São amêndoas, Senhor!

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, São amêndoas, Senhor!

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“Nunca ande pelo caminho traçado, pois ele conduz somente até onde os outros foram.”

ALEXANDRE GRAHAM BELL

Hoje é dia de Páscoa. E como não poderia deixar de ser, apresto-me aqui, para vos contar como foram as Páscoas da minha meninice. Foram pobres, o que me deixa muita pena – mas vergonha, nunca! Não tenho pruridos em revelar que descendo de uma família pobre, humilde e muito honesta. Exactamente o tipo de família que não interessa a ninguém! Mas disso não me incomodo – porque sou diferente – vejo o mundo com olhos de ver, e penso!

Sobretudo, penso. E vejo. E o que vejo e percebo, meu Deus!

Naquele tempo costumávamos passar o Domingo de Páscoa na aldeia natal dos meus pais.  Alguns dias antes fazíamos a viagem num velho autocarro da carreira, carregados de bagagem, que não eram malas nem mochilas elegantes, não senhor! Eram seiras e invariavelmente uma saca de serapilheira cheia de tralha, provavelmente só trapagem.

Esta saca de serapilheira era uma companheira inseparável do meu pai. Para onde ele ia, ia a saca. Tínhamos campos na aldeia dos quais o meu pai se ocupava. A saca de serapilheira cheia que nem um ovo fazia-lhe as honras de mala de viagem. Lembro-me que o velho autocarro, de tanto esforço, resfolegava estrada fora, o que sempre me fez temer ter de fazer a pé alguma subida mais íngreme. Mas o que muito me incomodava eram os gases mortais que exalava pelos tubos de escape e sei lá por onde mais! Ficava sempre mal disposta. Chegava à aldeola num estado deplorável. Mais para lá do que para cá!

Chegados à nossa minúscula casita, a primeira coisa que o meu pai fazia era acender uma brutal fogueira na nossa grande lareira. Ele era assim. Ou tudo ou nada.

Fui acostumada a dois tipos de fogueiras. As do meu pai eram só labaredas, emitiam um tal calor que até nos fazia encolher a pele do rosto!

As fogueiras da minha mãe só faziam fumo, e não aqueciam nada! Era o seu espírito de eterna poupança, neste caso era a poupa da lenha. Entretanto tratava-se do almoço e nós crianças por ali andávamos aos saltos, excitados pela novidade trazida na quebra da rotina.

Pela tarde, a minha mãe embrenhava-se com intenso fervor na limpeza da pequena casa. Só no dia seguinte e rente à noite, lograva descansar de tão árdua tarefa. Incansável, caiava, esfregava e encerava com tanto afinco que no Domingo de Páscoa toda a casa estava num brinco. No ar pairava o reconfortante cheirinho a limpo, a cera e a cal fresca. Escusado será dizer que o fazia sozinha, o meu pai tinha outros interesses e urgências…

No Domingo de Páscoa saíamos da cama na alvorada e depois de um banho vestíamos roupa nova. A nossa casa situava-se num extremo da aldeia, por isso era uma das primeiras a receber a visita pascal. Às oito horas da manhã a porta da entrada da nossa humilde casinha estava já escancarada, tal era a vontade de receber o Senhor. O padre iniciava a sua labuta bastante cedo, tinha de haver tempo para fazer a colheita, pois então! Às tantas lá víamos aparecer o pároco com as suas vestes inconfundíveis acompanhado pelo sacristão. Abeirava-se da porta e pedia licença para entrar, cumprimentava os meus pais que cheios de mesuras o guiavam até à sala, trocavam-se meia dúzia de considerações após as quais lhe era feito um gesto para que pegasse um envelope, que estava poisado num prato de boa e fina louça. Devo dizer-lhes que o envelope dedicado ao padre foi sempre uma coisa que me fez confusão. Ao lerem isto façam-me o favor de não pensarem que estou a armar-me em esperta. Eu lá sabia o que sentia. A seguir compreenderão porque me confundia dar dinheiro ao padre. Assim que o envelope desaparecia das nossas vistas era chegada, para nós crianças, a melhor parte da festa.

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O padre mergulhava a mão numa saca de pano e de lá trazia uma mão-cheia de confeitos que num gesto largo, tal como quem atira sementes à terra fértil, espalhava pelo chão recentemente encerado e que brilhava como um espelho. Sem mesmo esperar pela saída do padre, logo eu e os meus dois irmãos iniciávamos um voo picado em direcção ao soalho, na ânsia de arrebanharmos o mais que podíamos. Um de nós ficava sempre pior, porque outro tinha sido mais ágil, no fundo, é assim em tudo, para uns terem muito, outros há que ficam sem nada.

A seguir o meu pai dava a cada um dos nós um pequeno pacotinho de 125 gramas daquelas amêndoas duras que hoje todos desprezam e porque não havia pacotes ainda mais pequenos, acredito bem! Era a tradição da família. Foi estabelecido que era o meu pai quem nos dava as amêndoas. Olhava-o enquanto me estendia o pequeno pacotinho de amêndoas e percebia que isso lhe dava satisfação. Na sua ideia estava a fazer uma grande coisa! Sei que ele em criança nem isso teve, mas eu via outros a terem muito mais do que eu e essas diferenças intrigavam-me.

Também me revoltava ver a minha mãe comprar um pacote de amêndoas das foleiras, é certo, mas com 250 gramas, para oferecer a uma afilhada. Isto não me caía bem e costumava refilar, ao que ela contrapunha tentando fazer-me ver que era a sua obrigação, na medida em que era um hábito próprio das madrinhas. Todavia este argumento não me convencia e logo retorquia que a afilhada já era bem crescida, trabalhava, tinha ordenado, portanto, não precisava que lhe dessem amêndoas. No fundo considerava que a minha mãe estava a tirar da boca dos filhos para pôr noutra boca e esta minha maneira de ver estendia-se ao envelope dado ao padre.

Sabia que o padre dali, da nossa casa, não levava grande coisa, a avaliar pelas “mãos agarradas” do meu pai… Se dentro do famigerado envelope fossem duas notas de Santo António já era muito, porém, de uma coisa tinha a certeza, com quarenta escudos daria eu largas à minha gulodice e poderia ter comprado muitos pacotinhos de amêndoas, para encher a barriga.

Agora tenho amêndoas de várias qualidades, cores e sabores, ali num lindo pote de cristal decorado a prata, obra das artes vidreiras da Marinha Grande, mas nem lhes toco… Engordam muito! A vida é mesmo lixada… Um minuto na boca, uma eternidade em redor da cintura. Não. Não quero amêndoas…

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18 Comentarios to “São amêndoas, Senhor!”

  1. lino Diz:

    E eu não as posso comer. Diabetes que a idade tece.

  2. joseoliveira Diz:

    Minha querida amiga. Deixe que a trate assim. Estou a adorar as suas estórias (esta falta do H, faz-me cá uma confusão),esta está também divinal.
    Aproveitando e sobre, «não ter passado de Badajoz para comprar caramelos» atrevo-me a perguntar se era na ALBA na Calle S. João, que os comprava. Como tudo aquilo está mudado. Foi como se um vendaval tivesse varrido aquela rua.
    Beijocas e conto sempre com a dedicação deste seu leitor

  3. Milu Diz:

    Olá, Lino,
    Isso dos diabetes já é pior porque lhe limita a própria alimentação. Fossem só as amêndoas que se lixassem! O que interessa é estarmos cá, mais amêndoa menos amêndoa!

  4. Milu Diz:

    Olá, caro amigo, José O. A falta do H também me faz alguma confusão mas estou em querer que esta é a melhor forma para as narrativas deste género, mas ainda hei-de ver melhor, e se for caso disso emendo. Para bem deve-se sempre emendar.Não me lembro onde comprei caramelos, foi há muito tempo, por lá andei feita uma tosca a dar dinheiro aos espanhóis… O café não prestava para nada. O melhorzinho da festa ainda foi o almoço num restaurante na fronteira, mas do nosso lado. Comi veado, pelo menos comi-o como tal! Agora se era outra coisa…
    Beijinhos!

  5. lilás Diz:

    Então não é que estou a adorar estas histórias!
    Memórias de infãncia são tão bonitas…
    beijinhos

  6. Milu Diz:

    Olá! Recordo tudo isto com muito carinho! Às vezes rio-me, outras vezes fico muito curiosa, por ter sido uma criança muito perspicaz! Não me faziam o ninho atrás da orelha sem mais nem menos!
    Um beijinho!

  7. flordeliz Diz:

    E eu fui percorrendo o caminho de camioneta e até ouvi o bater das amendoas no chão e senti o cheirinho a cera. Eu que detestava esse cheiro tão forte acabei a sentir saudade.
    Fiquei para aqui de sorriso arreganhado de prazer a ler.
    Que delicia de Páscoa!
    Fiquei um pouquinho curiosa com as tais “urgências e afazeres” mas mais tarde nos contarás se assim o entenderes…

  8. Milu Diz:

    Olá!
    As urgências e afazeres do meu pai era ir para a tasca confraternizar com outros homens da família e conhecidos. Tinha que pôr a escrita em dia! A minha mãe não se incomodava por isto, porque teve uma educação que reservava este papel para a mulher, porém, uns anos mais tarde, eu já via as coisas bem diferentes, apesar de viver na mesma casa. Duas formas bem distintas de ver a vida! Era o que era!
    Um beijinho!

  9. polidor Diz:

    Muito interessante e mais do que isso a franqueza de não esconder as origens, porque no fundo todos temos a mesma proveniência… a vida é, no entanto, mais ajeitada para alguns, mas contra isso só se consegue contrariar com persistência e com “certezas”… às vezes até corre bem.

    abraço

  10. Milu Diz:

    Olá!
    É bem certo o que diz! Com muita gana e persistência às vezes conseguimos contrariar aquilo, que à partida, parecia estar-nos designado pelo destino! Eu que o diga!
    Um abraço!

  11. congeminações Diz:

    Interessante esta forma de partilhar connosco a sua vivência pascal na infância. Julgo que a referência a não abastança é quanto a mim de somemos importância,porque não desprestigia, importante sim e isso é de sublinhar a sua vaidade na honestidade a forma se sentir, bem como a sua família, o que está bem patente nesta narração, algo que, infelizmente, vai cada vez mais caindo em desuso.

  12. lilás Diz:

    Então! por aqui continuamos comendo amêndoas? ai a dor de barriga…
    bjs

  13. Milu Diz:

    Olá Raul!
    Os tempos são outros é verdade. Agora os próprios pais ensinam outros valores aos filhos, ensinam-lhes a esconder muitas coisas. Para muitos, ser pobre é uma vergonha. Quanto a mim é apenas triste, porque se passam privações…
    Não tenho visitado o seu blog porque ando a fazer horas extraordinárias no meu emprego. Até já tenho saudades!
    Um abraço

  14. Milu Diz:

    Olá Lilás!
    Tens razão! Não tenho tido tempo! Ando a fazer horas extraordinárias no meu emprego. Vamos ver se este fim-de-semana vos poderei contar a última saga do carocha!
    Um beijinho!

  15. Pata Negra Diz:

    Passados vivos de que vivemos ainda. A festa da minha aldeia foi sempre pela Páscoa. De vez enquando ainda durmo lá por, esta altura, só para acordar ao som da alvorada!
    Um abraço das mesmas origens

  16. Milu Diz:

    Olá!
    Já não vou àquela aldeola há imensos anos. Vendemos a casa e os pedaços de terra que por lá tínhamos, deixou, portanto, de haver motivo para a visitar!
    Um abraço!

  17. Oliver Pickwick Diz:

    Crônica tocante, prezada amiga! E se as amêndoas de antes não eram lá grande coisa, como escreveu, aposto que a felicidade que estas passavam era superior as melhores amêndoas dos dias de hoje.
    Parabéns por esta história.
    Um beijo!

  18. Milu Diz:

    Olá!
    Não tenho dúvidas! Aquelas poucas e reles amêndoas souberam-me a manjar dos deuses!
    Um beijo!

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