A Palestina

Publicado por: Milu  :  Categoria: A Palestina, ISLÃO

Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade.” (Einstein)

Prosseguindo nesta minha iniciativa de elaborar um trabalho que denominei de mini curso sobre o Islão, apresento-vos hoje um excerto sobre a Palestina. Através dele são introduzidos novos termos, como o sionismo, a Diáspora e o anti-semitismo. Neste pequeno excerto também podemos constatar a maldita cobiça, na sede sempre presente pelo imperialismo, (política de expansão e domínio territorial, cultural e económico de uma nação dominante sobre outras). Esta prática da formação de impérios que se desenvolveram e, em muitos casos, foram dissolvidos ou substituídos por outros, está registada na história da humanidade. Boas leituras!

“O caso mais complicado do novo xadrez imperial britânico no Médio Oriente era o mandato sobre a Palestina, atingido desde o princípio por uma agenda contraditória, que por um lado prescrevia a criação de uma «Casa nacional para o povo judeu» e por outro queria salvaguardar os direitos políticos e económicos das comunidades não judaicas – árabes e cristãs – que ali existiam. O sinonismo moderno é uma forma de nacionalismo judaico, aparecida nos finais do século XIX, que defende a criação de um Estado no território de origem do povo judeu – a Palestina. Tirou o nome da ideia messiânica do regresso a Jerusalém (Sião, na versão bíblica tradicional). Note-se que muitos judeus ortodoxos são violentamente contrários ao sionismo e defendem a permanência da Diáspora*, como modo e lugar ideal de viver o judaísmo” (PINTO, 2015: 67).

O movimento teve causas directas, como o recrudescimento do anti-semitismo** na Rússia, na Europa Oriental e em França, e teve como textos de referência obras como «O Estado Judeu», de Theodor Herzl, que, em 1897, tinha promovido em Basileia o primeiro congresso da Organização Mundial Sionista” (PINTO, 2015: 68).

A Declaração Balfour, pela qual Londres se comprometia com a fundação na Palestina de um «lar para o povo judeu», abria passo a um reforço da imigração judaica, como colonatos apoiados pelos Rotschild. Os sionistas também se dividiam em relação aos árabes e às políticas restritivas de Londres: enquanto um núcleo, chefiado por David Ben-Gurion, advogava uma posição moderada, negociadora, perante palestinianos e ingleses, outro, liderado pelo jornalista e activista Vladimir Jabotinsky, preconizava a criação de um Estado judaico por quaisquer meios” (PINTO, 2015: 68).

Graças aos fortes propósitos do movimento sionista de retornar a Israel, nas vésperas da Grande Guerra haveria já, na Palestina, cerca de 85 000 judeus. Depois da Declaração Balfour (1917), esta migração de judeus para a Palestina, acompanhada da aquisição de terras pelo Jewish National Fund, foi dando origem a um ciclo de confronto: em 1935, os nacionalistas palestinianos passavam à luta armada contra os ingleses e os colonatos judaicos, inaugurando um tempo de violência que dura até hoje” (PINTO, 2015: 68).

Em 1937, a Peel Commission, uma comissão nomeada pelo gabinete de Londres, reconhecia que entre os cerca de um milhão de árabes e 400 000 judeus que estavam na Palestina não havia comunidade nem entendimento possíveis e que, assim sendo, a partilha territorial era o caminho a seguir. Só que a partilha territorial então preconizada não era propriamente equitativa: das terras da Palestina, os judeus recebiam a melhor parte – quer em localização geográfica, quer em riqueza agrícola. A agravar as coisas, a Peel Commission previa ainda transferências populacionais para fazer coincidir as zonas atribuídas com as comunidades étnicas. Finalmente, os árabes não iam ter direito a um Estado palestiniano, ficando com as suas áreas adstritas à suserania de Abdllah, rei da Jordânia” (PINTO, 2015: 68-69).

O resultado foi a revolta armada – com atentados contra os militares e funcionários ingleses e contra colonos judeus. Estes ataques e assassínios causaram, por sua vez, uma violenta repressão. Foram 25 000 os soldados e polícias britânicos que dela se encarregaram, destruindo casas de suspeitos, internando em campos de concentração cerca de 10 000 activistas e simpatizantes da revolta e fazendo 5000 mortos” (PINTO, 2015: 69).

A resistência palestiniana e o começo da guerra na Europa levaram Londres a esquecer o relatório Peel e a publicar uma nova norma (o White Paper), com recomendações para uma solução mais equitativa: limites à emigração judaica (um tecto de 15 000/ano) deviam conduzir a um maior equilíbrio entre as comunidades, ficando os judeus com um terço da população total; previa-se também a criação, em dez anos, de um Estado palestiniano sob um governo misto de árabes e judeus” (PINTO, 2015: 69).

De acordo com as disposições de Sykes-Picot, na partilha dos domínios otomanos do Levante, à França cabiam o Líbano e a Síria, mais um pedaço da Anatólia. Faiçal, o filho de Hussein, fora proclamado rei da Síria pelo Congresso Sírio, reunido em Damasco, em Março de 1920, mas a Conferência Aliada decidira outra coisa, com o apoio da Liga das Nações, reconhecendo o mandato francês sobre a Síria e o Líbano. Era um velho sonho colonial de Paris, que vinha das Cruzadas e se repetira com Napoleão, tendo por base demográfica as comunidades cristãs orientais do Líbano e da Síria” (PINTO, 2015: 69).

Assim, entre 1920 e 1930, os árabes e os muçulmanos do globo estavam ou ficavam sob tutela dos europeus. No Médio Oriente, tinham trocado o domínio turco – exercido pelos seus correligionários religiosos – por um condomínio de «poderes cristãos», os imperialismos laicos e económicos de Londres e Paris. No resto do mundo, o controlo estendia-se ao Índico e ao Pacífico, à Índia britânica e à Indonésia, onde existiam grandes comunidades islâmicas, também dominadas pelos ingleses e pelos holandeses (PINTO, 2015: 69-70).

Geralmente, as potências europeias exerciam o poder ou directamente, colonialmente, ou em regime de mandato ou tutela, apoiados em potentados locais, como os Hachemitas no Levante ou os sultanatos e emiratos do Golfo Pérsico. De qualquer modo, para comunidades com uma longa tradição civilizacional, com cidades, cultura, negócios, elites sofisticadas, esta perda da independência política era humilhante” (PINTO, 2015: 70).

*Diáspora: A palavra Diáspora deriva do hebraico e significa dispersão, expulsão e exílio. É o termo que define as migrações do povo judeu – quase sempre por expulsão. Assim, acabaram por se espalhar pelo mundo. As consequências directas da Diáspora estão na formação das comunidades judaicas. É prevista na Bíblia e define a busca do povo pela terra prometida. O Egipto e a Babilónia foram os destinos dos judeus nos dois principais movimentos de Diáspora a partir do século 6 a.C. Embora tenham sido escravizados, o movimento permitiu a troca de informações culturais, linguísticas e religiosas, reforçando a identidade dos povos. No exílio, o povo judeu manteve a tradição de disseminação das escrituras por meio dos centros de estudos judaicos.

**Anti-semitismo: Preconceito contra ou ódio aos judeus. O Holocausto é o exemplo mais radical de anti-semitismo na história. (Semita: termo criado pelo orientalista alemão August Ludwig Schlözer, utilizando o nome de um dos filhos de Noé, Sem, e servia para designar as línguas cujo parentesco foi estabelecido na Idade Média pelos eruditos judeus: o hebraico, o aramaico e o árabe. Actualmente os povos chamados de semitas são essencialmente judeus e árabes, mas na antiguidade também havia assírios, babilónios, arameus, cananeus e fenícios).

Bibliografia

PINTO. N. Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. A Grande Discódia. Dom Quixote. Alfragide.

Islão – Os Fundadores

Publicado por: Milu  :  Categoria: ISLÃO, Islão - Os Fund...

As religiões, assim como as luzes, necessitam de escuridão para brilhar.”

Arthur Schopenhauer

Tal como havia prometido, eis-me a dar continuação à tarefa a que me propus, que consiste na publicação de uma série de posts, que terão como finalidade lançar “umas luzes” sobre o islão aos incultos na matéria, grupo no qual me incluo e que me deixa algo desconfortável. Afinal, custa assim tanto ler alguns livros sobre o assunto? Deste feita, o post incide sobre os fundadores do islão. Escusado será dizer que, conforme avançamos na sua leitura, mais constatamos que os custos para engendrar uma religião são muito elevados. Muito sangue, muita traição e muito horror. Atente-se bem nas descrições e verifique-se até onde se pode ir numa loucura colectiva. Neste texto, retirado da magnífica obra intitulada “O Islão e o Ocidente“, da autoria de Jaime Nogueira Pinto, também poderemos perceber o que é um Sunita, o que é um Xiita e como se formou a oposição entre estas duas facções religiosas. Boas leituras!

No ano de 570 nasce em Meca, na zona de Hijaz da Península Arábica, um jovem de nome Mohamad ibn Abdullah. Neste tempo, as cidades de Meca e Medina viviam do comércio; a Arábia era então terra de beduínos, nómadas que erravam pelo deserto em busca de nascentes e de oásis. Viviam ali cristãos e judeus, mas os beduínos que por ali paravam eram maioritariamente pagãos, politeístas, adorando pedras, ídolos e forças naturais” (PINTO, 2015: 23).

Quando Maomé nasceu já o pai tinha morrido, e aos seis anos ficou também órfão de mãe. Foi, por isso, criado por um avô e por uns tios, dedicando-se com eles ao comércio. Depois, conheceu uma viúva, Khadija, mulher mais velha para quem trabalhava e com quem viria a casar, ainda que na Península Arábica não houvesse o hábito de casar com mulheres que já tivessem sido casadas. Desse casamento nasceram seis filhos: dois rapazes e quatro raparigas, mas os rapazes morreram cedo” (PINTO, 2015: 23).

Maomé costumava retirar-se para a montanha para meditar. Um dia, junto do Monte Hira, apareceu-lhe o anjo Gabriel, sob a forma de uma luz intensa, ordenando-lhe que recitasse com ele palavras de adoração e de veneração a Deus. Maomé sentiu-se desamparado e chegou a recear tratar-se de um artifício dos demónios, mas, voltando a casa, Khadija encorajou-o a ouvir e a repetir os ensinamentos do Anjo. Assim surgiu, no Islão, a revelação, transmitida pelo anjo de Deus a Maomé; revelação que o profeta inscreveu palavra por palavra no Corão” (PINTO, 2015: 23).

“O Antigo Testamento é a história da aliança de Deus com o povo de Israel e também o anúncio da vinda de um Salvador. Cristo, Jesus de Nazaré, é, para oos cristãos, o Messias, o filho de Deus Encarnado para resgatar a humanidade. O Deus de Israel e o Deus de Jesus é um Deus único, criador do Céu e da Terra e dos homens” (PINTO, 2015: 24).

“A revelação do anjo Gabriel a Maomé, transcrita no Corão, constitui o terceiro capítulo do monoteísmo, o texto fundacional da última das religiões do Livro. Tal como os profetas e como Cristo, Maomé começou a sua pregação, mas os homens de Meca, pagãos e politeístas, perseguiam-no, obrigando-o a refugiar-se em Medina com alguns companheiros. A Hégira é a fuga do Profeta para Medina, em 622” (PINTO, 2015: 24).

“A campanha militar de Maomé para impor o Islão em Medina e Meca, e depois às tribos Hijaz, marca a unidade entre o poder religioso, o poder político e o poder das armas. Enquanto no Islão Estado e Religião estão unidos, no judaísmo há uma dualidade entre profetas e reis, cabendo o poder político e militar aos reis de Israel e Judá e não aos sacerdotes e Javé; dualidade que Cristo vem revigorar e extremar ao revelar que o Seu reino não é deste mundo” (PINTO, 2015: 24).

Depois da morte de Maomé, o Mensageiro de Deus, o poder passou para o Khallifat Rasul Allah, o «Representante do Mensageiro de Deus». Os califas, Abu Bakr, seguido de Omar e depois de Osman e de Ali, são, para os sunitas, os sucessores legítimos de Maomé. O califa é o «chefe da comunidade islâmica», o que «herdou do Profeta o comando», e as suas atribuições são políticas. O poder do califa só é religioso na medida em que é a religião fundada pelo Profeta que o legitima, mas «o Sucessor» não pode tocar no conteúdo da fé nem no ritual, que fazem parte da revelação” (PINTO, 2015: 24).

“Maomé começou por doutrinar os beduínos e dominar a Arábia, mas bem cedo os califas iam guiar os guerreiros prosélitos do Islão à conquista do Oriente, conquista que vai unir os árabes. Os sassânidas da Pérsia e os bizantinos tiveram de os enfrentar, mas foi nesses territórios conquistados, que hoje correspondem à Síria e ao Iraque, que se consolidou o novo poder. E foi daí que partiram para norte e para oeste, guerreando os impérios vizinhos. Ao conquistar o Egipto e a Síria, o califa Omar alargou os domínios do Islão, definindo os princípios da Jihad ou Guerra Santa” (PINTO, 2015: 24-).

“Jihad significa combate, mas, no Corão, o combate é sobretudo um combate individual, o esforço pessoal do crente com vista ao aperfeiçoamento ou a uma prática da fé que o leve pelo caminho certo e o aproxime de Deus: «O verdadeiro combatente é o que trava um combate consigo mesmo», diz o profeta. Assim, o grande combate é este combate interior, a Jihad al Akbar, e é a par dele que aparece um outro, a Jihad al Asghar, o pequeno combate, o combate armado contra os inimigos do Islão, «os politeístas». O judaísmo e cristianismo ficariam, assim, fora desta categoria de inimigos de Deus – Jesus (Issa) é, no Corão, um profeta e um mensageiro de Deus, tal como Abraão, Moisés e Maomé” (PINTO, 2015: 25).

“No entanto, depois da campanha de submissão e conversão dos beduínos pagãos ao Islão, os califas foram alargando o conceito de Jihad às expedições guerreiras seguintes contra os cristãos do Império Bizantino. A conveniência política sobrepunha-se ao rigor dos textos” (PINTO, 2015: 25).

“Vem também deste primeiro século do Islão a diferença entre sunitas e xiitas, hoje conhecida pedra de divisão e conflito no interior da comunidade dos crentes. Os sunitas consideram Abu Bakr e os outros califas, Omar, Osman e Ali, legítimos sucessores de Maomé; para os xiitas o único sucessor é Ali, o primo e genro do profeta que sucedeu a Osman depois do seu assassínio” (PINTO, 2015: 24).

A história do conflito entre o sunismo e o xiismo é uma história fascinante e trágica, a história da «Grande Discórdia», da Fitna (luta no interior da comunidade), que vai dividir os crentes. Morto Maomé em junho de 632 e devendo a sucessão cair sobre um seu «mais próximo», sucede-lhe o seu companheiro Abu Bakr, cujo califado dura apenas dois anos; Abu Bakr escolhe para sucessor Omar, nos dez anos do seu califado, conquista a Síria, a Palestina, o Egipto e a Mesopotâmia” (PINTO, 2015: 26).

“Quando Omar morreu, foi um conselho de seis membros (a Shura) que se decidiu por Osman, do clã dos omíadas de Meca. Ali, primo direito, companheiro e genro do Profeta, fazia parte desta Shura que escolheu Osman. Não o confrontou, mas não terá gostado da escolha. Osman, ainda que companheiro de Maomé, era omíada, membro da elite urbana de Meca que inicialmente perseguira Maomé e resistira ao Islão. Ali vinha do grupo de exilados que seguira Maomé para Medina para escapar às famílias poderosas de Meca. Da luta que depois se travou, resultou o assassínio de Osman no seu palácio de Medina e a aclamação de Ali como califa, em junho de 656. Para os seus partidários, os xiitas, Ali era o sucessor natural de Maomé, o primeiro e único sucessor do Profeta; e os três califas – Abu Bakr, Omar e Osman – meros usurpadores. Assim, a seguir à morte de Osman, o povo de Medina aclamou Ali, «reparando o erro» e entregando o poder ao «verdadeiro sucessor de Maomé» – por parentesco, companheirismo e virtudes pessoais” (PINTO, 2015: 26).

“A morte de Osman e a sucessão de Ali, sem o acordo da maioria dos companheiros do Profeta, desencadeou a «Grande Discórdia» no interior da Umma, a comunidade dos crentes. Os omíadas da Síria, chefiados por Muawia, iniciaramm então uma vendeta contra Ali, que acusavam de cumplicidade na morte de Osman. Ali viajou para o Iraque, abrindo o conflito armado que, 30 anos depois da morte do fundador, partia o mundo islâmico. Era a guerra civil dentro da casa do Islão, a Fitna, o conflito armado, jurídico e religioso que inflamou a Grande Discórdia” (PINTO, 2015: 26-27).

“Ali retirou-se para Kufa, na margem do Eufrates, onde foi assassinado à porta da Mesquita, em Janeiro de 661, e Muawia fez-se aclamar califa em Jerusalém. Mas a morte de Ali não acabou com o que viria a ser o xiismo (shia significa parte, facção, shi’al Ali é o partido de Ali). Pelo contrário, da morte do escolhido, ou do seu martírio, nasceu um mito, pleno de milagres e de fenómenos extraordinários – desde o aparecimento de uma relíquia da Arca de Noé no lugar da sua sepultura, junto a um rochedo de onde partia uma luz misteriosa, a todo um ritual de memória, arrependimento e expiação” (PINTO, 2015: 27).

“Com um exército reunido na Síria, Muawia lançou-se na perseguição dos descendentes de Ali, Hassan e Hussein, netos do Profeta, filhos de Ali e de Fátima, filha de Maomé. Mas em vez de resistir, o primogénito Hassan renunciou ao califado. Para os xiitas a rendição de Hassan foi um honroso esforço para evitar a guerra entre os crentes, para os outros não terá passado de uma desonrosa cedência a troco de compensações financeiras e honoríficas. Hassan voltou a Medina, morreu no seu palácio e foi enterrado no cemitério de Al-Baqi” (PINTO, 2015: 27).

Para a historiografia xiita, Hassan foi envenenado por uma das suas numerosas companheiras, a mando de Muawia. Quando Muawia morreu, em 680, sucedeu-lhe o filho, Yazid. Yazid fixou-se em Damasco e o segundo filho de Ali, Hussein, a viver em Medina, foi encorajado pelos xiitas de Kufa a reclamar o califado, que achavam que lhe pertencia legitimamente por sucessão. Partiu de Meca, para onde viera em peregrinação, e viajou até ao Iraque. Só que as promessas de apoio dos xiitas de Kufa não se confirmaram e a pequena força de Hussein acabou massacrada em Karbala pelas tropas do governador. O corpo de Hussein, cuja cabeça foi decepada e enviada como troféu, terá sido mais tarde levado para Damasco e ali enterrado. Karbala tornava-se um dos lugares sagrados do martirológio xiita” (PINTO, 2015: 27-28).

“Estes episódios foram então vistos como uma luta dinástica pelo poder, igual a tantas outras, passadas, presentes e futuras. O seu conteúdo religioso foi–se consolidando depois, contribuindo para a constituição do xiismo como tradição alternativa à da maioria sunita” (PINTO, 2015: 28).

“Na sua origem, o xiismo é indissociável do sentimento de culpa e do desejo de expiação dos notáveis de Kufa que, tendo desafiado e animado Hussein a disputar o califado, não o tinham apoiado devidamente, tornando-se assim réus da dua morte. Este grupo, conhecido pelos «Penitentes», vai transformar o xiismo numa religião de arrependidos, reflectindo o remorso colectivo e o desejo de reparação pela traição a Hussein, vitimado pela cobardia e pela infidelidade dos seus. Há neste arrependimento e neste desejo de expiação semelhanças com a culpa e a expiação cristãs que aproximam o xiismo do cristianismo. É daqui que vêm as práticas de auto-expiação e de autoflagelação xiitas, os chamados rituais de Ashura. Nesse ano de 685, os Penitentes foram atacados e mortos por tropas sírias – uma morte prenunciada e desejada. Nos 200 anos seguintes, vão suceder-se à frente do partido xiita os descendentes de Hussein: o último, Hasan al-Askari, morreria em 873” (PINTO, 2015: 28).

“Entretanto, os califas omíadas tinham perseguido a expansão. É impressionante a velocidade de conquista das forças do Islão. Como lembra um historiador:

«Um ano depois de terem saído das fronteiras da Arábia, em 633, os árabes já tinham atravessado o deserto e derrotado o imperador bizantino Heráclio, nas margens do rio Yarmuk; em três anos tinham tomado Damasco; cinco anos mais, Jerusalém; passados oito anos controlavam totalmente a Síria, a Palestina e o Egipto. Em 20 anos, todo o império persa, até ao Oxus, tinha caído sob a espada árabe; em 30, era o Afeganistão e a maior parte do Punjab»” (PINTO, 2015: 28-29).

“Consolidadas as conquistas do Médio Oriente e do Egipto, os mulçumanos tentaram tomar Constantinopla, mas foram repelidos pelo imperador Constantino IV. Voltaram então a expansão para ocidente, avançando pelo Norte de África. Estes filhos do deserto não tinham navios, mas, com o apoio dos cristãos das terras conquistadas do Egipto e da Síria, construíram uma armada e atacaram os bizantinos – que só se defenderam e sobreviveram graças ao «fogo grago». A marcha para ocidente enfrentou , no Magrebe, a resistência dos mesmos bizantinos e dos berberes cristãos, e só em 693 caiu Cartago. Daí, foi o avanço até ao Atlântico” (PINTO, 2015: 29).

Em 711, Tariq ibn Zaid, comandando 9000 berberes islamizados, atravessou o estreito que separava Tânger do Sul de Espanha, derrotou os visigodos em Guadalete, conquistou a Andaluzia e chegou a Toledo, de onde tinha fugido toda a população, à excepção dos judeus. Ajudou-o a luta dinástica dos visigodos, entre o rei Rodrigo e os filhos de Vitiza, Sisebuto e Ebas, num episódio que Herculano romanceou em Eurico, o Presbitero. No ano seguinte, outro conquistador, Musa ibn Nusair, animado pelas vitórias de Tariq, passou o Estreito com 18000 homens, tomou Huelva e Sevilha e foi juntar-se a Tariq em Toledo” (PINTO, 2015: 29-30).

A razão principal da velocidade vertiginosa da marcha muçulmana era, além dos cavalos, a tolerância dos conquistadores para com as populações cristãs e judaicas, que consideravam suas irmãs no Livro e, como tal, dispensadas da conversão forçada ou da morte destinadas aos aos pagãos. Mas a marcha de expansão doi interrompida quando, em 732, em Poitiers, perto de Tours, os muçulmanos foram vencidos por Carlos Martel, rei dos Francos. Assim, ficaram-se pela Península Ibérica, que baptizaram com o nome de Al-Andaluz e onde permaneceram quase até ao final do século VX” (PINTO, 2015: 30).

Bibliografia

PINTO. N. Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. A Grande Discódia. Dom Quixote. Alfragide.

Na senda do islão

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O mestre disse a um dos seus alunos: Yu, queres saber em que consiste o conhecimento? Consiste em ter consciência tanto de conhecer uma coisa quanto de não a conhecer. Este é o conhecimento.” (Confúcio)

Venho com este post, intitulado “Na senda do islão”, inaugurar uma nova categoria no meu blog destinada a um breve estudo do islão. Confesso que não é um assunto pelo qual nutra um grande interesse, no entanto, considero importante ter pelo menos algumas noções, um conhecimento ainda que básico, que possa permitir ou melhorar a compreensão de alguns fenómenos sociais contemporâneos. Assim sendo, este é o primeiro post de um conjunto que já está na forja. Quem estiver na mesma situação que eu, sem saber nada mas com vontade de alargar os horizontes, poderá a partir de agora seguir o meu blog e aprender comigo. Boas leituras!

“O islão é um caso único entre as mais importantes civilizações ou religiões mundiais. Há aproximadamente quatro séculos, no fim da Idade Média, o Velho Mundo continha quatro civilizações superiores cultas, cada uma com a sua religião ou grupo de religiões. Em consequência da história dramática do período subsequente, três delas secularizaram-se indubitavelmente, embora não de um modo uniforme ou completo. A tese sociológica dominante, segundo a qual nas sociedades industriais ou em vias de industrialização a religião perde muito do seu anterior controle sobre os homens e a sociedade, é, em linhas gerais, correcta. Tanto a extensão como a natureza da laicização, que está longe de estar completa, variam muito, para não falar das ocasionais contracorrentes notórias. Por tudo isto, seria difícil negar a tendência global para a secularização.

No entanto, existe uma excepção óbvia: o mundo do islão. O domínio do islão sobre as populações dos territórios em que é a religião principal não diminuiu de modo algum nos últimos cem anos e, em certos aspectos, chegou a reforçar-se vincadamente. Além disso, o domínio não se restringe a certas camadas da sociedade; não pode dizer-se que se manteve apenas entre as classes inferiores, os camponeses ou as mulheres. O seu poder é tão forte entre as classes dominantes e urbanas e as elites culturais como entre os segmentos menos favorecidos da população. É tão vincado nos regimes tradicionalistas como nos regimes empenhados no radicalismo social.

O Ocidente só se apercebeu do fenómeno a partir da revolução iraniana, que foi realmente a sua manifestação mais espectacular, apesar de não ter sido porventura a mais típica. Existe actualmente uma tendência para designar este fenómeno por «fundamentalismo», embora o termo seja passível de induzir em erro. No Ocidente são «fundamentalistas» as pessoas que protegem uma interpretação antiga e sobretudo literal da doutrina da sua fé contra as tentativas de a reinterpretar como metafórica, simbólica, social, funcional, e assim sucessivamente. Estas reinterpretações pretendem tornar a religião mais agradável e digerível pelo espírito moderno. O fundamentalismo tão generalizado no mundo muçulmano também condenaria indubitavelmente estas depurações edulcorantes, mas não é esta a fronteira em que é mais activo. A área de disputa em que mais se faz sentir é uma velha divisão no interior do islão, presente há muito, embora nem sempre formalmente reconhecida, entre aquilo a que se pode chamar cultura erudita e cultura popular do islão. Na verdade, o fundamentalismo opõe-se ao agnosticismo estrangeiro ou à reinterpretação expugnadora, mas também, se preocupa profundamente com as distorções populares do islão, com as superstições ilegítimas e com os enquistamentos rituais.

A melhor forma de descrever e também de explicar o vigor persistente do islão é em termos desta velha polaridade entre o alto e o baixo islão. Devemos começar pelos papéis de cada um deles na sociedade tradicional muçulmana, isto é, no mundo muçulmano antes do impacto brutal do Ocidente, que se fez sentir em diferentes momentos e em diferentes regiões entre os séculos XVIII e XX.

O islão não dispõe formalmente de clero. Não faz a separação oficial entre a igreja e a sociedade, tal como não separa formalmente a igreja do Estado. Não possui, ao contrário do que se tem dito de outras civilizações, um centro exemplar que forneça o ideal aos homens, quer numa instância política, quer religiosa. De facto, se alguém possui tal papel no islão, são os eruditos, os teólogos-juristas, os ulemás, que, no entanto, não constituem uma casta ou estrato sacramentalmente segregado: podem apenas reivindicar erudição, familiaridade com o ideal social/legal registado nas escrituras e, por conseguinte, a capacidade e a vontade de o praticarem e desenvolverem, e nada mais. Quanto à autoridade política está mais encarregada de zelar pela aplicação da lei divina do que de a exemplificar específica ou paradigmaticamente e menos ainda de a criar. Tal como os outros, deve observá-la, mas não constitui por inerência a sua fonte nem a sua norma.

É evidente que esta linha assume uma grande importância numa religião escrituralista, numa fé que sustenta que a mensagem divina é acessível à humanidade, literalmente, através da escrita. Também é importante numa religião que defende que a verdade divina não é apenas uma questão de doutrina sobre a natureza do mundo, mas também, e talvez em primeiro lugar, uma questão de leis muito pormenorizadas sobre a condução da vida e da sociedade. Como sublinhou o orientalista Michael Cook, o islão combina o teocentrismo do cristianismo com o legalismo do judaísmo. O resultado é uma matriz legal de ordem social, mas que está acima do simples poder e da autoridade política. (…) Muito antes da formulação dos ideais modernos da separação de poderes e de uma constituição política, o islão possuía efectivamente uma versão religiosa de ambos: a legislação era distinta do executivo, porque a divindade se tinha antecipado, e a própria religião estava acima de toda a lei constitucional da sociedade” (GELLNER, 1995: 29-32).

Os eruditos, muitas vezes provenientes dos meios urbanos e enraizados na burguesia comercial das cidades, projectam uma visão correspondente da fé: escrituralista, normativa, puritana, literal, sóbria, igualitária, anti-extática. É provável que este estilo religioso seja natural em homens de temperamento estudioso e corresponda também aos valores e estilo de vida da classe urbana comercial de que são oriundos” (GELLNER, 1995: 32).

Seja como for, um estilo religioso deste tipo não corresponde às inclinações e necessidades naturais de outros segmentos bastante mais amplos da população. Por exemplo, não corresponde aos gostos e necessidades da população rural, grande parte da qual se administrava autonomamente até há bem pouco tempo por intermédio das estruturas do parentesco ou de unidades tribais locais. Estas populações rurais são geralmente analfabetas e têm pouca inclinação ou aptidão para devotarem o tempo livre à aprendizagem da teologia ou da jurisprudência . (…). A instituição mais característica do islão rural era o culto dos santos, que diferia, no entanto, do culto de santos, por exemplo, da margem católica do Mediterrâneo, já que os santos eram geralmente personagens vivas, executando serviços em pessoa (…). No catolicismo era possível abordar os santos mortos por intermédio de sacerdotes vivos. No baixo islão os santos estão (ou estavam) vivos e de boa saúde, eram sacerdotes” (GELLNER, 1995: 32-33).

(…). “Enquanto a burguesia próspera procurava no escrituralismo uma confirmação do seu estilo de vida confortável, as classes inferiores procuravam mais na religião extática um escape para a sua situação miserável. As duas teorias mais polulares da religião apresentá-la-iam como ópio ou como uma norma: os dois aspectos não são totalmente compatíveis. Os abastados inclinam-se para uma norma, enquanto os miseráveis necessitam de uma droga” (GELLNER, 1995: 33).

“A erudição e a piedade sóbria podem ajudar a reforçar a burguesia mais abastada no usufruto de uma situação privilegiada, mas não consolarão os menos afortunados, que, por sua vez, recorrem a mediadores e fornecedores de êxtase e que proporcionam um consolo mais palpável e um meio de fuga mais excitante. Por conseguinte, a variante da cultura popular serve não só os rústicos, isolados nas suas unidades de parentesco e necessitando de que as mesmas tenham práticas e rituais exteriorizados, mas também os membros mais pobres da população urbana” (GELLNER, 1995: 34).

“Não devemos dar a ideia de que as duas variantes da fé foram sempre clara e explicitamente definidas, separadas com nitidez, e que se defrontaram numa oposição total. Isso seria uma deformação grosseira da situação. Tudo era contínuo, as transições eram graduais e os limites ambíguos e nebulosos” (GELLNER, 1995: 34).

(…) Os dois sistemas interpenetravam-se, constituindo durante a maior parte do tempo uma simbiose perfeitamente amistosa” (GELLNER, 1995:33).

(…) “No entanto, sob as condições modernas, as regras do jogo mudaram. O Estado colonial e pós-colonial possuía tecnologia militar, de comunicações e de transportes que, a longo prazo, minou e destruiu a autonomia dessas unidades rurais, auto-administradas, que anteriormente desafiavam com êxito o Estado central em toda a região árida. A sociedade estava agora politicamente centralizada e era, de facto, governada a partir do centro, que impunha, assim, um sistema económico unificado. Havia uma atomização geral da sociedade, transformada pela explosão demográfica, pela urbanização e pelo domínio urbano, e uma mobilidade imensamente acentuada” (GELLNER, 1995: 35).

“Nestas circunstâncias, os antigos santos-mediadores perderam muitas das suas funções (embora não todas): já não eram necessários para mediarem os grupos sociais, porque os próprios grupos tinham sido liquidados. (…). A população urbanizada ou de algum modo «destribalizada» e «desruralizada» aspirava a viver segundo os ideais urbanos, ávida de ratificar a sua promoção do estatuto de atraso e de ignorância rústicos para a sofisticação e correcção urbanas, por intermédio da prática de um estilo de fé mais orientado para o cumprimento das regras do que para a invocação dos santos” (GELLNER, 1995: 35-36).

(…). Como o emprego de mediadores já não era eficaz nem autorizado, era conveniente ter em consideração a velha proibição da mediação. Desaparecida a tentação, a observância das normas eruditas tornou-se fácil e atraente. O puritanismo e o fundamentalismo tornaram-se símbolos da sofisticação urbana” (GELLNER, 1995: 36).

“Isto constitui o mecanismo básico dessa transferência maciça de lealdade do culto dos santos para uma variante escrituralista e fundamentalista do islão. Esta é a essência da história cultural do islão dos últimos cem anos. O que antes tinha sido realização ou privilégio de uma minoria, uma forma de fé praticada por uma elite cultural, transformou-se agora numa forma de definir a sociedade como um todo” (GELLNER, 1995: 36).

BIBLIOGRAFIA

GELLNER, Ernest. (1995). Condições da Liberdade. Trajectos. Gradiva. Lisboa