Reminiscências da Primavera

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Reminiscências...

primavera

“Tenho-me esforçado por não rir das acções humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las.”

BENTO DE ESPINOSA

Talvez devido aos rigores deste Inverno que não deixou saudades a ninguém, alguns blogs exultaram com a recente manifestação da Primavera. Inspirados pelas cálidas temperaturas e por este maravilhoso sol, que finalmente decidiu fazer a sua aparição em apoteose resplandecente, deram asas à imaginação e publicaram alguns belos poemas de sua lavra, numa ode à mãe natureza. Quis o destino que eu mesma fosse contagiada! Levada pelo mesmo impulso de alegria e bem-estar, senti nascer em mim um genuíno apelo, para à minha maneira, prestar também a minha  homenagem,  ao perpétuo devir que é a estação da Primavera! Não sei fazer poemas. Penso até, que essa capacidade é  dom que nasce com a pessoa, como não fui bafejada com esse dote natural decidi não enveredar por aí. Em contrapartida penso que sei contar histórias. E se as tenho para contar!

Flores

Eu e os meus dois irmãos fomos criados um pouco à rédea solta, não quero com isto dizer que andávamos ao abandono, nada disso, apenas tivemos a bem-aventurança de termos vivido a nossa infância numa localidade rodeada de campos, pinhais e serras. Devido às suas obrigações profissionais, os nossos pais permaneciam ausentes de casa durante todo o dia, implicando assim, que durante as férias escolares ficássemos entregues a nós próprios. Sozinhos e sem nada que nos prendesse dentro de casa, não é de estranhar que fizéssemos da rua, o nosso principal cenário para as brincadeiras. Quando digo rua, refiro-me ao espaço circundante que poderia muito bem compreender um raio de 2 km, entrando por pinhais e matas adentro. Embora eu costumasse dizer na escola, às minhas colegas, que tinha televisão, máquina de lavar roupa e todo um manancial de adventos do género, nada disso era verdade. Esta minha inofensiva mentira fazia parte de um estratagema que visava tão-só impedir que me ostracizassem. Actualmente não sei como é, mas, no meu tempo, as crianças tinham o desprezível costume e dava-lhes, até, um certo gozo, fazer ainda menos daqueles que já tinham menos. Ora, então, para os devidos efeitos eu tinha a casa recheada dos mais versáteis electrodomésticos, mas a verdade nua e crua é que não tinha, nem podia ter, a não ser que fosse possível ligar as fichas ao candeeiro a petróleo que se encontrava habitualmente em cima da mesa da cozinha, estupidamente a fumegar, apesar de iluminar mal e porcamente e, tudo corria muito bem enquanto não se partisse a chaminé, que uma vez em cacos, obrigava a que aliviássemos a torcida do bucal, ficando este tristemente descaído para o lado, o que dava um ar ainda mais triste e lúgubre ao ambiente. Lembrei-me agora de uma circunstância engraçada, tinha um vizinho que gostava dos copos, e de vez em quando lá se enfrascava, sempre que eu passava  defronte da sua casa e visse o candeeiro a petróleo sem chaminé era sinal de que estava bêbedo. Era sempre assim, a quantidade de bebedeiras era proporcional à quantidade de chaminés partidas. Ao mais pequeno deslize  a chaminé saía disparada num voo directo ao chão, fazendo-se em mil pedaços! A vida tem destas coisas! Sendo que não tínhamos  televisão em casa para nos sentarmos sossegadinhos a ver os filmes de época, o Santo, o Bonanza, o Sandokan, pelo qual, coitadinha de mim, ainda andei apaixonada, vá de ir para os campos dar vazão às vastas energias.

flores

E assim surgem as minhas reminiscências da Primavera… E da terra brotaram as mais diversas formas de vida! Ao passear pelos campos sentia as minhas pernas encharcadas do orvalho da erva verdejante, das flores e dos arbustos. Inalava com deleite o cheiro da terra húmida e mole, ouvia deliciada os sons que pairavam no ar, qual orquestra de chilreios e trinados das muitas aves que sobrevoavam as copas das árvores e o azul dos céus. Nos extensos  campos,  plenos de flores multicolores que nos inebriavam com os seus selvagens aromas,  esvoaçavam borboletas em intrincados bailados, as belas e frondosas árvores ululavam da fresca aragem – e havia os ninhos! Um pequenino ponto escuro perdido por entre ramos e folhagem abundante! Quem nunca subiu a uma árvore e observou um ninho com os seus minúsculos e depenados ocupantes, de bico escancarado suplicando alimento? Quem nunca viu não sabe o que perdeu!

ninhos

É curioso mas tão depressa adorávamos os ninhos como logo a seguir desatávamos na caça aos pássaros – pintassilgos e pardais de telhado, eram naquela época os mais abundantes. O meu irmão mais velho era um predador de pássaros por excelência. Desde cedo aprendeu a manejar uma fisga, esse facto aliado a uma imensa e precisa pontaria, fazia com que raramente errasse o alvo. Era tal a facilidade com que costumava caçar pássaros que um dia ao sair de casa – parece-me que ainda o estou a ver – com os elásticos da fisga pendurados fora dos bolsos e a dizer-me para ir pondo a frigideira ao lume! Tal era a sua certeza! Havia quem gostasse de o acompanhar para poder testemunhar a facilidade com que matava qualquer ave onde poisasse os olhos. Se a ave não fugisse em tempo útil, enquanto o meu irmão ajeitava o seu ponto de mira, era ave morta. Mesmo sem o recurso de uma fisga, qualquer pedra nas mãos daquele rapaz era um verdadeiro perigo, acertava mesmo sem querer, por causa disso um dia partiu-me a cabeça! Já em casa chamuscávamos os passaritos, abríamo-los ao meio para os limpar e lavar com uma pouca de água, duas pedras de sal e frigideira com eles. Triste conduto, pois pouco havia para comer, só me lembro de trincar a cabeça que me fazia lembrar um grão torrado, mais nada. Se antes fome tinha, com fome ficava. Mas eu também não deixava os meus créditos por mãos alheias! Muitas vezes mesmo sozinha, enveredava pelos campos dentro, com um braço repleto até ao cotovelo de armadilhas de arame e lá as armava onde me parecia conveniente, cobria-as com terra deixando à vista apenas o isco e para não lhes perder o norte, assinalava-as com um cavaco que espetava ao lado de cada uma das armadilhas. Nunca tive sorte, nem um pássaro sequer alguma vez se deixou enganar!  Tempos felizes aqueles!

Nada, absolutamente nada se comparava ao prazer que então sentia naquela perfeita comunhão com a terra. Até os bichos me fascinavam! Assim que me era dado ver um qualquer bicho que me amedrontasse desatava a fugir, porém, mais à frente parava, deixava passar uns instantes para retomar fôlego e retornava mais uma vez, pé ante pé para tornar a ver o bicho que tanto me tinha assustado, no fundo, gostava de sentir  o coração aos pulos com aquela terrível sensação de medo, hoje sei que é a adrenalina!…

passaros