Adestramento

Publicado por: Milu  :  Categoria: Adestramento, SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA

 

 

“Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.”

 

Fernando Pessoa

Li, por aí, algures, e mesmo a propósito, que o adestramento é um processo contínuo, sistemático e organizado que permite desenvolver habilidades, conhecimentos e destrezas necessárias para desempenhar um trabalho de forma eficiente. Se bem visto, a definição de adestramento assenta que nem uma luva  ao processo a que é submetida praticamente metade do total da população humana, ou seja, os seres humanos de sexo feminino.

Quando uma menina nasce, ela vai ter de aprender a agir e a pensar de acordo com um determinado guião, de forma a que futuramente aquela menina se torne no tipo de mulher que se deseja, que convém. A menina irá, deste modo, perder a sua matriz original, o potencial e capacidade de realização que nasce com ela, para ser substituída por uma matriz construída, conveniente, há muito definida. Ficará assim bem domada. Se lhe parece história o que acabou de ler, recomendo que  leia o excerto que se segue, da autoria de Colette Dowling no seu livro “Complexo de Cinderela”. Não foi à toa que Simone Beauvoir pronunciou a célebre frase “Não se nasce mulher, torna-se”, o que significa que à mulher é impingido um determinado comportamento – tu, mulher, terás de ser desta maneira. “Assim Seja Ela!”, já dizia Benoîte Groult.

 

Há já algum tempo que os psicólogos sabem que as necessidades de afiliação femininas são mais fortes do que as masculinas, mas só recentemente desvendou-se a razão disso graças aos estudos realizados sobre as meninas. Por causa de uma dúvida intensa e profundamente assentada quanto à sua própria competência (desenvolvida desde o início da infância), as meninas se convencem de que precisam ter protecção, sob pena de não sobreviverem. Esta crença é incutida nas mulheres pela acção de expectativas sociais de base enganosa e pelos temores dos pais. Como veremos, uma ignorância monumental modela  a forma de pensar dos pais sobre as filhas, de sentir em relação a elas e de interagir com elas. As meninas têm sua capacidade de se fazerem seres humanos independentes coartada pelas atitudes protectoras dos pais – tal como se tivessem os pés atados.

O treinamento oferecido às meninas é diverso do oferecido aos meninos. O delas leva-as a transformarem-se em adultas que se submetem indefinidamente a empregos de nível inferior ao das suas capacidades. Leva-as a sentirem-se intimidadas pelos homens que desposam, e a acatar-lhes todas as palavras na esperança de serem protegidas. Leva inclusive, como veremos, à debilitação  das faculdades  intelectuais femininas.

Elogiadas pelos professores por nossa diligência e bom comportamento na escola, nós, confiantes em que tais qualidades nos ajudarão a vencer no mundo profissional, logo nos apercebemos de que somos tratadas como se não fôssemos tão crescidas assim.

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Desde tempos imemoriais os homens vêm demonstrando que, na grande ordem das coisas, as mulheres realizam muito pouco. Onde, perguntam eles, estão as físicas que revolucionaram o conhecimento científico? Como é que inexistem Bartoks do género feminino? (Tais questões são geralmente levantadas no intento de se abafarem quaisquer sugestões no sentido de as mulheres serem tão inteligentes quanto os homens). Novos estudos evidenciam cada vez mais que as mulheres se «impedem de progredir». Nós sabotamos nossa própria originalidade. Andamos em segunda – evitando as marchas potentes que possibilitam maior velocidade – como se tivéssemos sido programadas para fazê-lo.

E na realidade o fomos.

A psicologia vem investigando de perto como as mulheres agem e se sentem em relação ao modo como foram ensinadas a se comportar e forçadas a se sentir quando crianças. É chocante saber que o quadro mudou bem pouco nos últimos vinte anos? A forma pela qual as meninas são socializadas continua a predeterminar um doloroso conflito quanto à independência psicológica necessária para as mulheres se libertarem e assumirem o seu lugar ao sol.

O Aprendizado

Gostamos de pensar que, como pais, estamos fazendo tudo diversamente – que as nossas filhas não sofrerão os efeitos da criação discriminatória e super-protectora a que fomos sujeitas. Contudo, as pesquisas indicam que a maioria das crianças de hoje estão sendo desvirtuadas pelos mesmos tipos de papéis fixos (e artificiais) com que você e eu nos identificamos.

A dominação masculina – e sua cúmplice feminina – podem ser observadas já nas crianças das escolas maternais.

 

Esta cena foi observada entre duas crianças de quatro anos de idade, na sala de brinquedos de um jardim de infância, e relatada na revista “Harper’s” pela supervisora do grupo de crianças, Laura Carpenter.

«Outra cena que observo de vez em quando é mais ou menos a seguinte», escreveu ela. «Três ou quatro meninos pequenos se sentam de volta de uma mesinha na cozinha de brinquedo. Os meninos começam a requisitar coisas: «Me dá uma xícara de café!», ou «Me passa a manteiga!», ou ainda: «Mais torrada!», enquanto as meninas põem-se a correr freneticamente entre o fogão e a mesa, cozinhando e servindo.

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As meninas nesse jardim de infância estavam actuando um antigo sistema de troca: servir o amo em troca de protecção. Professores, terapeutas e demais profissionais que trabalham ou estudam com jovens do sexo feminino deploram a continuidade da existência do Complexo de Cinderela – a crença, por parte das meninas, de que sempre haverá alguém que irá cuidar delas. «Apesar de toda a ênfase que hoje se coloca na ampliação de papéis femininos, não houve mudanças significativas na preparação das meninas para a idade adulta», disse Edith Phelps, directora executiva do Girls Clubs of America (Clubes de Meninas da América9, numa recente conferência. «Sua preparação continua no máximo destrutiva – e no mínimo cheia de conflitos».

Estudando adolescentes na University of Michigan, a psicóloga Elizabeth Douvan descobriu que, até a idade de dezoito anos (e às vezes além dela), as meninas praticamente não mostram nenhum impulso para a independência, não se rebelam nem confrontam a autoridade, e não defendem «seus direitos de formar e preservar crenças em mecanismos de controle independentes. Com respeito a todos esses aspectos, elas diferem dos meninos.

E os dados mostram que a dependência nas mulheres cresce à medida que elas ganham mais idade.

Também revelam, surpreendentemente, que, desde bem pequenas, as meninas são treinadas para a dependência, ao passo que os meninos são treinados para se livrarem dela.

Como começa tudo isso?

As meninas iniciam o jogo da vida um passo adiante dos meninos. Elas são mais habilitadas verbal, perceptual e cognitivamente. Desde o nascimento elas contam com uma vantagem, em termos desenvolvimentistas, equivalente a quatro ou seis semanas de vida. Quando entram na primeira série do primeiro grau, as meninas se encontram um ano à frente dos meninos, nesses aspectos.

Eleanor Maccoby, uma psicóloga de Stanford com especialização em factores psicológicos da diferença de sexos, responde que «a chave do problema reside em se ou quão cedo a menina é encorajada a assumir a iniciativa, a responsabilidade por si mesma, e a resolver sozinha seus problemas, em vez de, para isso, depender de outrem».

Acontece que os comportamentos reforçados nas meninas não são reforçados nos meninos. Muito do que se considera «bom» em garotinhas é considerado extremamente repulsivo em garotinhos.

Timidez e fragilidade, ser «bem comportada» e quieta, e depender dos outros para obter auxílio e apoio são coisas julgadas naturais – se não desejáveis – nas meninas. Os meninos, em contrapartida, são activamente desencorajados  a apresentarem formas dependentes de relacionamento – elas os tornam «maricas». Gradualmente, diz Judith Bardwick, «o filho é forçado a apresentar comportamentos independentes e recompensado por isso»…

Bibliografia

 

DOWLING, Colette.  (1982).Complexo de Cinderela. Melhoramentos. São Paulo. 89-92.