa ao longo de toda a sua existência. Não é que o mal seja inerente à mulher; é que, devido à sua natureza inferior, à fraqueza e incapacidade de prever as consequências das suas acções, foi escolhida pelo inimigo de Jeová. «A serpente enganou-me», diz Eva, ingenuamente (Génesis, 3, 2). No mesmo capítulo, Jeová dirige-se à serpente-demónio, a Adão e Eva. O parlamento de Deus, ou a maldição que dirige à mulher, reduz-se a dois assuntos: parir na dor e ser escrava do homem: «Multiplicarei os sofrimentos da tua gravidez e os teus filhos nascerão. Ansiarás pelo teu marido, mas ele te dominará.» Eva é, pois, um ser culpado e impuro que, pela sua irresponsabilidade, trouxe a desgraça a todo o género humano. Já na nossa era, os pensadores cristãos dos primeiros séculos fundamentaram a inferioridade física e espiritual das mulheres. Até hoje” (pp. 55-56).
“De meados do século XVIII vem-nos outro exemplo, em que se demonstra a incapacidade intelectual feminina através de uma explicação de tipo sociológico:
«A mulher possui um sentimento inato para tudo o que é belo, bonito e enfeitado. Já na infância se comprazem em arranjar-se e os adornos tornam-nas mais atraentes. São limpas e muito delicadas em relação a tudo o que é repugnante. Gostam de gracejos e apreciam uma conversa ligeira, desde que seja alegre e risonha. Cedo adquirem um carácter judicioso, sabem adoptar um ar fino e são donas de si, e isso numa idade em que a nossa juventude masculina educada ainda é rebelde, rude e desajeitada. Mostram um interesse muito afectuoso, bondade natural e compaixão, preferem o belo ao útil…»;
e mais adiante:
«O belo sexo tem tanta inteligência como o sexo masculino, mas é uma inteligência bela, a nossa deve ser uma inteligência profunda.» «A meditação profunda e o exame prolongado são nobres, mas pesados (…). O estudo árduo e a reflexão penosa, ainda que a mulher fosse longe nisso, apagam os méritos peculiares do seu sexo.» Esta demonstração (Immanuel Kant, Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, 1764), não passa de uma recompilação das teorias históricas, neste caso aplicadas à suposta fraqueza intelectual feminina” (p. 56).
“O número de citações misóginas de grandes pensadores é enorme. Do Corão a Rousseau, do Génesis a Santo Agostinho, de Catão a Fichte, de Kant a Nietzsche, de Pitágoras a Lombroso, o que é que muda, afinal? – pergunta-se Franca Basaglia. Quem estiver interessado em rastreá-las pode consultar alguns dicionários, como o Dictionnaire misogyne, de Agnès Michaux (1993) ou La naturale inferiorità delle donne, de Tama Starr, que reúne cinco mil citações misóginas de todos os tempos.
São impressionantes os textos de Moebius sobre a inferioridade natural da mulher (limitamo-nos a citar aqui o expressivo título do seu panfleto Da Fraqueza Mental e Fisiológica da Mulher). Há muitos outros exemplos não tão distantes, nomeadamente em obras que, por outro lado, são brilhantes, como Pigmaleão. É uma prova de como o duplo discurso tem sido abundante, ou melhor, de como algumas afirmações científicas sobre a personalidade e a estrutura psíquica da mulher estão contaminadas por tradições e superstições herdadas, acerca da sua suposta natureza” (p. 57).
Assim, ao longo dos tempos utilizaram-se três grandes argumentos misóginos:
– a inferioridade moral (o paradigma de Eva, mil vezes repetido e reelaborado: curiosidade, fraqueza, luxúria, portadora da maldade e do pecado);
– a inferioridade biológica (fraqueza física, nascida para a procriação e a conservação, etc.);
– a inferioridade intelectual. As exemplificações e demonstrações, de tão frequentes, acabaram por ser consideradas certas e indubitáveis.
Trata-se, afinal, daquela triste carga de desprezo que, no dizer das autoras da História da Misoginia, se foi estendendo como uma tenebrosa mancha de óleo, constituída por mitos, crenças irracionais e tradições nunca postas em causa” (p. 57).
Bibliografia
ALBORCH, Carmen. (2004). Mulheres Contra Mulheres. Editorial Presença. Barcarena. pp. 46-57.