Uma manhã de Natal

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Uma manhã de Natal

“Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons.”

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

No dia 25 de Dezembro de um já longínquo ano, uma menina de seis anos e o seu irmãozinho de dois dormiam complacentemente na cama que era dos seus pais. Assim que o dia amanheceu e os pais se levantaram haviam posto o menino a dormir junto da irmã, todavia, a menina já lá permanecia desde o meio da noite, altura em que havia acordado em sobressalto, assustada com um sonho mau, ou talvez nem fosse isso, talvez o medo lhe tivesse advindo da imaginação, que lhe fazia crer que as sombras que povoavam o seu quarto ganhavam vida e se agigantavam ameaçadoramente perto da sua pequena cama. Aos berros havia acordado os pais, que como já vinha sendo habitual, logo acudiram pressurosos e a salvaram de tão desalmado pranto, levando-a ao colo para a cama do casal. Uma vez afundada no conforto e na segurança que o ninho formado entre o pai e a mãe lhe conferia, com as costas quentes, tal como se costuma dizer, dava-se agora a ares de valente, fanfarrona e sobranceira ousava desafiar os difusos vultos que pairavam diluídos na penumbra do quarto. Pois agora que se avultassem à vontade e viessem ter com ela!…  Mais protegida do que nunca, aninhada entre as duas pessoas que no mundo mais a amavam, reconheceu que, estranhamente, nada  perturbava a santa placidez que naquele quarto reinava.

Na manhã desse dia 25 de Dezembro, estas duas crianças foram acordadas em simultâneo para lhe serem colocadas nas mãozitas as suas prendas de Natal. A menina olhava para os embrulhos sem mesmo entender o que eram prendas de Natal, pela primeira vez na sua curta existência tomava a noção de que o dia de Natal era um dia diferente de todos os outros, pois estavam-lhe a ser dadas prendas, ela que até agora não sabia o que era uma prenda, mas sabia o que eram brinquedos, por os já ter visto nas mãos de outras crianças. Abriu uma das prendas e descobriu maravilhada um pequeno ferro e uma tábua de engomar. O ferro era quase como o da mãe, que era aquecido com brasas, que electricidade era um luxo a que ainda não haviam tido direito. Pegou na segunda prenda, devagar e com muitas cautelas começou a  desembrulhar e viu extasiada uma fina e delicada tablete de chocolate, que desprendia prodigamente um doce, inebriante e aveludado aroma que lhe turvou os sentidos, entontecendo-a! Jamais esta menina iria esquecer o enlevo daquele momento único, passados anos e já adulta compreendeu que nenhuma tablete  do mundo valerá tanto como aquela, porque foi o seu primeiro chocolate.

Olhou para o seu irmãozinho, aquele bebé adorável que nunca chorava, e viu-o a braços com  idêntica surpresa, as suas minúsculas mãozinhas seguravam um carrinho de plástico e uma tablete igual à dela. Nos dias que se seguiram as duas crianças não deram tréguas aos seus brinquedos, afinal, os seus primeiros brinquedos. O  carrinho de vez em quando já sem rodas, até que as perdeu definitivamente, desaparecidas sabe lá Deus onde, pois que nunca mais foram vistas. Por seu lado a menina insistia que queria brasas no ferro, queria brincar a sério, isto é, queria verdadeiramente engomar roupa para ajudar a mãe. Também queria assar caracóis, como uma vez havia visto a mãe fazer, quando da rua num chuvoso dia a menina havia trazido para casa um grande caracol, que a mãe polvilhou com sal e meteu dentro do ferro de onde começou a ouvir-se um chiado, a menina pensou ser o choro do caracol a morrer queimado, o que lhe fez ficar com pena do azarado caracol, mas comeu-o na mesma! Não foi lá grande petisco… mas não havia mais tabletes…

Esta menina era eu…
A todos quantos me visitam desejo que tenham um Natal tão feliz quanto o fui neste dia!