O declínio da Condessa

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, O declínio da Condessa

“O ambicioso não possui os seus bens – os bens é que o possuem.”

FRANCIS BACON

Eis, finalmente, a última história da minha infância, que considero verdadeiramente a jóia da coroa de todas as outras aqui registadas, que me fizeram sentir na pele e na alma a indecorosa e desprezível sovinice de um adulto. E, se para mim esta é a mais emblemática de todas, é porque ela carrega em si a dolorosa evidência, que por ser uma menina pobre, ainda que nascida no seio de uma família muito honesta e íntegra, não inspirava os enaltecedores sentimentos de carinho e protecção, que seriam normais e desejáveis num caso destes, em vez disso, antes despertava naquela senhora tão fraca de espírito, o mais profundo sentimento de desconsideração e menosprezo.

Uma vez por outra, a somítica senhora chamava-me a sua casa para que a ajudasse na tarefa de fazer bolos, coisa a que não me fazia rogada, já que bolos sempre serão bolos, de mais a mais até os vapores que se escapavam do forno já me eram largamente reconfortantes! As minhas incumbências resumiam-se tão-só em levantar as claras em castelo, empreitada que desempenhava com apurado fervor ou não fosse eu uma criança com assomos de impetuosa genica. Entretanto, numa enorme tigela, a senhora envolvia os necessários ingredientes que consistiriam na massa que iria ser distribuída por diversas formas: Uma forma em formato redondo com buraco ao centro, várias pequenas formas para queques e um tabuleiro rectangular, o qual serviria para confeccionar uma torta, que seria recheada com um doce ou geleia. E tal como vinha sendo habitual, dentro da grande tigela e envolta pela massa, cirandava uma comprida e enrolada casca de limão, que desde o início me estava prometida, pois fazia parte da recompensa pela minha disponibilidade e esforço.

Chegada a hora de encher as formas com a massa, aquela senhora pegava na casca de limão, dava-lhe uma sacudidela e entregava-ma para que me comprazesse a lambê-la. E eu lambia! Lambia aquela casca de limão até ela me começar a amargar! Entretanto passava-me para as mãos a colossal tigela, para que eu com o dedito que de imediato lambia, acabasse de rapar os bem parcos resquícios de massa que, porventura, ainda jaziam agarrados à tigela, já que antes a sovina lhe havia passado a espátula de borracha, mais conhecida por salazar.

Depois dos bolos cozidos, a avarenta mulher desenformava a torta  e aparava-lhe as partes queimadas,  que logo me dava para que as comesse. E eu comia!  Tão criança que era, que nem me apercebia que estava a ser tratada com a mesma displicência  com que se lida com um caixote de lixo. Eu era uma menina pobre, por conseguinte, para mim qualquer coisa servia. Se vistas bem as coisas, eu não andava ali enganada, pois sabia que dificilmente me seria dado um bolo, mas tal como se costuma dizer, a esperança é sempre a última a morrer, fui mantendo, por isso,   a continuada expectativa de que aquela mulher pudesse, pelo menos uma vez  por engano, soçobrar a um fugaz momento de fraqueza  e dar-me um apetecido bolo.

Em vez disso, preparava uns pratinhos com alguns queques que me fazia levar às “senhoras”, suas inquilinas de um prédio ali perto, que constituía parte dos seus muitos bens. E lá ia a pobre criança, sujeita à tortura chinesa de ter de transportar para os outros os cheirosos bolos, mesmo ali por debaixo dos queixos! Contudo, sei com toda a certeza, que aquelas pessoas a quem levava os bolos mos teriam dado para eu mesma saborear, se  tivessem desconfiado da maldade  de que estava a ser vítima.

Mas, tempos houve, em que esta senhora também veio a provar do mesmo fel que tão prodigamente me serviu. Anos mais tarde e já viúva, provavelmente com medo de morrer à fome, tomou providências para aumentar as rendas dos seus inquilinos, argumentando que estas estavam muito baixas, pois não haviam sido alvo dos aumentos considerados justos. Os inquilinos, conhecendo-lhe sobejamente a avareza, e tendo em conta que nem sequer tinha filhos a quem deixar os bens, decidiram que lhe haviam de fazer este troço duro de roer, pelo que lhe fizeram saber que sim, que concordariam com o aumento desde que lhes fossem pagas todas as obras que cada um deles foi fazendo, um pouco à medida das necessidades.  Foi com visível contrariedade, que esta senhora teve de dar o dito por não dito, visto que seriam necessários vários anos para recuperar o dinheiro investido na obras de conservação e melhorias levadas a cabo pelos inquilinos, além de outras que, entretanto, estes já se haviam encarregado de exigir.  Mas o verdadeiro desprezo sentido por todos aqueles a quem tanto bajulou, teve a sua expressão máxima através da reacção  de um dos seus mais jovens rendeiros, quando uma vez, ao terem-lhe dito que a sovina, sua senhoria, havia sido atropelada por um carro, que com uma “pantufada”  a atirou ao ar partindo-lhe um pulso, disse desdenhoso:

E nem ao menos foram capazes de matar aquele ca&$lho!…

A todo o tempo dar tempo

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“A única pessoa que pode mudar de opinião é aquela que tem alguma.”

EDWARD WESTCOTT

A singela e despretensiosa abordagem que efectuei acerca do livro “O Esplendor de Portugal” de António Lobo Antunes, publicado no post anterior, suscitou alguns comentários que considero bastante interessantes, na medida em que representam o importante universo das pessoas que fazem da leitura um hábito salutar nas suas vidas. E como gosto de dizer coisas, decidi aproveitar esta oportunidade   inesperada, para fazer o gosto ao dedo e vir para aqui escrevinhar sobre os meus pensamentos, tal como já vem sendo habitual.

Ora bem, o que tenho hoje para dizer?:

Muito se tem escrito sobre António Lobo Antunes e acerca do seu talento como escritor. É uma verdade insofismável, já que reúne o consenso de todos, que as suas crónicas são  francamente apaixonantes e que  nos enlevam a alma tão alto que  quase deixamos de respirar, enquanto as lemos extasiados. Contudo, as opiniões exteriorizadas a respeito dos seus livros são controversas, algumas pouco  abonatórias. No meu simples e modesto jeito de ver as coisas, julgo que podem ser destacados diferentes tipos de reacção perante a alusão à densa e labiríntica prosa que caracteriza o escritor. Há quem demonstre conviver grandemente com a obra do escritor, daí o notável à-vontade na elaboração do comentário. No lado oposto estão os que nada querem com a escrita de António Lobo Antunes, que consideram enfadonha e nada estimulante. No ponto intermédio, encontram-se todos aqueles que já tiveram um qualquer desencanto com o estilo literário deste autor,  do qual até certo ponto se mantiveram arredios, mas que, ainda assim, estão na disposição de mudar drasticamente de ideias. É neste ponto que eu própria me encontro, embora esta minha postura seja devida a um recente acontecimento que me levou a essa conclusão. Eis então:

O primeiro livro do autor que li sem esforço foi “As Naus”, se digo que foi sem esforço é porque disso tenho a certeza, se não tê-lo-ia posto de lado, tão certo como dois mais dois serem quatro. O segundo livro que li, vorazmente, que disso também tenho a certeza, porque me escangalhei a rir com ele, foi “Memórias de Elefante. Quanto ao terceiro “O Meu Nome é Legião”, simplesmente não fui capaz de o ler. Ao cabo de algumas páginas fiquei com a sensação de que andava por ali a patinar sempre no mesmo, ainda para mais o livro é um autêntico calhamaço, o que além de não acrescentar qualquer entusiasmo, ainda acabou mas foi por tirar o pouco que ainda restava para poder prosseguir. Por fim desisti de uma vez e fiquei sem vontade de tentar ler mais algum livro do mesmo autor. Até que um dia destes,  alguém me emprestou “O Esplendor de Portugal”, a cuja leitura dei início, até porque sou uma pessoa que nunca toma decisões definitivas praticamente acerca de nada. Quanto a mim é sempre tempo de arrepiar caminho, quando se trata de mudar de ideias. Escusado será dizer que mais uma vez pensei desistir, principalmente no início, mas como não havia por que ter pressa, fui lendo sempre mais um pouco, até que me adaptei a este estilo de escrita densa e pesada que é a do escritor António Lobo Antunes. E acabei a leitura deste livro com a sensação que travei uma dura batalha mas da qual saí vencedora. Mas a noção de que verdadeiramente tinha terminado de ler “um peso pesado” da literatura mundial contemporânea, foi-me dada sentir quando constatei por estes dias, que ao folhear uns quantos livros relativamente recentes, de outros autores, muitos deles assomaram-se-me aos olhos como uns livrinhos de histórias de cacaracá!  Histórias sem grande substância e nem sempre muito bem escritas! É que isto de escrever bem, é exactamente como diz o autor aqui citado – “É preciso ter sofrido muito”!  Faço minhas estas palavras, porque na verdade, é preciso levar muita lambada da vida e muito pontapé, uns daqui e outros dacolá, para ganhar alma e assim ter algo que dizer ao Mundo! E foi nesses instantes que me ocorreu à ideia, que terei muito a ganhar se continuar a ler António Lobo Antunes, embora ainda não me sinta suficientemente segura para afirmar, que tornarei a tentar ler “O Meu Nome é Legião”. Mas há mais livros deste escritor!  Muitos mais! Quando hoje me aprestei aqui a contar esta minha experiência foi no intuito de incentivar outras pessoas a desejar sentir o mesmo que eu! É que depois de lermos uns quantos livros de António Lobo Antunes, não há mais livro nem autor  que meta medo!

O Esplendor de Portugal

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O Esplendor de Portugal

De

António Lobo Antunes

Percurso literário aqui

O Esplendor de Portugal é um romance da autoria de António Lobo Antunes que desenrola com admirável mestria  o cenário, qual quadro impressionista, da colónia de Angola, no apogeu da colonização e no degradante período pós-colonial. Através das suas personagens, nomeadamente aquando do seu papel de narradores, somos levados a viajar no tempo e no espaço do que foram as suas vidas.

António Lobos Antunes  usa de um estilo próprio que faz dele um género único, que se caracteriza por um tipo de escrita densa e enfática, muito propícia a adensar os dramas humanos que projecta nas personagens por si criadas, tornando-as deste modo e  inequivocamente, em perfeitos candidatos  a utentes de um consultório psiquiátrico. Sem dúvida que António Lobo Antunes alia as suas duas facetas profissionais. O profissional de medicina psiquiátrica caminha de mãos dadas com o profissional da escrita.

Este livro centra-se na história de uma família que se desmembra quando os filhos de Isilda, o Carlos, o Rui e a Clarisse fugidos à violência e aos horrores da guerra civil em Angola, demandam para Portugal e se refugiam no pequeno apartamento da Ajuda, em Lisboa, até que chegou um dia em que, Carlos, o irmão mestiço, dominado pela intolerância e pelo ressentimento dos traumas antigos, expulsa os irmãos de casa. Porém, no dia 24 de Dezembro de 1995, Carlos sente-se invadido por uma profunda nostalgia, que lhe traz à memória os seus dois irmãos, e sem mais nem para quê, dá por si a ansiar que estes o acompanhem na noite da consoada. Na demora e na incerteza da presença dos irmãos, embrenha-se num mundo de recordações do que foi sua existência em Angola.

Através dos sentimentos e traumas desta família, avó, pais e  filhos, personagens que vão emergindo no decorrer da acção, que ora avança, ora recua no espaço temporal, vamos tomando conhecimento de quão horrível foi a guerra civil de Angola, que a deixou transformada numa colossal poça de sangue, tão devastada que  “já nem Deus lhe podia valer”.

A   carcomida avó, mãe de Isilda,  é-nos retratada como alguém que nutre  um profundo ódio aos pretos, que se estende ao Carlos, o seu neto, que não era neto, mas mestiço. Contudo, no seu leito de morte foi à preta Josélia a quem dedicou aquele que seria o seu derradeiro sopro de vida. Despeitada e amargurada pelos desgostos da vida, sofreu na pele a humilhação de ter sido rejeitada  pelo marido, que fugia dela como o diabo foge da cruz, privando-a dos ansiados consolos conjugais, refugia-se dos frequentes embaraços no seu tão peculiar gesto de contar as gotas para a tensão, e fá-lo com tal meticulosidade, que todos os que este acto presenciam, dão por si a contá-las também.

A mãe, Isilda, que comprou o Carlos, fruto da traição do marido que se havia envolvido com uma preta e de cuja insídia se vingará entregando-se ao chefe da polícia, ali mesmo no escritório da sua casa, ao alcance da curiosidade dos filhos e perante as barbas do desditoso marido, que transformado num bandalho, se auto-destrói numa profunda dedicação aos gargalos  e ao gorjeio do tilintar de copos. A filha, Clarisse, toda ela vaidade e só com olhos para os homens. Tão absorvida  nos ensejos da sedução, que foi incapaz de perceber que o farrapo humano que era o seu pai, a amava imensamente, para quem Clarisse sempre foi a sua doce menina, ela que só tinha ouvidos não para os apelos paternos, mas para as buzinadelas que da rua a chamavam. O Rui, que para sua desgraça nasceu  epiléptico, em contrapartida, o único da família que era feliz, talvez  por ser doido. Ele e a sua espingarda de chumbinhos  eram a dupla  mais temida das redondezas, já que teimava em apontar a tudo quanto mexia.

O Esplendor de Portugal, que a mim me pareceu o esplendor da vergonha é, enfim, uma obra que alberga no seu coração, as cruas e nuas imagens do horror, do sofrimento, da solidão, do desencanto e da desesperança. Do pior que a vida tem.