“O maior espectáculo para o homem será sempre o próprio homem.”
Eça de Queiroz
Quis o acaso que por entre uma pilha de livros, a que ainda não logrei dar pai, fosse dar de caras com o Eça de Queiroz, num seu volume intitulado “prosas esquecidas II”. Assim, em letra minúscula e tudo. Data este livro de 1965. Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco foram os meus escritores dilectos, nos verdes, fogosos, portanto, um verde frescor a tender para o vermelho e quente… os inconsequentes anos da juventude, pois então. E, além de ler, dormia muito “até o sol tomar as maiores alturas”. Mas também podia o sol fazer o pino, que eu, “aninhadamente” continuava a dormir, numa directa, sem me ralar nada.
Destes autores, gostava particularmente, e continuo a gostar, da forma como se exprimiam. Com gozo, com sarcasmo, jocosos e espirituosos. Em certos momentos eram para mim um festival de riso.
Dei duas voltas ao volume, assim como que para avaliar os estragos. Folheei, folheei. Ocorreu-me procurar uma prosa que se adaptasse ao momento. Uma prosa de outrora que caísse que nem uma luva no hoje. Que muita da obra do Eça é intemporal. São escritos não datados. Continuam a verificar-se os mesmos fenómenos, apesar da passagem do tempo. Eis que, senão quando, caíram-me os olhos nesta prosa que aqui me apressei a transcrever, quanto mais não seja porque me fez esboçar alguns sorrisos. Assim, a prosa para ilustrar a actualidade, como era a minha primeira intenção, vai ter de esperar.
Nº 12, 17 de Fevereiro
Meus amigos. Eu sou um correspondente literário que não falo dos livros, dos poemas, dos romances, dos dramas, de todo este longo movimento de espírito, que, como uma fina seda, ondeia e reluz ao nosso sol.
Fizeram-se poemas e cantatas, livros humorísticos, romances, filosofias e algumas religiões; eu não ouvi, não senti, não percebi nada.
Isto é o resultado do modo tímido com que se escreve em Portugal. Parece que os poetas fazem os livros como os rapazes fazem travessuras. Vindo cautelosos, no bico dos sapatos, e fugindo com grandes tremuras e arrepios de carne. Mas do que fogem os poetas em Portugal? Por que se publica um livro, e o vemos cercado de silêncio, lido às escondidas, discutido apenas num círculo misterioso, dentro da espessura das paredes, fazendo corar os que são surpreendidos a folheá-lo?
Porque fogem os escritores? Da crítica? Não a há. Fogem modestamente dos aplausos? Não os há.
Uma vez ouvi um sujeito, esquadrinhador de locais e de notícias literárias, dizer, ufano e regalado, a um amigo que há pouco publicara um livro: «A Gazeta» já fala de ti. E o escritor respondeu com grande cólera de voz e terribilidade de gesto: Ai o velhaco!
Isto é pasmoso e pasmosamente curioso. Eu não compreendi então, e ainda não compreendo hoje. Para mim este medo é um enigma, como a coragem do escritor é um problema.
Eu creio que isto tem raízes no medo da publicidade que aflige a burguesia portuguesa. Ela receia ver o seu nome pisado brutalmente num prelo, e irreverentemente composto pelos tipógrafos. Eis aí! Mistérios da classe média – a sustentadora de impérios…
Eu, meus amigos, há um mês que não vejo um jornal francês, que não leio um livro, que não sei uma notícia de arte: vou numa crescente brutalização. O espírito às vezes cansa-se e, como diz o bento Veuillot – o corpo vinga-se. Há então preguiças eternas, descansos mórbidos, raiva de contemplação.
Uma coisa que nunca compreendi foi a actividade material de certos poetas. Trabalham, falam, gesticulam, andam, passeiam, madrugam, tudo com largo proveito das suas rimas e avultada pujança da sua fibra. E medram, e tomam fradesca corpulência. Eu não compreendo os poetas sem a vida contemplativa. Em França há um provérbio que diz: Sono de poeta… Com efeito, o sono é mais o descanso do espírito do que o repouso da matéria. E quem mais do que aqueles infatigáveis amadores do ideal fazem caminhar o espírito, correr, lidar e cansar-se?
Arsène Houssaye conta que, na sua mocidade, quando morava na rua Doynné, com aquela célebre companhia de artistas chamada «Boémia Galante», dormiam até que o sol tomasse as maiores alturas. De noite velavam. Eu conservo da minha mocidade também esse sono prolongado, aninhadamente gozado, e sobretudo as meias sonolências. Então o espírito anda naquela região que não vem da realidade ainda, e que já não é do sonho. Estado doce em que tudo está, velado de sombra, de meias tintas, em que não há contrastes; estado idealizador, em que tudo toma uma aparência e uma alma divina. Se nos lembrarmos duma mulher, parece-nos uma criatura fantástica, diáfana, como as figuras oceânicas, leves como o ar; se nos lembrarmos dum bandido, vêmo-lo com aquela amável e cumprimentadora figura que têm os salteadores dos bailados da ópera; se nos lembrarmos de um burguês de santa rotundidade, parece-nos uma figura poética de cavaleiro trovador, etc.
A vida assim é um sonho de ópio, sem o incómodo estomacal do ópio.
Mas onde vou eu, Jesus? Eu estou cantando o sono e a preguiça – o que é imoral.
Meninos, trabalhai, etc. Há assim no «Tesouro da Infância» umas suaves páginas, de que eu me ria em criança…
Disseram-me ontem, «entre la poire et le fromage», que assim se tratam as questões graves desta terra – que o sr. Tomaz Ribeiro tinha lido, ou lia, ou ia ler, a casa não sei de que vulto, o seu poema «Delfina do Mal». Eu conto a novidade como ma disseram, sem um aplauso, sem uma alusão à meiguice, ao encanto vago dos versos do mesmo sr. Tomaz Ribeiro.
E dizem-me que o poema começa por uma caçada. Eu lembro-me de um poema que começava por uma caçada e que se chamava «Ondina do Lago». Tenho disto uma vaga memória, como se fosse nos Elíseos que o houvesse lido, ou naquela região onde as almas esperam a vida.
Entravam grandes personagens: Fausto, D. Juan, o Papa Alexandre VI, o Judeu Errante, Merlin, eu sei? Toda a história, toda a mitologia, toda a legenda gótica, estavam naquele poema.
O verso era chato, e frouxo, e deslavado. As imagens, antigas. Eu falo desta maneira retórica porque o poema era todo retórico. Regras bem respeitadas, convenções bem respeitadas. Havia apenas quatro versos bonitos – os da invocação.
Quando li aquilo, perguntei quem era o autor, que havia nome Teófilo Braga. Disseram-me que era um bom moço que lia livros velhos. O sujeito que me deu esta resposta era um grande tratante que lia livros novos.
Fiquei com o meu conceito oscilante. Quis perguntar ao meu particular amigo Inocêncio, mas nesse tempo ele andava empenhado numa discussão feroz com um outro sujeito, para saber se este sujeito era literato, e se, como tal, tinha direito a ser incluído no «Dicionário Bibliográfico».
Ora o tal sujeito jurava que era literato; o sr. Inocêncio jurava que não; e, como nenhum queria ceder, chamavam-se reciprocamente – eu sei?
Isto fez uma certa bulha e atraiu as vistas da polícia. Eles discutiam no jornal «A Revolução»; eu creio que a questão acabou, pondo-os «A Revolução», a ambos, longe das suas colunas. Com o que o sr. Inocêncio, feroz, retirou-se ao seu Dicionário, e o outro sujeito – cujo nome me esqueceu – aos seus misteres. Hoje creio que são amigos, pelo que os aperto ao meu coração.
De modo que nunca pude saber quem era o sr. Teófilo Braga. Somente um dia, perguntando a um homem de largas vistas, este me disse com voz cava:
« É um ser estranho!»
Com o que me fui, todo nervoso, a fazer à «Ondina» o que o abade fez aos livros de D. Quixote…
Manuel Eduardo, o viajante de quem já lhes falei, disse-me um dia que o sr. Teófilo Braga era – um rabiscador trágico. Nunca me esqueceu esta palavra, que talvez mande pôr em música, como canto popular.
Meus amigos: Caiu-me agora um borrão no papel. O que é um mau sinal: ou eu me ia tornar muito maledicente, ou me ia tornar muito benévolo. Evitemos as injustiças.
Sou todo vosso.
Bibliografia
QUEIROZ, Eça. (1965). prosas esquecidas II. Editorial Presença. Org. Alberto Machado da Rosa. Lisboa. pp. 333-337.
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