O peso do ser

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“Querias ser livre. Para essa liberdade, só há um caminho: o desprezo das coisas que não dependem de nós.”

Epicteto

“Ao fim de «três décadas gloriosas» que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial – as três décadas de crescimento sem precedentes e de estabelecimento da riqueza e da segurança económica no próspero Ocidente – Herbert Marcuse reclama:

 

«Em relação a hoje e à nossa própria condição, creio que estamos diante de uma situação nova na história, porque temos que ser libertados de uma sociedade rica, poderosa e que funciona relativamente bem… O problema que enfrentamos é a necessidade de nos libertarmos de uma sociedade que desenvolve em grande medida as necessidades materiais e mesmo culturais do homem – uma sociedade que, para usar um slogan, cumpre o que prometeu a uma parte crescente da população. E isso implica que enfrentamos a libertação de uma sociedade na qual a libertação não conta com uma base de massas.»

 

Devermos-nos emancipar, «libertar-nos da sociedade», não era problema para Marcuse. O que era um problema – o problema específico para a sociedade que «cumpre o que prometeu» – era a falta de uma «base de massas» para a libertação. Para exemplificar: poucas pessoas desejavam ser libertadas, menos ainda estavam dispostas a agir para isso, e virtualmente ninguém tinha certeza de como a «libertação da sociedade» poderia distinguir-se do estado em que se encontrava.

«Libertar-se» significa literalmente libertar-se de algum tipo de grilhão que obstrui ou impede os movimentos; começar a sentir-se livre para se mover ou agir. «Sentir-se livre» significa não experimentar dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou concebíveis.

Como observou Arthur Schopenhauer, a «realidade» é criada pelo acto de querer;

é a teimosa indiferença do mundo em relação à minha intenção, a relutância do mundo em se submeter à minha vontade, que resulta na percepção do mundo como «real», constrangedor, limitante e desobediente. Sentir-se livre das limitações, livre para agir conforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, a imaginação e a capacidade de agir: sentimo-nos livres na medida em que a imaginação não vai mais longe que os nossos desejos e que nem uma nem os outros ultrapassam nossa capacidade de agir. O equilíbrio pode, portanto, ser alcançado e mantido de duas maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos e/ou a imaginação, ou ampliando nossa capacidade de acção. Uma vez alcançado o equilíbrio, e enquanto ele se mantiver, «libertação» é um slogan sem sentido, pois falta-lhe força motivacional.

Tal uso nos permite distinguir entre liberdade «subjectiva» e «objectiva» – e também entre «necessidade de libertação» subjectiva e objectiva. Pode ser que o desejo de melhorar tenha sido frustrado, ou nem tenha tido oportunidade de surgir (por exemplo, pela pressão do «princípio da realidade» exercido, segundo Sigmund Freud, sobre a busca humana do prazer e da felicidade); as intenções, fossem elas realmente experimentadas ou apenas imagináveis, foram adaptadas ao tamanho da capacidade de agir, e particularmente à capacidade de agir razoavelmente – com chance de sucesso. Por outro lado, pode ser que, pela manipulação directa das intenções – uma forma de «lavagem cerebral» – nunca se pudesse chegar a verificar os limites da capacidade «objectiva» de agir, e menos ainda saber quais eram, em primeiro lugar, essas intenções, acabando-se, portanto, por colocá-las abaixo do nível da liberdade «objectiva».

A distinção entre liberdade «subjectiva» e «objectiva» abriu uma genuína caixa de Pandora de questões embaraçosas como «fenómeno versus essência» – de significação filosófica variada, mas no todo considerável, e de importância política potencialmente enorme. Uma dessas questões é a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de facto liberdade; que as pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser «objectivamente» satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentarem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornarem genuinamente livres. O corolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser juízes incompetentes da sua própria situação, e devem ser forçadas ou seduzidas, mas em todo o caso guiadas, para experimentar a necessidade de ser «objectivamente» livres e para reunir a coragem e a determinação para lutar por isso. Ameaça mais sombria atormentava o coração dos filósofos: que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e rejeitassem a perspectiva da libertação pelas dificuldades que o exercício da liberdade pode acarretar.

 

As bênçãos mistas da liberdade

 

Numa versão apócrifa da Odisseia (“Odysseus und die Schweine: das Unbehagen an der Kultur”), Lion Feuchtwanger propôs que os marinheiros enfeitiçados por Circe e transformados em porcos gostaram da sua nova condição e resistiram desesperados aos esforços de Ulisses para quebrar o encanto e trazê-los de volta à forma humana. Quando informados por Ulisses de que ele tinha encontrado as ervas mágicas capazes de desfazer a maldição e de que logo seriam humanos novamente, fugiram numa velocidade que o seu zeloso salvador não pôde acompanhar. Ulisses conseguiu afinal prender um dos suínos; esfregada com a erva maravilhosa, a pele eriçada deu lugar a Elpenoros – um marinheiro, como insiste Feuchtwanger, em todos os sentidos mediano e comum, exactamente «como todos os outros, sem se destacar por sua força ou por sua esperteza». O «libertado» Elpenoros não ficou nada grato por sua liberdade, e furiosamente atacou seu «libertador».

 

«Então voltaste, ó tratante, ó intrometido? Queres novamente nos aborrecer e importunar, queres novamente expor nossos corpos ao perigo e forçar nossos corações sempre a novas decisões? Eu estava tão feliz, eu podia chafurdar na lama e aquecer-me ao sol, eu podia comer e beber, grunhir ou guinchar, e estava livre de meditações e dúvidas.: «O que devo fazer, isto ou aquilo?» Por que vieste? Para jogar-me outra vez na vida odiosa que eu levava antes?»

A libertação é uma bênção ou uma maldição?”

 

Bibliografia

 

BAUMAN, Zygmunt. ((2001). Modernidade Líquida. Zahar. Rio de Janeiro. pp. 25-28.

Os alienados

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“O que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade.”

Karl Mannheim

“A nossa geração quis dar o melhor às crianças e aos jovens. Sonhámos grandes sonhos para eles. Procurámos dar-lhes os melhores brinquedos, roupas, passeios e escolas. Não queríamos que eles andassem à chuva, se magoassem nas ruas, se ferissem com os brinquedos caseiros e vivessem as dificuldades pelas quais nós passámos.

Colocámos uma televisão na sala. Alguns pais, com mais recursos, colocaram uma televisão e um computador no quarto de cada filho. Outros preencheram o tempo dos seus filhos com actividades, matriculando-os em cursos de inglês, informática, música.

Tiveram uma excelente intenção, só não sabiam que as crianças precisavam de ter infância, necessitavam de inventar,

correr riscos,

decepcionar-se,

ter tempo para brincar e encantar-se com a vida.

Não imaginavam o quanto a criatividade, a felicidade, a ousadia e a segurança do adulto dependiam das matrizes da memória e da energia emocional da criança. Não compreenderam que a televisão, os brinquedos manufacturados, a Internet e o excesso de actividades bloqueavam a infância dos seus filhos.

Criámos um mundo artificial para as crianças e pagámos caro por isso. Produzimos sérias consequências no território das suas emoções, no anfiteatro dos seus pensamentos e no solo das suas memórias. Vejamos algumas dessas consequências.

Bloquear a inteligência das crianças e adolescentes

Esperávamos que no século XXI os jovens fossem solidários,

empreendedores

e amassem a arte de pensar.

Mas muitos vivem alienados, não pensam no futuro, não têm garra e projectos de vida.

Imaginávamos que, pelo facto de aprendermos línguas na escola e vivermos espremidos nos elevadores, no local de trabalho e nos clubes, a solidão seria resolvida. Mas as pessoas não aprenderam a falar de si mesmas, têm medo de se expor, vivem represadas no seu próprio mundo.

Pais e filhos vivem isolados, raramente choram juntos e falam dos seus sonhos, mágoas, alegrias, frustrações.

Na escola, a situação é pior. Professores e alunos vivem juntos durante anos dentro da sala de aula, mas são estranhos uns para os outros. Eles escondem-se atrás dos livros, dos cadernos, dos computadores. A culpa é dos ilustres professores? Não! A culpa, como veremos, é do sistema educacional doentio que se arrasta há séculos.

As crianças e os jovens aprendem a lidar com factos lógicos, mas não sabem lidar com fracassos e falhas. Aprendem a resolver problemas matemáticos, mas não sabem resolver os seus conflitos existenciais. São treinados para fazer cálculos e acertar, mas a vida é cheia de contradições, as questões emocionais não podem ser calculadas, nem têm conta exacta.

Os jovens são preparados para lidar com as decepções?

Não!

Eles são treinados apenas para o sucesso.

Viver sem problemas é impossível. O sofrimento pode construir-nos ou destruir-nos. Devemos usar o sofrimento para construir a sabedoria.

Mas quem se importa com a sabedoria na era da informática?

A nossa geração produziu mais informação do que nenhuma outra, mas não sabemos o que fazer com ela. Raramente usamos essa informação para aumentar a nossa qualidade de vida.

Você faz coisas nos seus tempos livres que lhe dêem prazer?

Você procura administrar os seus pensamentos para ter uma mente mais tranquila?

Tornámo-nos  máquinas de trabalhar e estamos a transformar as nossas crianças em máquinas de aprender.

(…)

Tenho a convicção, como psiquiatra e como autor de uma das poucas teorias da actualidade sobre o processo de construção do pensamento, de que estamos a bloquear a inteligência das crianças e o seu prazer de viver com o excesso de informação que lhe oferecemos.

(…)

O conhecimento multiplicou-se e o número de escolas aumentou como em nenhuma outra época, mas não estamos a produzir pensadores. A maioria dos jovens, incluindo os universitários (…) constrói pouquíssimas ideias brilhantes. Não é por acaso que eles perderam o prazer de aprender. A escola deixou de ser uma aventura agradável.

(…)

Eles precisam de fazer muitas coisas para ter um pouco de prazer, o que gera personalidades flutuantes, instáveis, insatisfeitas. Temos uma indústria de lazer complexa. Deveríamos ter a geração de jovens mais felizes que já pisaram esta terra. Mas produzimos uma geração de insatisfeitos.

(…)

Nunca o conhecimento médico e psiquiátrico foi tão grande, e nunca as pessoas tiveram tantos transtornos emocionais e tantas doenças psicossomáticas. A depressão raramente atingia as crianças. Hoje, há muitas crianças deprimidas e sem encanto pela vida. Pré-adolescentes e adolescentes estão a desenvolver obsessões, síndrome de pânico, fobias, timidez, agressividade e outros transtornos ansiosos.

(…)

E o stress? Não é apenas comum detectarmos adultos stressados, mas também jovens e crianças. Eles têm frequentemente dores de cabeça, gastrite, dores musculares, suor excessivo, fadiga constante de fundo emocional.

Precisamos de arquivar esta frase e nunca a esquecer:

«Quanto pior for a  qualidade da educação, mais importante será o papel da psiquiatria neste século.»

 

 

Bibliografia

 

CURY, Augusto. (20129. Pais brilhantes, professores fascinantes. Pergaminho. pp. 11-16.

O “Idadismo”

Publicado por: Milu  :  Categoria: O "Idadismo", PARA PENSAR

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“A miséria de uma criança interessa a uma mãe, a miséria de um rapaz interessa a uma rapariga, a miséria de um velho não interessa a ninguém.”

Victor Hugo in “Os Miseráveis”

“O termo «idadismo» (em inglês ageism) surgiu pela primeira vez em 1969 quando o psicólogo americano Robert Butler procurava explicar as reacções negativas de uma comunidade à construção de um empreendimento imobiliário para pessoas idosas na sua vizinhança. Estas reacções da comunidade pareciam, à primeira vista, inexplicáveis, já que de nenhum modo os futuros residentes pareciam constituir ameaças à localidade.

Após uma reflexão mais aprofundada sobre os motivos deste tipo de comportamentos, Butler compreendeu que apenas um factor parecia guiar a recusa dos habitantes locais e este estava relacionado com a idade dos inquilinos. Tornou-se explícito que os envolvidos não estavam satisfeitos por terem um empreendimento imobiliário para pessoas idosas na proximidade das suas residências, talvez motivados por uma crença de que este tipo de construção poderia diminuir o valor e o prestígio da vizinhança.

Desde a introdução do termo, têm sido feitos vários esforços, com algum êxito, para a identificação de manifestações idadistas na sociedade americana. Neste momento, são bastante conhecidas as diferentes formas que este tipo de atitudes pode assumir e as suas especificidades. Do mesmo modo, outros países – como, por exemplo, o Reino Unido e a Suécia – têm também iniciado um trabalho bastante exaustivo no sentido de identificar e eliminar este tipo de manifestações contra as pessoas mais velhas. Estes trabalhos têm ajudado na consolidação da noção de idadismo e das suas implicações.

Em termos gerais, o idadismo refere-se às atitudes e práticas negativas generalizadas em relação aos indivíduos baseadas somente numa característica – a sua idade. A tradução do termo ageism para idadismo tem sentido porque podemos pensar em manifestações idadistas contra diferentes grupos etários (e não só contra as pessoas idosas como poderíamos ser levados a pensar). Por exemplo, existem elementos que apontam para que, em certos países como o Reino Unido, o idadismo é direccionado sobretudo contra as pessoas mais jovens. Em Portugal, por seu lado, o idadismo parece atingir sobretudo as pessoas mais velhas. (…) A este tipo especial de idadismo alguns autores têm chamado, por vezes «gerontismo».

As atitudes idadistas em relação às pessoas mais velhas assumem três componentes essenciais. Em primeiro lugar, o idadismo está associado às crenças ou aos estereótipos que temos relativamente às pessoas idosas. Refere-se à tendência para percebermos todas as pessoas de uma determinada idade como um grupo homogéneo, que se caracteriza muito frequentemente por determinados traços negativos como, por exemplo, a incapacidade e a doença.

Em segundo lugar, as atitudes idadistas estão relacionadas com o preconceito ou os sentimentos que temos em relação a este grupo etário. O idadismo pode manifestar-se através de sentimentos de desdém em relação ao envelhecimento e às pessoas mais velhas, embora, muitas vezes, assuma formas mais disfarçadas como a piedade ou o paternalismo.

Finalmente, podemos pensar que o idadismo inclui também uma componente mais comportamental e que está relacionada com os actos efectivos de discriminação em relação às pessoas idosas. São muitos os exemplos de discriminação na nossa sociedade, mas talvez o mais exemplificativo seja o abuso e os maus tratos que têm como alvo os indivíduos deste grupo etário.

É importante compreender que o idadismo não pode ser definido apenas de modo individual, , mas sobretudo ao nível institucional e cultural.

O idadismo não é apenas uma atitude negativa, individualizada em relação às pessoas idosas,

mas espelha os nossos valores culturais mais profundos e as práticas institucionais da nossa sociedade.

(…) existem dados que demonstram que vivemos numa sociedade predominantemente idadista em relação às pessoas mais velhas

e que esta ideia tem sido perpetuada pelas instituições que nos rodeiam e às quais pertencemos.

O idadismo é um problema grave na sociedade portuguesa.”

Bibliografia

MARQUES, Sibila. (2011). Discriminação da Terceira Idade. Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa. pp. 17-19.