Cogitações

Publicado por: Milu  :  Categoria: Cogitações, SOCIEDADE

 

“A árvore boa dá bons frutos”

Mateus 7
“…Pelos seus frutos os conhecereis. É possível alguém colher uvas de um espinheiro ou figos das ervas daninhas? Assim sendo, toda árvore boa produz bons frutos, mas a árvore ruim dá frutos ruins. A árvore boa não pode dar frutos ruins, nem a árvore ruim produzir bons frutos. …”

 

De vez em quando dou por mim a pensar e a reviver as minhas inquietações de quando criança. Uma delas era a confusão que me fazia observar que os adultos, sim, os adultos, não adoptavam para si o comportamento que exigiam aos outros. Foram muitas as situações de incongruência que a minha sagacidade de criança detectou. Uma delas tinha a ver com as práticas religiosas aliadas ao quotidiano. Tendo sido  uma menina que frequentou a catequese regularmente, que por norma tinha lugar aos domingos, a que se seguia uma missa, foram, por isso mesmo, pródigas as oportunidades surgidas para observar o comportamento dos adultos, especialmente aqueles que eu conhecia de ginjeira, passe a expressão.

Aquelas mesmas pessoas que eu via ali, na igreja, de terço nas mãos, cabeça meio à banda numa expressão compungida de fé, expressão que  exacerbavam por altura da comunhão, que eu tinha especial interesse em observar até ao mínimo detalhe, (criança!) ao ponto de lhes perceber os movimentos que faziam com a língua, no esforço de descolar a hóstia do céu da boca, seriam as mesmas que eu conhecia, tão bem, demasiadamente bem, e a quem costumava surpreender actos, intenções pouco edificantes e conversas maldosas? Sobretudo a perversidade nas conversas! Sobre os vizinhos, amigos, conhecidos, filhos e filhas dos outros, de quem não gostavam, ou simplesmente num acto de recreio, para espantar o marasmo e a insatisfação das suas próprias vidas…

Jeremias 11:19
“Mas eu era como um cordeirinho manso, que se leva à matança; não sabia que era contra mim que tramavam, dizendo: ‘Destruamos a árvore com o pão de sua seiva, o seu fruto! Avante! Cortemo-lo da terra dos viventes para que o seu nome não seja mais lembrado!”

Durante a missa, onde até faziam questão de comungar, tomar o Cristo, não ouviam  estas pessoas as mesmas coisas que eu? Que era feito, então, da bela mensagem de Jesus? Entrou por um ouvido e de me imediato saiu pelo outro?? Belos exemplos que se dão às crianças e jovens em formação… Se é verdade que se educa pelo exemplo, então, estamos conversados.

Por outro lado, também compreendo que uma coisa é o que se ouve na igreja, outra coisa é fora dela, no palco da vida, onde vigora o princípio do salve-se quem puder. Mas então chegaremos à conclusão de que praticar uma religião de pouco vale, pois se não nos faz mais justos… Um dia todos chegarão à conclusão que  uma educação sólida e bem orientada é bem mais eficiente, coisa que não interessa ao poder instituído, que nos quer ignorantes,  pois é assim que nos “governam/roubam” mais facilmente…

Tiago 3:17,18
“Porém, a sabedoria que vem do alto é antes de tudo pura, repleta de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem hipocrisia. …”

A propósito destas minha cogitações cito Maria Amália Vaz de Carvalho, (2008) no seu livro “Cartas a Luísa” que nos diz assim, nestes termos:

“A ideia religiosa, que devia transformar-se, acompanhando a transformação fatal das sociedades, ficou para os católicos encerrada na antiga fórmula, a cada instante contrariada, ou transbordada pelas modificações operadas em tudo o mais. Daqui a eterna luta da consciência feminina, a quem ensinam a acreditar uma coisa e a praticar outra. O catolicismo imprime à alma juvenil um molde que o mundo deforma ou altera imediatamente.

-Onde está a verdade?! – pergunta o apavorado espírito da criança que vai ser mulher.

E os que a cercam, em vez de a elucidarem, desnorteiam-na dando-lhe o exemplo do absoluto contraste, que existe entre tudo que se prega e tudo que se executa.

– O melhor é não pensarmos nisto.

E a esta abstenção de todo o pensar elevado, e a esta demissão egoística de todas as fecundas lutas da consciência segue-se a gélida indiferença, o mal disfarçado cepticismo, que descansa à sombra estéril de todas as práticas minuciosas e desalumiadas do mínimo vislumbre de fé. É tão delicado, tão melindroso, tão cheio de perigos este assunto, que só muito a medo me atrevo a falar dele, mesmo ao de leve.

Reconheço, porém, que, para nós mulheres, ele é dos mais importantes, pois que tem fundas ramificações em todos os actos da nossa vida, em todas as determinações da nossa razão” (Carvalho, 2008: 28-29).

Bibliografia

 

CARVALHO, V. A. Maria. (2008). Cartas a Luísa. Grandes Autores Portugueses. Colecção 120 Anos JN. Quidnovi Editora. Matosinhos.

A inefável super mulher

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“A opressão não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”

Simone Beauvoir

Para quem me lê, não terá passado despercebido, que canto loas à libertação da mulher. Que ela seja o que entender, a sua heroína, o seu ídolo, que se ame, que se mime, que aprenda a viver com orgulho de si mesma.

Que tenha paz, finalmente.

Para tal, vou contribuindo com a minha parte, publicando textos esclarecedores, através dos quais será possível compreender que tudo, e como tudo, à nossa volta, assenta em construções sociais, elaboradas de forma a defender os interesses de apenas uma parte da humanidade – os homens – eles que, também, são umas vítimas, se bem vistas as coisas. Ora, se tudo é construído, então tudo também pode ser desconstruído, para que uma parte da humanidade não sobreviva à custa da opressão da outra parte. Contudo, é pertinente que nos interroguemos:   Será que a mulher liberta existe verdadeiramente??

De acordo com Alborch (2004: 91) a mulher liberta não existe.   Ouçamo-la, para compreender o fenómeno e, por conseguinte, tentar descortinar o antídoto para os males apresentados, e lutar pela independência económica, sobretudo, independência mental da mulher, que isso sim, é a libertação, porque é aprender a dizer “NÃO” :

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“A vida humana não se centra só em pensamentos, sentimentos e actividades diversas. A sua essência encontra-se na relação que as pessoas estabelecem com as tarefas do dia a dia e na capacidade de elas próprias hierarquizarem as formas mediante as quais as desempenham. Esta possibilidade de reconhecimento depende, por sua vez, da relação que os indivíduos mantêm com o quotidiano, tal como afirma Agnes Heller.

Através dos rituais diários abstrai-se do que  é traumático, ao mesmo tempo que se anestesiam as tensões por ele criadas. As rotinas domésticas constituem, assim, uma espécie de bálsamo, e há mulheres que não as põem em causa. Ordem, obediência, fazer o que os outros esperam delas… As rotinas caracterizam-se por exigências excessivas a si e aos outros na esfera doméstica. Rotinas herdadas que reproduzem na sua vida e na educação dos filhos e das filhas. Apesar de começarem a verificar-se mudanças significativas.

Agnes Heller sublinha que existe uma esquizofrenia das mulheres baseada na dupla jornada, a qual poderia alargar-se ao conceito de vida dupla, segundo Marcela Lagarde, e uma síndrome de culpa como expressão do sentimento de falta de completude, constitutivo da nova identidade de numerosas mulheres. Vivem num estado de dificuldade e confusão para integrar linguagens, tempos, espaços e papéis diferentes do ponto de vista social e cultural, são «mulheres transbordadas», no dizer de Elena Arnedo.

Muitas mulheres profissionais transmitem a sensação de estar onde não deviam estar. María Ángeles Sallé, presidente da consultora Enred e da Fundación Directa, fez um relato, no Congresso Internacional de Mulheres Empresárias (Setembro de 2001, Bilbau), dos obstáculos e entraves sociais e ideológicos que se apresentam à mulher trabalhadora. Referia-se às «frases familiares»: «Não foste ao jantar organizado pelo chefe», «Pareces mais uma madrasta do que uma mãe», «A tua casa tornou-se uma pocilga», «Não és suficientemente complacente para com o teu marido», «Esqueceste-te de comprar a prenda para a festa do colégio do miúdo.» A empresária lamentava o facto de as mulheres terem assumido que, apesar da sua entrada no mundo profissional, continuam a ser depositárias míticas» da paz e da ordem no lar. «Temos uma atitude que integra a nossa identidade doméstica e materna». A consequência destas tarefas sobre-humanas é a culpa. «Culpabilizamo-nos por não cumprir na perfeição os ditames externos e a nossas próprias prioridades.»

Ao ser interiorizada a responsabilidade doméstica torna-se um encargo iniludível. As mulheres pagam um elevado tributo quando sentem que delegam as suas responsabilidades, pois o sentimento de culpa não tarda a aparecer, seguido de uma sensação de estranheza e perplexidade por não se adaptarem «ao que outras mulheres fazem» (Alborch, 2004: 91-93).

(…).

“A propósito da culpabilidade, afirmava María Ángeles Sallé: «Temos uma capacidade infinita de nos culpabilizarmos, de reivindicar o sofrimento como condição para o êxito, temos vocação para complexificar tudo e para nos responsabilizarmos por tudo; temos insegurança e o desconhecimento sistemático de nós próprias; temos uma autolimitação e uma ambivalência perante o poder.» Apesar de tudo, aceitarmo-nos constituiu um passo de gigante que provocou em nós sentimentos de estabilidade e firmeza cujas raízes se encontram nas outras mulheres, como assinalámos. O século XX terminou pondo fim a clausuras e afastamentos, privações de liberdade e de propriedade, proibições e negação do reconhecimento das mulheres” (Alborch, 2004: 93).

Bibliobrafia

ALBORCH, Carmen. (2004). Mulheres contra mulheres. Editorial Presença. Barcarena.

Dores Femininas

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mulheres

“As mulheres serviram todos estes séculos como espelhos, possuindo o poder de reflectir a figura do homem duas vezes maior que o seu tamanho natural”.

Virginia Woolf

Um dias destes, no elenco dos meus amigos na rede social o Facebook, encontrei uma partilha de uma crónica da autoria de Miguel Esteves Cardoso, com o título “Calem-se!”, que começa assim, deste modo: “Portuguesas e portugueses” não é apenas um erro e um pleonasmo: é uma estupidez. Pode ser lido aqui, a qual me mereceu um comentário, que lá deixei, uma vez que me pareceu que o MEC ignorou o contexto em que vulgarmente esta expressão é proferida.

O meu comentário, no qual recomendava cuidado a lidar com estas questões, que estão directamente ligadas à questão de género, não foi bem recebido, porém, essa não foi uma reacção inesperada, uma vez que já é bem sabido que, quando o assunto é mulher, tudo se trata com uma ligeireza aviltante…

Quanto eu teria apreciado, que o meu distinto interlocutor, me tivesse, ao menos, inquirido sobre os porquês da minha  desagradada interpretação ao artigo do MEC…

Ter-lhe-ia, certamente, e com muito empenho, explanado que  a expressão «portuguesas e portugueses», que costuma ser proferida  num contexto de comunicação em que os emissores são a classe política, não deve ser interpretada literalmente, mas antes através do que ela representa, do que ela simboliza.

Miguel Esteves Cardoso entende que a palavra «portuguesas» está a mais, mas esta aparentemente deslocada e redundante referência às «portuguesas» não é proferida por erro, por burrice ou descuido. Ela tem um significado profundo – pretende enfatizar que as mulheres também são chamadas à esfera pública.  Reiterando, quando o Presidente da República ou Primeiro Ministro  iniciam os seus discursos  com a expressão «portuguesas e portugueses» ou vice versa, há nisso uma nobre intenção, a de  fazer justiça para com as mulheres que até à Revolução dos Cravos, em 1974, foram sistematicamente excluídas dos direitos civis e políticos, relegadas para a domesticidade. No fundo, e tendo em linha de conta a fraca participação das mulheres quando o assunto é a discussão política, consiste numa interpelação directa às mulheres para que se consciencializem de que já não estão confinadas ao governo doméstico, que os tempos são outros e que não desperdicem um direito que tanto lhes custou a conquistar – o direito de decidir sobre as políticas que governam o seu país e que têm efeitos sobre as suas vidas.

Para os que não têm consciência das injustiças das quais as mulheres foram vítimas, nunca será demais recordar o longo percurso que foi necessário percorrer, que só a partir da  implantação da República em Portugal foi dada alguma esperança às mulheres, através das organizações feministas, que  exigiam  para a mulher o direito do voto, uma vez que “ele representava o derradeiro meio de fazer chegar as pretensões  do sexo feminino junto dos governantes e de pressioná-los (…)” (Esteves, 1998: 52).

Revisitemos então a História de Portugal a partir do ano de 1911. O texto  abaixo transcrito é constituído por breves excertos de uma obra da autoria de João Esteves intitulada “As Origens do Sufragismo Português”, que considerei suficientes para documentar esta questão do voto e com isso perceber a importância e a justiça no uso da elocução “portuguesas e portugueses”, assim mesmo, desta maneira!

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“A intervenção das principais feministas em actividades associativas, cívicas e políticas, teve o seu impulso nos derradeiros anos da Monarquia e coadunava-se com os esforços desenvolvidos pelo Partido Republicano de fazer triunfar a República” (Esteves, 1998: 45).

“Foi nesse meio cultural que foram ganhando consciência da importância do seu discurso e não surpreende que, após a implantação da República, se verificasse a expansão, se não mesmo explosão, das suas ideias, procurando explorar-se com eficácia o estreito relacionamento entre a elite das mulheres feministas e os políticos republicanos, muitos dos quais passaram a desempenhar cargos influentes. E estes, ainda que de uma forma passiva, acabaram por funcionar como agentes de causas defendidas pelas mulheres, ao não se demarcarem delas, considerando-as reivindicações justas, como se pode inferir de entrevistas e comentários de personalidades destacadas do P.R.P., deputados e ministros, não sendo sequer excepção o Presidente da República. Pela primeira vez, os governos eram interpelados de forma sistemática sobre o voto feminino (…)” (Esteves, 1998: 45).

“Mas uma coisa era a familiaridade e o afável relacionamento com a elite feminista, assumidamente republicana e maçónica, e outra a decisão de atribuir direitos, como o voto, a todas as mulheres. O receio de este vir a ser utilizado pelas forças que sempre se tinham oposto à República, assim como o medo da mudança que tal decisão implicaria, e que dificilmente seria controlada pelos republicanos, levou-os a adiarem eternamente esta sua promessa, fundamental para quem acreditava no sufrágio universal” (Esteves, 1998: 46).

«Quanto ao voto da mulher, reclamo-o como um direito sagrado, confessando que acho um cúmulo da absurdeza pedir-se à mulher que faça cidadãos para uma pátria em que ela é uma pária, sem direitos civis nem políticos»

Ana de Castro Osório in (Esteves, 1998: 51).

“Com o novo regime, o sufrágio feminino ganhou definitivamente oportunidade e passou a constar das reivindicações feministas. A Associação de Propaganda Feminista assumi-o desde a sua fundação, não entendendo o direito de voto como um fim em si, «nem uma ambição de vaidade, mas simplesmente um meio de conquistar a justiça, que nos falta». Ele representava o derradeiro meio de fazer chegar as pretensões do sexo feminino junto dos governantes e pressioná-los no sentido de modificar o aflitivo panorama, «visto que, enquanto a mulher estiver afastada da questão social e política os seus direitos serão menos lembrados»” (Esteves, 1998: 52).

“As mulheres deveriam poder votar, e ser elegíveis, não só porque constituíam mais de metade da população, «suportam as leis e pagam os impostos», mas também porque só interferindo na legislação que lhes dizia respeito seria possível dotá-las de outro enquadramento legal e social” (Esteves, 1998: 52).

“Embora Maria Veleda observasse, acertadamente, que «pela propaganda escrita, nunca as sufragistas portuguesas conseguirão o que pretendem (…) só por meio de actos,  mais ou menos irreverentes mais ou menos corajosos, conseguirão impor-se e dominar o preconceito», Carolina Beatriz Ângelo, médica,  protagonizou um desses actos, cujos efeitos se fizeram sentir durante os meses de Abril, Maio e Junho de 1911 (…)” (Esteves, 1998: 54).

[Carolina Beatriz Ângelo num acto de irreverência aproveitou uma lacuna na lei e foi a primeira mulher a votar!!!]

“Na sequência da publicação do decreto com força de lei de 14 de Março de 1911, correspondendo à primeira lei eleitoral da República, da autoria do Ministro do Interior, António José de Almeida, a médica portuguesa sentiu-se com direito a recensear-se e a votar. Embora não contemplasse explicitamente o sufrágio feminino, também não o rejeitava: a lei estipulava quem podia e quem não podia ser eleitor e elegível, o que, porém, «ali não se diz é que tal e tal não pode ser eleito ou eleitor… pelo facto de ser mulher. Ora, se assim é, porque motivo hão-de as mulheres ser excluídas da urna?»” (Esteves, 1998: 54).

“Apesar de desiludida com o seu conteúdo, e convencida de que se estava perante um lapso do legislador, ao não mencionar que a lei só abrangia os homens, Beatriz Ângelo explorou até às últimas possibilidades esta omissão (…) exigiu a inclusão do seu nome no recenseamento eleitoral , invocando o artigo que estipulava as categorias de eleitor: tinha mais de 21 anos de idade, sabia ler e escrever e era chefe de família, por ser viúva e ter uma filha pequena, que sustentava pelo seu trabalho” (Esteves, 1998: 54).

(…) já na Assembleia Eleitoral de Arroios, Carolina Beatriz Ângelo ainda deparou com alguma renitência por parte do seu presidente, que consultou a mesa sobre a legalidade daquele acto, por lhe ter constado que «o governo provisório tinha consultado o Presidente da República acerca da sentença do juiz que mandou incluir o nome daquela senhora no recenseamento eleitoral e ainda por que a aceitação da lista representava o reconhecimento do direito de voto às mulheres»” (Esteves, 1998: 60).

“Foi, até ao fim, um voto arduamente conquistado, cujo mérito não pode ser dissociado da sua persistência e da decisão judicial. Por se tratar de um caso isolado e ao ter sido a primeira, e única, mulher a exercer aquele direito durante a 1ª República, este acto de rebeldia perdurou na memória das feministas portuguesas, transformando-se numa referência obrigatória, constantemente lembrada nas páginas da imprensa feminina e com reflexos internacionais” (Esteves, 1998: 60).

Este voto, e respectiva mediatização, era a prova de que começava a valer a pena o combate pelos direitos da mulher, mesmo quando todas as circunstâncias pareciam adversas e convidavam ao desânimo e à passividade. Magalhães Lima apelidou-o de acontecimento histórico, «que marcará a primeira etapa no movimento feminista português», considerando Beatriz Ângelo «uma percursora que deve merecer os aplausos de todos os que se dizem democratas». Afonso Costa denomina-la-á «uma sufragista prática» e agradeceu-lhe ter votado nele” (Esteves, 1998: 62).

“Embalada pelo êxito, a APF  (Associação de Propaganda Feminista) enviou, pouco tempo depois, em Julho de 1911, uma representação à Assembleia Nacional Constituinte, que estava a elaborar a futura Constituição, onde abordava somente a questão do sufrágio feminino, dando cumprimento ao que estava consignado no § 4 do art. 2º dos seus Estatutos.

Após recordar que o Partido Republicano tinha defendido a igualdade entre os dois sexos, mostrando-se esperançada que a República nascente não cometesse «o erro imperdoável que a grande Revolução Francesa cometeu negando à mulher todos os direitos políticos», reclamava-se não o sufrágio universal, «como à luz da razão e da ciência seria justo», mas somente o «direito de voto para as mulheres diplomadas em cursos superiores; – para as mulheres diplomadas com o curso completo de Instrução Primária Superior; – para as mulheres chefes de família que saibam ler e escrever; – para as mulheres comerciantes que saibam ler e escrever». Argumentava-se que «todas estas mulheres, de idade superior a 21 anos, sendo independentes moral e economicamente, não podem, por uma imposição do preconceito e da rotina, continuar na República a viver no regime vexante dos tutelados, fora da sociedade, como menores e interditos»” (Esteves, 1998: 63-64).

Apesar desta reivindicação abranger uma minoria, os constituintes republicanos não quiseram, ou não souberam, cumprir o que sempre tinham prometido e, mais grave ainda, continuavam a achá-la uma exigência justa, expressa em várias intervenções públicas. Só que a distância que ia do discurso político, e muitas vezes paternalista, à sua concretização acabou por nunca ser superada, alimentando-se as feministas de promessas, sempre adiadas, dos dirigentes do novo regime” (Esteves, 1998: 67).

“Em 1912, durante a discussão, no Senado, de novo projecto de lei eleitoral, tornou a surgir a questão do sufrágio feminino. (…) tendo-se acabado por se aprovar, na sessão do dia 2 de Julho, um aditamento deste último senador para que o voto fosse concedido às mulheres maiores de 25 anos, que tivessem um curso superior, secundário ou especial” (Esteves, 1998: 67-68).

“E embora se tratasse de uma lei que apenas contemplava o sufrágio restrito, reconhecia-se-lhes três vantagens: incentivava as mulheres a estudar e a tirar um curso; evitava uma eventual manipulação do voto feminino pelas forças mais reaccionárias e anti-republicanas; e era de fácil aplicação, pois «em Portugal ainda há bem poucas diplomadas (…)” (Esteves, 1998: 68).

“Para não variar, as esperanças foram frustradas, devido à não ratificação da proposta pela Câmara dos Deputados, que só discutirá o Código eleitoral no ano seguinte, aprovando-se nova legislação em 3 de Julho de 1913, sem se contemplar qualquer pretensão feminista. Então, e durante a discussão do artigo 1º, o deputado Jacinto Nunes ainda propôs, sem resultado, a seguinte alteração: «são eleitores para os cargos legislativos e administrativos todos os cidadãos portugueses dum e doutro sexo, maiores de 21 anos, ou que completem idade até ao termo das operações do recenseamento,  que estejam no gozo dos seus direitos civis e políticos, que saibam ler e escrever, ou tenham pago no ano anterior qualquer contribuição directa e tenham o seu domicílio no território nacional»” (Esteves, 1998: 70).

“Mas o código eleitoral votado especificava que só podiam ser cidadãos eleitores os portugueses do sexo masculino que tivessem mais de 21 anos, estivessem no gozo dos seus direitos civis e políticos e que soubessem ler e escrever. Negava-se, mais uma vez, às mulheres «o voto que já moralmente lhes foi concedido pelo poder judicial e pelo senado», concluindo-se da pior maneira «a certeza de que não é possível que a primeira Câmara da República Portuguesa, que queremos justa, democrática e progressiva, cometa uma violência semelhante».

…….Cometeu-a” (Esteves, 1998: 70).

“Em 1915, a propósito das eleições de 13 de Junho, Maria Luz denunciou o absurdo da legislação, comparando a situação dos homens, quase analfabetos, que podiam votar e decidir o futuro do país, sendo frequentemente manobrados pelos caciques locais, com a dela que, «apesar do meu diploma, dos meus aturados estudos, do meu entusiasmo pelos ideais justos e nobres, sou incapaz de ter direitos políticos, porque, sendo mulher, pertenço à categoria… dos inconscientes. E na mesma categoria se incluem as mulheres ilustres que em Portugal se dedicam às letras, às ciências e às artes!». Era revoltante que a lei considerasse «que um camponês boçal é mais apto para compreender os problemas sociais e interessar-se pela vida pública de um país do que uma mulher inteligente e instruída!»” (Esteves, 1998: 70-71).

“Anos depois, voltou a pronunciar-se no mesmo jornal, considerando que não fazia sentido «que o ignorante barbado seja um valor na vida social, ao passo que a mulher diplomada seja dela excluída, como as crianças, ou como os loucos»” (Esteves, 1998: 71).

“Tal como sucedeu noutros países, nomeadamente em França e na vizinha Espanha, o argumento utilizado para irem delongando a sua concretização [direito do voto feminino] era a fanatização e o atraso cultural da mulher. Esta era ainda manipulada pelo clero, o voto acabaria por não ser verdadeiramente livre  e só serviria para ajudar os inimigos da República tão recentemente implantada. Outras vezes, num discurso ainda mais retrógrado, invocava-se a natureza diferente de ambos os sexos, não se coadunando o papel político activo da mulher com a imagem pacificadora e angelical que se continuava a defender. (…) É que o que estava subjacente à recusa da intervenção feminina na esfera política era a própria incapacidade de considerar a mulher como igual, merecedora de idênticos direitos e deveres” (Esteves, 1998: 74).

“Foi necessário esperar vinte anos sobre a rejeição da Assembleia Nacional Constituinte para que, em 1931, um regime tão oposto aos ideais da República concedesse o sufrágio às mulheres, ainda que apenas às maiores de 21 anos que fossem chefes de família ou possuíssem um curso secundário ou superior, comprovado pelo diploma respectivo, enquanto ao homem se exigia simplesmente o saber ler e escrever” (Esteves, 1998: 75-76).

“Só em consequência do 25 de Abril de 1974 é que passou a vigorar em Portugal o sufrágio universal, podendo votar todos os cidadãos maiores de 18 anos, independentemente do sexo”. (Esteves, 1998: 76).

 

Bibliografia

ESTEVES, João. (1998). As Origens do Sufragismo Português. Bizâncio. Lisboa.