Razão de ser

Publicado por: Milu  :  Categoria: PARA PENSAR, Razão de ser

 

tiempo3

 

O grande inimigo da verdade não é muito frequentemente a mentira (deliberada, controvertida e desonesta), mas o mito – persistente, persuasivo, e não realista.”

 

John Kennedy

Notas breves retiradas durante a leitura do livro “O Mito do Retorno” de Mircea Eliade, que ajudam a compreender como se formam e se propagam os mitos.

♦♦♦

 

“O valor mágico e farmacêutico de certas ervas deve-se a um protótipo celeste da planta, ou o facto de ela ter sido colhida pela primeira vez por um deus. Nenhuma planta é milagrosa em si mesma, mas apenas pela sua participação num arquétipo ou pela repetição de determinados gestos e palavras que, isolando a planta do espaço profano, a consagram. Assim, duas fórmulas mágicas anglo-saxónicas do século XVI, que se costumava pronunciar para a colheita dos simples, explicam a origem da sua virtude terapêutica: elas cresceram pela primeira vez no monte sagrado do Calvário:

«Salve, erva-santa, que cresces sobre a terra, tu curas todas as feridas; em nome do bom Jesus, eu te colho» (1584).

«Tu és santa, Verbena, tu que cresces sobre a terra, pois foste encontrada primeiro no monte Calvário. Tu curaste o nosso redentor Jesus Cristo e fechaste as suas feridas; em nome do Pai, do Filho e do espírito Santo, eu te colho».

A eficácia destas ervas é atribuída ao facto de o seu protótipo ter sido descoberto num momento cósmico decisivo (“naquele tempo”) no monte Calvário. Elas foram consagradas por terem curado as feridas do Redentor. A sua eficácia só é válida pelo facto de aquele que as colhe repetir o gesto primordial da cura. É por isso que uma antiga fórmula mágica diz:

«Vamos colher plantas para as aplicar nas chagas do Salvador»” (p. 40-41).

“Para os cristãos, as ervas medicinais eram eficazes por terem sido encontradas pela primeira vez no monte Calvário. Para os antigos, as ervas possuíam virtudes milagrosas por terem sido descobertas pela primeira vez por deuses.

«Betónica, tu que foste descoberta pela primeira vez por Esculápio, ou pelo centauro Quíion…», assim reza a invocação recomendada num tratado ervanário” (p. 41).

“Conforme os exemplos descritos é-nos revelada uma concepção ontológica «primitiva»; um objecto ou uma acção só se tornam reais na medida em que imitam ou repetem um arquétipo. Assim, a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação; tudo o que não possui um modelo exemplar é “desprovido de sentido”, isto é, não possui realidade” (p. 44).

“A memória popular tem dificuldade em reter acontecimentos «individuais» e figuras »autênticas». Ela recorre a outras estruturas: categorias em vez de acontecimento, arquétipos em vez de personagens históricas. A personagem histórica é assimilada ao modelo mítico (herói, etc.) e o acontecimento é integrado na categoria das acções míticas (lutas contra um monstro, combate entre irmãos, etc.)” (p. 52).

“(…) o grande mérito do Cristianismo foi ter valorizado o sofrimento, transformando o aspecto negativo da dor pelas suas qualidades salvadoras, instrumento de purificação e de elevação espiritual” (p. 102).

“O conceito da necessidade histórica gozará de uma actualidade cada vez maior: de facto, todas as crueldades, aberrações e tragédias da História foram e ainda são justificadas pelas necessidades do «momento histórico» (p. 151).

“Actualmente, quando a pressão histórica já não permite qualquer evasão, como poderá o homem aceitar as catástrofes e os horrores da história – desde as deportações e os massacres colectivos até à bomba atómica – se, em contrapartida, não se vislumbra qualquer sinal, qualquer intenção trans-histórica, se esses acontecimentos não são mais do que o jogo cego das forças económicas, sociais ou políticas, ou, pior ainda, o resultado das «liberdades» que uma minoria conquista e exerce directamente no panorama da história universal. No passado, a humanidade pôde aceitar os sofrimentos que acabamos de mencionar: eles eram considerados como um castigo de Deus, eles só puderam ser suportados precisamente porque tinham um significado” (p. 154).

LabyrinthMinatoaur

Bibliografia

ELLIADE, Mircea. (1990). O Mito do Eterno Retorno. Círculo de Leitores. Lisboa.