O ovo da serpente

Publicado por: Milu  :  Categoria: O ovo da serpente, SOCIEDADE

 

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“Se Deus é macho, então o macho é Deus. O patriarca divino castra as mu­lheres enquanto ele for autorizado a viver na imaginação humana.”

(Mary Daly)

Li há algum tempo que tinha dado entrada no Parlamento um projecto de revisão da lei do aborto, uma iniciativa do Movimento Pró-vida, promovida pela Federação Portuguesa pela Vida. A ideia subjacente é voltar a pôr o tema do aborto na agenda política, oito anos depois de ter sido realizado o referendo que deu o «Sim» à despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Em duas  notícias do Jornal Observador aqui e aqui, podemos ler declarações de Isilda Pegado, coordenadora da Federação Portuguesa pela Vida, tais como:

Na iniciativa legislativa  “não estará a penalização do aborto” mas antes a inclusão de “cláusulas protectoras da vida humana”. A chamada Lei de Apoio à Maternidade e Paternidade – Do Direito a Nascer (clique aquipretende que o pai seja chamado ao processo decisório de interrupção da gravidez, que o Estado passe a disponibilizar “meios de ajuda efetiva” para mulheres em dificuldades sociais e que as mulheres que abortem deixem de poder gozar licenças de parentalidade pagas a 100% pela Segurança Social. “Estamos a viver uma crise de natalidade. Em oito anos, vimos mais de 150 mil vidas serem eliminadas. Fazem muita falta ao país”. “Temos conhecimento de que há milhares de mulheres que ficam destruídas [após o aborto]”, acrescenta.“Exigimos uma revisão da lei do aborto, porque não pactuamos com a destruição de vidas que o país está a assistir”.

Mas, no meu entender, o que esta lei pretende é dificultar a vida à mulher. Principalmente isso!

Porque entre muitas outras coisas, esta lei sugere a implantação de taxas moderadoras, específicas para os casos de IVG. Portanto, dinheiro à frente. E quem o tem está sempre safo, quem o não tem sofre as consequências. A pobreza! Que lixa sempre a mulher!… Exige, também, que a mulher seja confrontada com a ecografia e a assine, o que configura  uma técnica de terrorismo, pois aumenta o sofrimento de quem já está a sofrer.

«querem essas mães a oscilar entre o hospício psiquiátrico, o bordel e a cadeia e as crianças nos asilos-bordeis (q.e.d.) de onde passarão às cadeias (é exactamente assim, porque tem sido exactamente assim). (…) Talvez seja o momento de pedir formalmente à CIA (ou à presidência dos USA) a lista dos 500 nomes com relevância política e económica no território que a CIA registou (segundo um agente seu declarou diante de metade do mundo) como clientes da rede da Casa Pia»

Joseph Praetorius, in Facebook, 27/06/2015)

Ora, como eu penso que uma mulher só faz aborto se quiser, pois ninguém a poderá obrigar, considero que este projecto de lei é um ataque contra a liberdade e direitos humanos da mulher. Considero que em todas as circunstâncias que influenciem a sua vida, a mulher deve ter o direito de decidir como bem entender. Deste modo, a mulher que não quer em hipótese alguma fazer um aborto, deve mesmo assim conceder o direito a outra mulher de o fazer.

Mais nada.

Se a mulher que tiver feito um aborto se vier a arrepender… paciência. A vida é isso mesmo. A vida é feita de escolhas, e quando se faz uma escolha está-se simultaneamente a fazer uma renúncia.

Há um trecho na  Lei de Apoio à Maternidade e Paternidade – Do Direito a Nascer que até é verdade:

«As mulheres tantas vezes na solidão, são vítimas de pressões sociais e afectivas e por isso obrigadas a abortar. A lei não tem meios de protecção, deixa a grávida entregue à sua sorte.
Os abusos, sempre condenáveis, movidos contra grávidas ou mesmo apenas quando expectantes da maternidade feitos em ambiente laboral e tão noticiados, são também consequência daquela falta de protecção».

Mas, neste caso, a decisão mais sensata é promover a mudança da lei no sentido de criar condições apropriadas para criar crianças e, depois,  espere-se! Com o tempo e muito naturalmente, o número de abortos tenderá a diminuir.

Para a anacrónica Isilda Pegado tenho algumas observações a fazer, tendo em conta as suas declarações, expressas no jornal acima citado.

Primeiro: que a mulher deve ter filhos quando entender e por amor. Só por isso. Nunca pela preocupação de povoar.

Segundo: que muitas mulheres ficam destruídas após terem feito um aborto, acredito que sim. Mas esse sofrimento provocado pelo arrependimento é em grande medida consequência da tradição que tem origens ancestrais: fazer da mulher sempre culpada. Seja o que for e como for, a mulher é sempre culpada. Neste caso a maternidade, faculdade da mulher, funciona como uma armadilha. O homem, aquele que fez o filho, esse, está sempre no Céu, ou a voar livre como uma borboleta. Posto isto, tudo quanto limite a liberdade da mulher é um perigoso retrocesso civilizacional.

Senão vejamos este excerto retirado do livro «Sem Medo Maria» da autoria de Fernanda Freitas, que nos mostra o antes e o depois, ou seja, a razão pela qual não devemos andar para trás, no que diz respeito aos direitos e liberdades da mulher.

Antes

“De acordo com uma resenha histórica da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, havia na Europa algumas normas que permitiam a punição correctiva caso a mulher desobedecesse, nomeadamente com «uma vergasta de espessura  não superior à do seu dedo polegar». Ainda neste documento está transcrito um excerto de um texto de Direito da Flandres do século XIV em que se pode ler: «o marido pode bater na mulher, cortá-la de alto a baixo e aquecer os pés no seu sangue, desde que a torne a cozer e ela sobreviva»!

Em Portugal, havia nas Ordenações Filipinas, a permissão para «castigo moderado, submissão a cárcere privado e a morte em caso de adultério».

Em meados do século XIX, por exemplo, no Código Civil de 1867 havia clara referência à posição subalterna da mulher, impondo-lhe o dever de obediência ao marido que devia «dirigir a mulher». Já o Código Penal «conferia legitimidade social ao poder de direcção do marido», não previa ilicitude na questão dos maus tratos ou até na violação de correspondência da esposa e chegava ao ponto de ter um enquadramento diferente para o adultério do marido e da mulher.

O Código Penal de 1886 permitia ao marido matar a mulher em flagrante adultério, sofrendo um desterro de seis meses para fora da comarca.

No Código Civil de 1966, a mulher casada beneficiava de um estatuto menor. O marido era reconhecidamente o chefe de família, com poder de decisão na generalidade dos assuntos da vida do casal, administrando todos os bens, incluindo os bens próprios da mulher. À mulher estava reservada a gestão doméstica. Apesar de atribuir a ambos os pais a guarda e regência dos filhos, o artigo 1881.º atribuía especialmente ao pai, como chefe de família, os poderes de defender, emancipar e representar os filhos, bem como os de orientar a sua educação e administrar os seus bens.

Este estatuto de subalternidade foi sendo mantido ao longo dos anos; em 1969, por exemplo, os contratos de trabalho celebrados com mulheres casadas eram válidos, mas concedia-se ao marido a possibilidade de se opor à sua celebração ou manutenção.

Na época, as mulheres não podiam (por lei e até 1974) aceder à carreira diplomática e da magistratura, e se decidissem ser enfermeiras ou hospedeiras do ar, perdiam o direito ao casamento.

Depois

 

A Constituição de 1976 veio consagrar o princípio da igualdade de direitos e deveres de ambos os pais em relação aos filhos.

O direito ao trabalho, como direito fundamental de todos os cidadãos é finalmente consagrado, devendo o Estado assegurar a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou tipo de trabalho com igual retribuição, sem distinção de sexo.

A Reforma do Código Civil, em 1977, aboliu finalmente os artigos referentes às discriminações das mulheres casadas, promovendo a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, confiando a direcção da família e a administração comum dos bens do casal a ambos. O exercício do poder paternal [poder parental] é confiado tanto ao pai como à mãe.”

Bibliografia

FREITAS, Fernanda. (2008). Sem Medo Maria. Caderno. Alfragide. pp. 177-180.