A ordem das coisas

Publicado por: Milu  :  Categoria: A ordem das coisas, PARA PENSAR

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“Não eduques as crianças nas várias disciplinas recorrendo à força, mas como se fosse um jogo, para que também possas observar melhor qual a disposição natural de cada um.”

Platão

Este post contém um breve resumo da leitura que fiz ao livro “Porque é que os nossos filhos se tornam tiranos?” da autoria do psiquiatra alemão, especializado em pedopsiquiatria Michael Winterhoff. A todos aqueles que se interessam e desejam compreender os meandros da psique infantil, aconselho vivamente a leitura deste livro.

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(…)

“Todos os dias vejo no meu consultório crianças e jovens com as mais variadas perturbações. Ao longo da minha actividade de psiquiatra infantil, a análise das perturbações que foram aparecendo sofreu alterações tão sérias, que é motivo para as maiores preocupações acerca do futuro da sociedade em geral. Se não houver uma consciencialização acerca destas perturbações, a consequência será um cada vez menor número de jovens e adultos com capacidade de trabalho e relacionamento.

No que diz respeito a uma grande parte das crianças e jovens que causam problemas em todos os domínios da vida, estamos perante pessoas cujo grau de maturidade psíquica, segundo o modelo que desenvolvi ao longo de uma observação de largos anos, estagnou mais ou menos ao nível, no máximo, uma criança de três anos. Por outras palavras, estes jovens estão retidos na fase psíquica dos primeiros anos da infância, pelo que há uma grande diferença entre as suas idades física e psíquica. Não conseguem por isso, de forma alguma, construir uma relação com o seu ambiente que não tenha perturbações. Qualquer aproximação a estes indivíduos parece ter-se tornado impossível. Eles aterrorizam o ambiente à sua volta com o seu comportamento inaceitável e são absolutamente imunes a tentativas de controlo vindas do exterior.
A minha abordagem, considerando o desenvolvimento psíquico das crianças como o cerne da questão, é a única que possibilita analisar esta tendência de forma razoável e desenvolver estratégias que a possam contrariar de modo eficaz.

(…)

Encontramo-nos entretanto num estado de excepção, em que as crianças se tornaram educadoras dos pais, guiando-se por pura acção dos seus desejos, sem que lhes sejam mostrados limites. O motivo disto não se prende com uma maldade inata, mas com o facto de as crianças não estarem psiquicamente em condições de sentir que os seus comportamentos estão errados” (p. 10-11).

“As crianças que, devido a pressupostos psíquicos errados, não estão em condições de distinguir os comportamentos certos dos errados tornam-se precisamente naqueles tiranos e «monstros» que, com grande perplexidade, encontramos cada vez mais no nosso quotidiano.
A pedagogia, os conceitos educacionais, as maneiras de dar aulas na escola e na creche, bem como a educação diária em casa dos pais, tudo isto só pode ter um efeito completo, colocando as crianças no caminho certo, se ao mesmo tempo houver a preocupação de que o seu estado de desenvolvimento psíquico esteja a um nível adequado à idade.

No entanto, muitas pessoas responsáveis pela educação não incluem hoje esse facto no seu radar pessoal. Partem em muitos casos do princípio de que a psique é algo que se desenvolvem por si, quase em paralelo. As falhas no desenvolvimento psíquico são entendidas, numa perspectiva de demência, como doenças posteriores, influenciadas pelo meio exterior, e que, na maioria dos casos, podem ser ultrapassadas por via da análise e da eliminação das suas causas.

O mau comportamento gritante dos jovens quase nunca é encarado tomando em consideração a sua maturidade psíquica. Parece ser demasiado difícil imaginar que coisas relativamente inofensivas como a esporádica recusa de cumprir diversas tarefas diárias, bem como coisas pesadas como o roubo ou a violência, podem ser muito mais bem explicadas com base no processo de maturidade psíquica do que através de modelos que apenas vêem as influências sociais como factores” (p. 11-12).

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“Quem, no seu círculo de pessoas conhecidas, tem professores, educadores de infância ou outras pessoas a trabalhar em áreas pedagógicas, conhece bem as queixas sobre a aparentemente desesperançada situação das crianças e jovens. Em grande parte, estes não parecem ter respeito nem qualquer orientação ao nível dos valores e normas que são de um modo geral obrigatórios. Em muitos casos, trata-se de crianças de famílias imaculadas, em relação às quais não se aplicam as explicações habituais, como «infância difícil», «família arruinada» ou «ambiente social adverso». As dificuldades atingem cada vez mais crianças e jovens cujos pais convivem com eles desde o primeiro dia com afecto, gratos por todas as recomendações bem-intencionadas em matéria de educação, e procurando pôr em prática conselhos pedagógicos inovadores” (p. 13).

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“Neste contexto, são lançadas fortes acusações à chamada geração de 68, ou seja, todos aqueles que, à conta de uma muito particular experiência geracional, a saber, a libertação das amarras da educação e da disciplina, sentidas como demasiado apertadas, parecem ter criado uma virtude: conceitos de educação anti-autoritária e, acima de tudo, uma condenação aparentemente absoluta da noção de autoridade constituíram durante muito tempo consenso entre todos aqueles que trabalhavam na área da pedagogia. Também os pais preferiam muitas vezes adoptar a «rédea solta», de modo a não cometer os mesmos erros com que os pais deles os haviam marcado.

Hoje observa-se em muitos casos uma mudança radical. Ao nível da educação, é cada vez mais aconselhada uma maior rigidez e responsabilização, a famosa palmada no rabo voltou a poder ser discutida, sendo que a actual tendência parte frequentemente do princípio de que tal «nunca fez mal a ninguém». Trata-se de uma afirmação hoje absolutamente aceitável em público e que, independentemente de estar certa ou errada, teria suscitado grande indignação não há muito tempo atrás” (p. 13-14).

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(…)

“(…) é importante referir mais uma vez que nenhum destes exemplos visa desacreditar qualquer grupo de pessoas. As culpas não devem ser apontadas às crianças, nem aos educadores nem aos pais. Não pretendo conduzir aqui qualquer discussão sobre culpa, que acabe por dividir ainda mais a sociedade, desviando o olhar da verdadeira problemática. Trata-se antes de compreender que os diferentes sintomas de crianças e jovens aparentemente resistentes à educação podem ser reduzidos a uma só coisa, a saber, a falta de maturidade psíquica. Só quando os adultos aprenderem a reflectir criticamente sobre o seu próprio comportamento com base neste tipo de constatação será possível colocar as crianças no lugar a que têm direito na sociedade. Isso quer dizer que as crianças devem de ser vistas como crianças. Chegámos actualmente ao ponto em que as encaramos como pequenos adultos, em pé de igualdade connosco, e desse modo esperamos sempre demasiado delas” (p. 15).

(…)

“Os direitos das crianças são um tema forte. Veja-se por exemplo, a nível local, a introdução do chamado parlamento das crianças em muitos municípios, onde as crianças, à semelhança dos adultos, e num processo parlamentar onde são definidas posições, são chamadas a desenvolver uma opinião sobre opções a nível local, opinião essa que acaba por ter influência na tomada de decisão da câmara municipal.
A criança em si aparece-nos hoje como um autêntico salvador, efeito acentuado pela falta de crianças na sociedade moderna. O facto de nas últimas décadas terem nascido cada vez menos crianças torna-as, como no contexto de uma economia de mercado, um bem raro e consequentemente desejável e valioso, devendo ser tratado de modo privilegiado.
Deste modo, as crianças são forçadas a um papel que não se lhes adequa, uma vez que lhes faltam todas as qualidades psíquicas para poderem desempenhar esse papel. O papel que lhes é atribuído é o de parceiro dos adultos.
Quando encontramos pais que conversam sobre os filhos que andam na creche ou nos primeiros anos de escola, ouvimos muitas vezes frases como «o meu filho tem uma vontade muito forte, e impõe-se porque sabe o que quer». Com descrições como esta, é atribuída à criança uma personalidade própria que, num estado tão inicial da sua vida, não lhe é de todo possível ter, uma vez que o desenvolvimento da personalidade só começa no oitavo ou nono ano de vida” (p.25).

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(…)

“Logo que a criança gatinha e anda, ela examina as funções de todas as coisas que existem à sua volta, sentindo os contornos, metendo o dedo ou lambendo. Uma cadeira, por exemplo, é primeiro percebida como algo que serve para empurrar, e depois como objecto para trepar. A função enquanto peça de mobiliário para uma pessoa se sentar só muito tarde é entendida por uma criança pequena.
Também as pessoas que se relacionam de perto com a criança são examinadas desse modo. É neste contexto que a criança na fase narcisista da primeira infância, dos dez aos dezasseis meses de vida, padece da ideia de que pode controlar e determinar tudo e todos, e de que goza de absoluta autonomia.
Até ao terceiro ano de vida dá-se então a descoberta, em passos subsequentes, de que tanto a criança como o adulto são pessoas individuais. A criança consegue nessa altura perceber também que um adulto é maior, mais forte e mais poderoso. A partir deste momento, a criança pequena reage ao adulto em situações de conflito, ou para utilizar a formulação clássica, «a criança ouve». Uma vez completada esta fase, a criança alcançou maturidade para entrar na creche, reagindo a intervenções pedagógicas da parte do adulto.

A situação actual, conforme entretanto se revela no meu trabalho diário, mostra que estamos no caminho ideal para gerar cada vez menos crianças capazes de completar um adequado desenvolvimento infantil. Devo para além disso acrescentar que há cada vez menos crianças a formar funções psíquicas a um nível satisfatório. Como consequência disso, os últimos quinze anos, mostram um enorme aumento nos tipos de perturbações em crianças e jovens. E as perturbações das crianças que me são apresentadas não podiam ser mais variadas” (p. 32-33).

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“A conduta social de muitas crianças é altamente problemática. No seu ambiente, são autênticos tiranos em ponto pequeno. Comportam-se com extrema agressividade física e verbal com crianças da mesma idade, e em certa medida não se mostram em condições de se integrarem num grupo. Mas não é só com outras crianças e jovens que estas crianças demonstram um comportamento problemático. O seu egoísmo não conhece também limites na relação com os próprios pais e avós, e com as pessoas ligadas à educação, como educadoras ou professores” (p. 34-35).

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“Um professor pode inclusivamente examinar na sua própria escola se as crianças com perturbações são casos isolados ou se, pelo contrário, passaram com o tempo a constituir um número significativo. Para tal, bastar-lhe-á entrar na aula no início da lição e dizer aos alunos que tirem um determinado livro. A reacção da turma será deveras reveladora e irá confirmar a já mencionada impressão. Quase nenhuma criança irá seguir imediatamente esta indicação clara e facilmente compreensível. Para a maioria será necessário pelo menos um segundo, ou até um terceiro pedido. E muitas crianças simplesmente não irão tirar o livro das suas mochilas.
Não são apenas os professores da escola primária, como nos exemplos que acabámos de dar, que se encontram perante esta situação. As perturbações têm efeitos em toda a vida social das crianças, tanto na esfera privada como na esfera social. Este livro não poderia ter sido escrito há alguns anos atrás, pois os desenvolvimentos aqui descritos não eram considerados patológicos, mas sim aceites como uma consequência normal e desejável da educação das crianças, que assim se tornavam indivíduos autónomos” (p. 41).

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“A tendência de uma criança de cinco anos para manipular a mãe seria, por comparação, deixada para segundo plano e considerada pouco importante. Os princípios deste desenvolvimento encontram-se nos conceitos educacionais dos anos 70 e 80, os quais, baseados nos conceitos sociais da geração de 68, viam como sua tarefa principal cortar com a noção de autoridade. Educar no sentido de controlar e dirigir era visto com bastante suspeição. Em larga medida, a geração da guerra era olhada como tendo aparentemente recuperado noções educacionais do tempo do fascismo, voltando de novo a utilizá-las” (p. 41-42).

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“As crianças não deveriam mais ouvir da parte dos adultos o que era bom ou mau para elas, algo frequentemente interpretado como uma doutrinação inadmissível. Ao invés, deveriam desenvolver-se livremente, coleccionar experiências, deixar-se influenciar o menos possível pelos adultos, e deste modo tornar-se indivíduos livres e auto-determinados. Entretanto, os da geração de 68 já passaram a idade da revolução, criaram os seus filhos, e há décadas que trabalham nas suas profissões, muitos deles donos de empresas ou gestores de companhias, tendo responsabilidades na selecção e direcção de pessoal. E de repente reparam no que fizeram os espíritos por si invocados” (p. 42).

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“Aquilo que antes era considerado patológico e, por conseguinte, necessitando de tratamento, ganhou hoje em parte o estatuto de normal. Isto funciona segundo o princípio da maioria: quanto mais crianças apresentam uma perturbação que antes era diagnosticada como deficiência de desenvolvimento, mais cedo essa perturbação será aos poucos encarada como aceitável e não tão má assim, e até, em dado momento, vista como um comportamento normal” (p. 48).

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“A menção à alteração da situação escolar é interessante no que diz respeito à referida nova avaliação dos comportamentos problemáticos. Vem demonstrar, mais uma vez, que tanto o maior nível de ruído como traços de vandalismo, renitência da parte dos alunos e um baixo nível geral de formação são considerados, hoje, normais. É possível então tirar a conclusão, suportada por observações feitas no mundo real, de que a escola corre o perigo de simplesmente se ajustar à alteração da situação e de se orientar segundo as exigências do novo comportamento dos alunos. Há uma mudança nos padrões de exigência de aproveitamento e comportamento social, e essa é uma mudança no sentido de um permanente nivelamento por baixo. Tal não é porém concluído nem alegremente transmitido numa qualquer conferência escolar. Acontece sim de uma forma subtil, mal se notando no exterior, caso não se observe o panorama geral e se viva apenas no momento presente, como é hoje o caso da maioria das pessoas. Isto representa um grande perigo para as crianças, e os pais não percebem isso. Nem a criança tem apoio e exigência de acordo com a sua idade, nem os pais dispõem de orientação e padrões realistas: vivem todos embalados na certeza e segurança de que está tudo em absoluta ordem” (p. 49).

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“O nível dos alunos diminuiu e a escola adequa-se a isso. Existem linhas de orientação oficiais que prescrevem o número máximo de alunos que podem ficar abaixo da média no âmbito de um trabalho de turma. Os professores orientam-se por isso e sobem automaticamente a média, de modo a valorizar os trabalhos de turma” (p. 51).

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“As deficiências no desenvolvimento psíquico não são palpáveis e, num mundo que só acredita no que vê, também não são aceites como feridas. Daqui decorre a ideia de que a psique se desenvolve quase por si própria, que todas as pessoas têm uma psique e que podem naturalmente dispor, consoante a faixa etária, de determinadas funcionalidades. Isso é falso, pois as funções psíquicas positivas, que são as que aqui me interessam, só se formam durante a infância. Não são de todo automáticas e imunes à influência do meio, bem pelo contrário. A psique infantil é, antes de mais e acima de tudo, formada pela percepção que a criança tem da contraparte adulta enquanto limite da sua própria individualidade. (…). Com a idade, torna-se cada vez mais importante que o limite seja substituído pelo exemplo, e que as crianças reconheçam funções psíquicas, por exemplo, nos pais, e que possam deixar que essas funções amadureçam dentro de si, mediante treino constante” (p. 60).

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“Concretamente falando, isso quer dizer que eu me devo mostrar claramente contente com um comportamento positivo do meu filho e, da mesmíssima forma, claramente zangado com um comportamento negativo, acrescentando também, por exemplo, um determinado tom de voz. A este nível, é sempre de respeitar o princípio de que a pessoa de relacionamento da criança deve ser, se possível, constante e inequívoca, de modo a que a criança aprenda melhor e mais depressa com o reflexo. Um efeito lateral positivo, que quase ocorre automaticamente, é o facto de eu com isso transmitir também segurança à criança, ao passo que se a minha forma de reagir mudar muito, isso pode levar à sua perplexidade, tendo como consequência uma deficiente activação das funções psíquicas adequadas” (p. 62).

(…)

“Uma observação extensiva no contexto de um enquadramento psíquico revela com precisão os precipícios para os quais a sociedade caminha, já que esta vai baixando sempre cada vez mais os padrões de avaliação do comportamento humano e das relações entre as pessoas, encontrando inclusivamente explicação para claras deficiências de comportamento que, no entanto, não fazem qualquer sentido face à situação global” (p. 71).

(…)

“As pessoas envolvidas na actividade pedagógica tendem muitas vezes a observar e diagnosticar, em vez de confrontar e avaliar as crianças à luz dos seus comportamentos (ainda que estes sejam na verdade o elemento fundamental), de modo a dar à imatura psique da criança pequena, através de permanente repetição, a possibilidade de levar a cabo constantemente processos de amadurecimento e assim construir funções psíquicas. O ponto principal é a continuação do desenvolvimento da criança. Por outras palavras, a investigação das causas do mau comportamento infantil não deve de ser a prioridade. Não obstante, é naturalmente importante que os educadores reflictam sobre o que possa estar na base desse comportamento em particular.

Porém, uma criança agressiva, que atira cadeiras por todo o lado, tem de ser, antes de tudo, confrontada com o seu comportamento. Em vez disso, acontece que muitas vezes se procuram problemas no ambiente em redor da criança: talvez ciúmes de um irmãozinho ou possíveis problemas dos pais. Uma vez estabelecido o diagnóstico adequado, segue-se a transferência para os terapeutas apropriados, e o problema é nesses casos delegado, em vez de enfrentado e solucionado. Há o perigo de que, através deste comportamento do adulto, seja recusado à criança o seu natural direito à orientação e contenção, a ser assegurado pela sua pessoa de relacionamento.

A criança é considerada patológica sem mais discussão e transferida para o circuito de terapias e medicamentos. A falta de uma resposta adequada à carência de orientação, que se exprime através de atitudes agressivas, tem porém geralmente como efeito a criança continuar a testar os limites neste sentido. A criança continua a protagonizar investidas agressivas, porventura mais violentas até, que são com efeito absolutamente incompreensíveis para o adulto, à luz da terapia iniciada” (p. 84-85).

Bibliografia

WINTERHOFF, Michael. (2011). Porque é que os nossos filhos se tornam tiranos?. Lua de Papel (Leya). Alfragide.

Razão de ser

Publicado por: Milu  :  Categoria: PARA PENSAR, Razão de ser

 

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O grande inimigo da verdade não é muito frequentemente a mentira (deliberada, controvertida e desonesta), mas o mito – persistente, persuasivo, e não realista.”

 

John Kennedy

Notas breves retiradas durante a leitura do livro “O Mito do Retorno” de Mircea Eliade, que ajudam a compreender como se formam e se propagam os mitos.

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“O valor mágico e farmacêutico de certas ervas deve-se a um protótipo celeste da planta, ou o facto de ela ter sido colhida pela primeira vez por um deus. Nenhuma planta é milagrosa em si mesma, mas apenas pela sua participação num arquétipo ou pela repetição de determinados gestos e palavras que, isolando a planta do espaço profano, a consagram. Assim, duas fórmulas mágicas anglo-saxónicas do século XVI, que se costumava pronunciar para a colheita dos simples, explicam a origem da sua virtude terapêutica: elas cresceram pela primeira vez no monte sagrado do Calvário:

«Salve, erva-santa, que cresces sobre a terra, tu curas todas as feridas; em nome do bom Jesus, eu te colho» (1584).

«Tu és santa, Verbena, tu que cresces sobre a terra, pois foste encontrada primeiro no monte Calvário. Tu curaste o nosso redentor Jesus Cristo e fechaste as suas feridas; em nome do Pai, do Filho e do espírito Santo, eu te colho».

A eficácia destas ervas é atribuída ao facto de o seu protótipo ter sido descoberto num momento cósmico decisivo (“naquele tempo”) no monte Calvário. Elas foram consagradas por terem curado as feridas do Redentor. A sua eficácia só é válida pelo facto de aquele que as colhe repetir o gesto primordial da cura. É por isso que uma antiga fórmula mágica diz:

«Vamos colher plantas para as aplicar nas chagas do Salvador»” (p. 40-41).

“Para os cristãos, as ervas medicinais eram eficazes por terem sido encontradas pela primeira vez no monte Calvário. Para os antigos, as ervas possuíam virtudes milagrosas por terem sido descobertas pela primeira vez por deuses.

«Betónica, tu que foste descoberta pela primeira vez por Esculápio, ou pelo centauro Quíion…», assim reza a invocação recomendada num tratado ervanário” (p. 41).

“Conforme os exemplos descritos é-nos revelada uma concepção ontológica «primitiva»; um objecto ou uma acção só se tornam reais na medida em que imitam ou repetem um arquétipo. Assim, a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação; tudo o que não possui um modelo exemplar é “desprovido de sentido”, isto é, não possui realidade” (p. 44).

“A memória popular tem dificuldade em reter acontecimentos «individuais» e figuras »autênticas». Ela recorre a outras estruturas: categorias em vez de acontecimento, arquétipos em vez de personagens históricas. A personagem histórica é assimilada ao modelo mítico (herói, etc.) e o acontecimento é integrado na categoria das acções míticas (lutas contra um monstro, combate entre irmãos, etc.)” (p. 52).

“(…) o grande mérito do Cristianismo foi ter valorizado o sofrimento, transformando o aspecto negativo da dor pelas suas qualidades salvadoras, instrumento de purificação e de elevação espiritual” (p. 102).

“O conceito da necessidade histórica gozará de uma actualidade cada vez maior: de facto, todas as crueldades, aberrações e tragédias da História foram e ainda são justificadas pelas necessidades do «momento histórico» (p. 151).

“Actualmente, quando a pressão histórica já não permite qualquer evasão, como poderá o homem aceitar as catástrofes e os horrores da história – desde as deportações e os massacres colectivos até à bomba atómica – se, em contrapartida, não se vislumbra qualquer sinal, qualquer intenção trans-histórica, se esses acontecimentos não são mais do que o jogo cego das forças económicas, sociais ou políticas, ou, pior ainda, o resultado das «liberdades» que uma minoria conquista e exerce directamente no panorama da história universal. No passado, a humanidade pôde aceitar os sofrimentos que acabamos de mencionar: eles eram considerados como um castigo de Deus, eles só puderam ser suportados precisamente porque tinham um significado” (p. 154).

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Bibliografia

ELLIADE, Mircea. (1990). O Mito do Eterno Retorno. Círculo de Leitores. Lisboa.

Velhos são os trapos

Publicado por: Milu  :  Categoria: PARA PENSAR, Velhos são os trapos

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“Houve tempo em que eu considerava um homem de cinquenta anos velho. Foi preciso chegar a ela para verificar quão jovens realmente somos nesta idade.”

Eno Teodoro Wanke

Apresento aos meus leitores e visitantes um resumo da obra intitulada Modernidade e Gestão da Velhice, da autoria de Figueiredo Santos e de Fernanda Encarnação, com edição do centro Regional de Segurança Social do Algarve, Faro. Este meu resumo é um tanto extenso, mas assim teve de ser, visto que a obra é bastante completa. Contudo, o leitor ficará a ganhar, já que este resumo lhe permitirá ter uma panorâmica bem abrangente dos temas abordados na citada obra.

A problemática em foco na obra insere-se na questão do envelhecimento na modernidade, o modus operandi das Instituições que chamaram a si a responsabilidade de cuidar dos idosos, nomeadamente na imperfeição da sua actuação e dos vícios que se vão criando, que desvirtuam aquele que deveria ser o verdadeiro e único fim. Considero que todas as pessoas deviam estar a par destas  circunstâncias para melhor as saberem prevenir. E quando digo todas as pessoas, refiro-me às Instituições, quem lá opera, institucionalizados e familiares.

Algumas coisas constantes neste resumo não são de todo agradáveis de ler, mas é por isso mesmo que elas se fazem importantes, e que torna cada vez mais imperiosa a consciencialização para estas questões.  Num país como o nosso, cuja população está a envelhecer de uma forma galopante, é bom ter-se presente a necessidade de mudar de paradigma. Um dia vamos ser nós a sofrer da mesma pena, a beber do mesmo veneno, a não ser que queiramos todos morrer antes de tempo… Os trechos que coloquei a vermelho foi com a intenção de lhes dar um especial destaque. Assim, não constituem frases ditas, apenas, são antes frases gritadas. Urgentes.

♣♣♣

“(…) Urge questionar os efeitos da institucionalização no idoso analisar as transfigurações que se produzem na sua totalidade de ser humano, isto é, na sua identidade (auto-confiança, auto-estima e autonomia). Pretende-se perceber se ele se sente dominado por ordenamentos estranhos ao seu estar na vida ou se, pelo contrário, sente que pode viver os seus dias de forma digna, sentindo preservados os valores liberdade, participação e auto-estima. Trata-se, assim, de analisar os efeitos sofridos no idoso, em toda a sua globalidade, face à reordenação institucional do seu modo de vida, análise que passa pela questão de saber se o idoso manifesta desestruturações que se transformam em processos de mortificação e transfiguração do Eu (“self”) ou se, pelo contrário, detém capacidades que a ajudem a romper com a lógica institucional” (p. 17).

“As sociedades pré-modernas [tradicionais] correlacionam a noção de velhice à virtude, elogiando a experiência que aquela permite. A velhice é o remate da vida, no seu duplo sentido – por um lado, finaliza-a, constituindo-se no seu supremo acabamento, por outro, já que quem quer que acumule anos de vida é o vivente por excelência, o idoso representa um concentrado de Ser e, enquanto tal, sujeito de honra. A idade é, a qualquer título, um atributo positivo, uma qualificação. Mas eis que ao mito do ancião enriquecido pela experiência vivida passa a opor-se o do «velho» diminuído, encarquilhado, esvaziado da sua substância – o homem mutilado, cuja desdita da sorte se torna perversa com o nascimento do capitalismo, na Inglaterra puritana e, particularmente, com a Emergência da Revolução Industrial. Nunca o tendo submetido a exploração direta, por não ter força de trabalho para vender, a sociedade vitima-o pela exploração indireta: na sua juventude ou maturidade, as classes dominantes não lhe sussurram que, uma vez cumprida a sua missão produtiva, o abandona de mãos vazias. Convertido à inutilidade e ao estorvo, passa a depender essencialmente da família que, por afeto ou por preocupação com a opinião pública, lhe assegura a sobrevivência. Todavia, na maioria das situações, «descuravam-nos ou abandonavam-nos num hospício, enxotavam-nos ou até os abatiam clandestinamente…»” (Beauvoir, 1970: 227-228).

Nas sociedades pré-modernas, compostas essencialmente de camponeses e artesãos, existe uma coincidência exacta entre a profissão e a existência; o trabalhador vive no seu local de trabalho, confundindo-se as tarefas produtivas e domésticas. Com os artesãos, altamente qualificados, as capacidades crescem com a experiência e, consequentemente, com os anos de vida. Nas oficinas, onde enfraquecem com o passar dos anos, a divisão do trabalho ainda permite adaptar as tarefas às possibilidades de cada um. Uma vez impotente, o velho continua a viver com a família que lhe assegura a subsistência. A comunidade não se dissocia dele. No dealbar da modernidade, ser homem, significa render-se à condição de “homo faber”, de fazedor de objetos. Os indivíduos passam a habitar num local e a trabalhar noutro, a título puramente individual. A família converte-se num núcleo estranho às suas atividades de produção. Reduz-se a um ou dois pares de adultos, sobrecarregados com os filhos ainda incapazes de ganhar o seu sustento; não podem, com os seus magros recursos, assegurar os cuidados aos seus velhos pais. Enquanto isso, o trabalhador é condenado à inatividade muito mais cedo do que outrora – a tarefa em que se especializa é a mesma ao longo de toda a sua vida; não lhe dão a possibilidade de se adaptar às novas tarefas ao longo do seu processo de trabalho. Prematura e progressivamente enxotado da divisão sócio-técnica do trabalho, condenado à inactividade, é dramaticamente abandonado a si próprio. É neste cenário que a comunidade se vê coagida a responsabilizar-se pela velhice que passa à constituição de problema social, não tem resistências obviamente, codificando uma nova problemática – a 3ª idade – que exige cuidados e especializações específicos, como resultado da fragmentação da unidade tradicional, segmentando a vida do idoso, e sujeitando-o a novos mecanismos de auto-identidade” (p. 32-33).

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“O homem renascentista não busca mais a glória celestial; antes passa a conferir uma importância fundamental ao seu triunfo individual na sociedade, à singularização e exaltação da sua personalidade concreta e particular, através de acções no seu próprio mundo – acções temporais que são alvo de um prémio ou recompensa tangível e concreta na vida terrena. A idade moderna origina uma nova e decisiva forma de individualismo, no centro do qual está uma concepção de sujeito individual e da sua identidade. Com efeito, são as condições modernas que tornam possíveis ideários de autonomia, de cidadania, de liberdade política e individual” (p. 39-41).

“Da linha de pensamento Weberiano relativo à crescente racionalização da vida, faz parte o argumento mais geral de que a evolução da racionalização da cultura moderna, longe de pôr em marcha o projecto iluminista de um crescente progresso, riqueza e felicidade, resultantes da aplicação da ciência e da tecnologia, conduz ao desencantamento dos mundos natural e social, como resultado final de um processo de racionalização universal” (p. 40).

“O «desencantamento» prende-se não só com uma crescente racionalização da vida, como constitui a base explicativa da sua principal manifestação empírica – o capitalismo moderno. Para Weber, a emergência do espírito do capitalismo não é produto do desenvolvimento ou da extensão do cálculo racional nas esferas económica, administrativa, legal ou institucional. A sua essência advém do incremento de novos valores, significados, intencionalidades, traduzidos em poderes relativos a crenças subjetivas que remetem a religião para um conceito privado” (p. 41).

“A experiência moderna, face ao derrube de todas as categorias tradicionais da ordem social, a par de uma necessidade permanente de construção de possibilidades coerentes e racionais, ao invés de propor uma ordem socialmente mais feliz e emancipadora (foram estas as promessas iluministas), confronta o homem novo com uma nova experiência descentrada, fragmentada, “volátil e efémera”, apesar de estrutura com base na liberdade política e individual” (p. 46).

“Ao conceber a vida moderna, Giddens carateriza-a por três dimensões institucionais, a saber: o individualismo, como motor de relações sociais que se implicam no «uso generalizado da energia mecânica e das máquinas nos processos de produção»; o capitalismo, como «sistema de produção de mercadorias que implica tanto mercados concorrenciais de produtos quanto a mercadorizaçao da força de trabalho» e a vigilância, que se refere «ao controlo supervisório das populações»” (p. 47).

“Como se pode imaginar o «estilo de vida refere-se apenas às aspirações dos grupos ou classes mais afluentes». Os pobres são genericamente excluídos da possibilidade de escolha de um estilo de vida. Fazendo emergir as «divisões de classes e outras linhas fundamentais de desigualdade… [que]…podem ser… definidas em termos de acesso diferenciado a formas de auto-realização e capacitação, a modernidade produz a diferença, exclusão e marginalização” (p. 63).

“O idoso, inserido no paradigma da modernidade, desvalorizado, é envolvido na diferença, exclusão e marginalização que a modernidade produz, e definido em termos de acesso diferenciado às formas de auto-realização e capacitação, uma vez que está excluído da possibilidade de escolha de estilos de vida” (p. 64).

“O homem moderno sente que está rodeado por uma indústria cultural sem sentido ou significado que o sufoca, exigindo-lhe uma espécie de «heroicidade do quotidiano» (p.99).

“Se o sentimento de solidão assola o indivíduo moderno, pense-se nos seus efeitos multiplicadores, em intensidade e dramatismo no «idoso» (p. 99).

“Quando se deixa de ser jovem, ativo e produtivo, é-se considerado «sem valor», menorizado e colocado à margem da vida social quotidiana” (p. 67).

“A invenção da 3ª idade surge como uma nova etapa da vida que se intercala entre a reforma e a morte e traça a história da emergência de uma nova forma de prestação de cuidados à velhice, com a sua génese na generalização dos sistemas de reforma, correlativamente à extensão do assalariamento e do modo de gestão da força de trabalho que o acompanha” (p. 69).

“Analisar a velhice como uma etapa específica do ciclo de vida é essencialmente analisar a transformação das formas de solidariedade, ou seja, a transformação do modo de formação dos grupos que acompanhou o progresso do capitalismo. É assim que se assiste à substituição do grupo familiar ou comunitário, por «grupos artificiais», de que fala Durkheim, especialmente nas classes populares que se tornam incapazes de voltar a ligar economicamente as gerações umas às outras” (p. 69).

“Na realidade, é através da instauração do regime de reformas que a velhice se vai destacar como uma etapa específica da vida do homem, da qual emergem novas formas de prestação de cuidados” (p. 69).

“Enquanto nas culturas tradicionais a gestão da velhice se relaciona directamente com o grupo que a toma a cargo (a família ou o meio local), implicando negociações pessoa a pessoa, na modernidade, os sistemas de reforma fazem emergir uma nova forma de gestão da velhice caracterizada por uma mediação anónima que age entre as gerações, como uma instância que se interpõe, ou melhor, que se impõe segundo uma lógica e meios próprios. Consubstancia-se num sistema de instituições e de agentes, cuja função específica é o tratamento da velhice” (p. 70).

“O seu modo de vida passa a ser gerido e regulado pela acção da ciência, das instituições sociais, do lazer, dos especialistas, que se traduzem em instrumentos de dominação, como solução para uma «problemática»” (p. 70).

“Com esta mudança surgem a geriatria e a gerontologia como especialidades do saber, preocupadas com a «qualidade do fim da vida», apresentando-se como autoridades que reivindicam projectos para os idosos e em seu nome, ignorando as forças reais que explicam o surgimento do fenómeno da velhice como problemática social, na medida em que a consideram marginal às condições materiais de existência dos seus protagonistas” (p. 71).

“A reforma transforma-se num cataclismo que se abate sobre o homem moderno, precipitando-o numa velhice prematura, numa «ansiedade de previsão» face a perdas dos padrões familiares, profissionais e sociais, fazendo-o resvalar para actos negativos do seu quotidiano. Mascaram-se os traumatismos do social e do relacionamento, tomando-o presa fácil dos acontecimentos, uma vez que, após a reforma, se converte no indivíduo improdutivo da sociedade. Transformado num «ex-homem», numa espécie de «lixo» ou «resíduo social», não participa mais nos mecanismos do universo produtivo. Neste contexto, identificada globalmente como classe de idade, a velhice ou a eufemística 3ª idade, socialmente marcada por uma inatividade reformada, independentemente das capacidades de cada indivíduo, é confrontada com uma forte estigmatização, enquanto classe de idade” (p. 71).

“A pobreza é um estado fixo que se cuida e apoia nos limites da sua manutenção, mas não da supressão dessa condição. À conta da perspetiva de que a solidariedade é a ação instituinte que opera na redução universalista do egoísmo, não se esqueça a perspetiva negativa, isto é, a de que, como interesse altruísta, a solidariedade não se subtrai a um sistema que tutela interesses particulares” (p. 79).

“Perspetivar a solidariedade social associada ao paradigma neoclássico, ou a solidariedade positivista, implica perceber a sua significação racional; quer quanto aos meios, quer quanto aos seus fins. Ela é clara nos objectivos. Na sua essência reduz-se à função caritativa e filantrópica, desde que emergiu até à contemporaneidade. Encravada no marco positivista, a ela subjaz uma orientação racional dirigida a um fim – o da paliação selectiva da pobrezae não uma perspectiva emancipalista dos indivíduos” (p. 81).

“A racionalização da solidariedade, ao direccionar-se, desde muito cedo, para a triagem da condição dos pobres, produz-se como piedosa benemerência, envolvendo os peritos na questão do engano perante o Estado «Em todos os países existiam obras privadas. A falta de entrosamento das mesmas ocasionava em muitos lugares a assistência dúplice e abusos de toda a sorte». Em 1869 surgiu em Londres a «Charities Organizacion Society», (berço do serviço social) cuja finalidade era coordenar o trabalho das obras privadas de maneira a evitar e resolver, rápida e economicamente os casos. (…) O movimento progrediu aceleradamente, observando-se entre as obras a tendência de se agruparem por nacionalidades ou por crenças religiosas. (…) Tanto na Europa como na América, os cooperadores das obras de caridade divergiam sobre as suas finalidades; uns sustentavam a necessidade de se ajudar os indivíduos, desenvolvendo a suas possibilidades a fim de ajustá-los à sociedade em que viviam, outros advogavam a necessidade de agir sobre o ambiente, modificando-o ou reformando-o para permitir uma vida normal” (p. 86).

“Ao passar-se da piedosa benemerência, da relação de dom, sem reciprocidade, para uma prestação de serviços a troco de «garantias simbólicas», poder e dinheiro, o conceito de solidariedade rompe com o seu carácter tradicional. A solidariedade social não se revê mais na amizade, no amor desinteressado pelo próximo, mas numa relação política que Weber designa de «colisão de interesses» (p. 86).

“O Idoso e as suas alternativas identitárias:

Chamo a atenção par esta parte que se segue, uma vez que esclarece, em parte, os motivos que estão por detrás de determinadas reacções ou comportamentos dos idosos, que nem sempre são compreendidas.

O seu mundo deixa de se organizar, orientar e interpretar através do «centro simbólico estruturador» – a religião e a tradição – que lhes concede segurança e estabilidade, para ser desafiado por uma quantidade imensa de possibilidades que a progressiva emergência de novas necessidades prático-vitais da vida quotidiana lhe impõem. Estes desafios são exteriores a si próprio, não partem dele, pelo que se constituem elementos de profunda perturbação” (p. 115).

“Alguns conseguem manter resquícios de auto-estima, integridade, defesa de sentimentos, auto-realização e autonomia, manifestam-se, na generalidade, através de expressões de agressividade e revolta” (p. 116).

Diminuído, domesticado, em exílio no seu tempo, o velho habita, todavia, neste homem que ele é. Como consegue ele, no dia a dia, contentar-se com uma tal situação? Que chances lhe são deixadas? Que defesas objecta ele? Só lhe resta aceitar as propostas que a sociedade lhe sugere, aprendendo a saber envelhecer, renunciando à vida vivida – a ser ele próprio” (p. 116).

“Muito embora os primeiros regimes de reforma tenham origem no século XVIII, a «questão das reformas» não é colocada senão no momento em que as primeiras gerações de operários começam a envelhecer, quando a classe dominante se confronta com os problemas de não saber o que fazer «com a multidão de velhos que não servem para nada» (Rémi Lenoir, 1979. 58). Vai, todavia, englobar todas as situações de operários que não produzem. É nesta lógica que as caixas de Reforma são instituídas pelos empresários a fim de, como afirma Roland Trempé, a propósito da Companhia das Minas de Carmaux, «reduzir os custos de produção desfazendo-os, em condições honrosas, dos velhos trabalhadores demasiado bem pagos para o rendimento que dão»” (Lenoir, 1979:56). (p. 120).

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“Rémi Lenoir transcreve um extracto de uma carta de uma mãe, colhida a propósito da realização de um inquérito sobre o suicídio, realizado em Paris em 1892, que exemplifica o estado miserável e desesperado dos idosos:

«Meu querido filho, digo-te adeus porque não posso mais estar aos teus cuidados; tu podes ganhar a tua vida, eu morro com a tristeza de a fazer perder a todo o mundo; a vida é demasiado pesada de suportar. Vou-me embora sem regresso. Deixo-te, parto para o desconhecido, que não deve ser pior que o meu estado»

(Lenoir, 1979: 60) in p. 121.

“Com o internamento produz-se a «desinserção» das relações sociais (do idoso) dos contextos locais de vida, subtraindo-o aos cuidados da sua manutenção na esfera privada do espaço familiar, que se tornou obsoleta e incompatível com o modo de produção do capital. Este corte, ao suspender um tempo e um espaço relacionais, implica, como garantia de equilíbrio pessoal, a criação de um novo edifício social que, a jusante, cubra os custos sociais dessa separação. Eis a razão de ser de uma arquitetura social da qual faz parte integrante o novo mundo asilar” (p. 125).

“A Revolução Industrial exige formas de ordenamento social radicalmente diferentes na concepção de um espaço e um tempo socialmente produtivos. A libertação para o trabalho fabril e febril, ao impor uma mobilidade inusitada, fragmenta irremediavelmente a unidade multigeracional, provoca uma cesura no ordenamento do modo de vida tradicional e engendra o trespasse das funções familiares para instituições que usurpam o idoso dos cuidados familiares. A desintegração intergeracional é substituída por próteses sociais – no caso das IPSS. Procura-se institucionalizar novas relações de confiança. Confia-se a educação às escolas, a assistência ao idoso a asilos, lares e casas de repouso” (p. 125).

“Criação recente, a gestão da velhice transforma-a em objecto de medidas políticas suporte a uma representação unificante. Identificada globalmente como classe de idade, a 3ª idade é simbólica e socialmente representada por uma «inactividade reformada», independentemente das capacidades de cada indivíduo. Apoiando-se numa presumível contestação das formas tradicionais de assistência e de exclusão que o hospício constitui, a política social da velhice, constitutiva desse novo campo social, entende promover concepções e práticas integrativas apresentando um vasto e grandioso aparato de programas de apoio a esta camada populacional, onde os utilizadores – os idosos – são excluídos da participação nos mesmos, como consequência da sua representação simbólica como «sem valor» e, consequentemente, sem direito a participação no espaço público” (p. 140).

“A sociedade tecnocrática, desvalorizando os anos de saber acumulado, representa a velhice como «desqualificação», promovendo a supremacia dos valores ligados à juventude. 

«Um velho não interessa a ninguém. É verdade que se o abordarmos na sua subjetividade, o velho não é um bom herói de romance, ele está acabado, coagulado, desatento, sem esperança: nada do que lhe pode acontecer é importante»”

(Beauvoir, 1970: 224) in (p. 140).

Estado Novo:

“(…) «enquanto houver um português sem trabalho ou sem pão a revolução continua». Salazar – 28 de Maio de 1930. O actual modelo da assistência social português tem como antepassado próximo uma acção tutelada pela face repressiva mais visível do Aparelho do estado, prefigurada pelo Ministério do Interior, a quem cumpre conceder personalidade jurídica às instituições que se submetem à «Tutela do estado, em conformidade com as leis, decretos, portarias, instruções e ordens emanadas do Governo» (Brandão, 1948ª: 35) in (p. 143).

“Uma nova lógica de poder tutela o confronto com a pobreza – a repressão policial destinada a «vigiar os mendigos, vadios, vagabundos, músicos ambulantes e menores em perigo moral» (idem: 25-26). A criação dos albergues distritais surge no escopo do combate repressivo de solidarismo dominante a um submundo da sociedade. «É preciso combater a atracção que os maiores centros exercem sobre os aventureiros, vadios, vagabundos, falsos mendigos e até verdadeiros, que descem das suas terras às cidades a tentar a sorte, na miragem da ociosidade, da liberdade no vício e na vida fácil, explorando a caridade pública dos meios grandes, onde pretendem passar despercebidos»” (Brandão, 1948ª: 181) in (p. 143).

“Assim, a pobreza deixa de ser um fenómeno «natural», na medida em que a sua gestão se inscreve em faltas de qualificação moral, cuja forma mais eficaz de debelamento é a repressão social, velha fórmula dos totalitarismos” (p. 143).

“Para que da selectividade repressiva não perdure réstia de liberdade pessoal, impõe-se a regulamentação do poder corporal sob a capa da moral tradicional. Em abono da moral e das virtudes públicas ordena-se e faz-se cumprir que «em todas as obras de assistência será obrigatória a separação dos sexos, tanto entre os assistidos como no pessoal dos serviços administrativos, escolares ou de enfermagem. A separação deverá realizar-se de preferência pela adopção de estabelecimentos independentes para cada um dos sexos»” (idem: 118) in (p. 144).

“Assim, o conceito de «pobreza relativa» não é como actualmente, em que se considera como exclusão dos padrões de vida da sociedade de inserção. O pobre é antes substantivado pela insuficiência salarial, condicionada à classe social de pertença. Define-se como classe única de «pobres os indivíduos de qualquer sexo ou idade cujo salário ou rendimentos sejam insuficientes para a sua sustentação e a dos seus, em harmonia com a classe social a que pertençam»” (Brandão, 1948: 29).

“O idoso de hoje não é mais um marco fatalista da pobreza, mas alguém a quem não se concedem instrumentos de manutenção da sua autonomia. É uma evidência empírica que a moderna procura dos serviços institucionais não tem tanto a ver com uma pobreza miserabilista, quanto com a falta de autonomia que a fragmentação da experiência moderna dramatiza. Hoje a expropriação do idoso não é tão marcante pela inacessibilidade económica a bens de primeira necessidade quanto ao isolamento comunicacional que produz o anonimato, na densificação banalizadora dos indivíduos nas grandes malhas urbanas” (p. 158-159).

“Se a trajetória asilar se implica na culpabilização da miséria como negligência ao trabalho, para o que faz despontar uma caridade policiadora dos pobres, o desencantamento provindo da dialetização da pobreza imobilizada pelo benefício já dá mostras de estar a emergir. O pobre, na modernidade, tem auto-representações condenatórias do espaço asilar, como experiência de fracassados, a par de um maior grau de conscientização de que o fracasso é o da própria experiência, que encerra uma dialética de inabilidade produtiva que o escorraça pela afirmação dos valores do mundo industrial” (p. 163).

“Se o discurso dos poderes institucionais traduz, por um lado, o desejo de que se refaça a afectividade com o idoso, a prática nega-o:

Porque:

1º – Determina a Direção que seja absolutamente proibida, seja a que pretexto for, a visita de utentes desta Instituição a casa de funcionários/as.

2º –  Mais, determina que seja expressamente proibido receber ou oferecer presentes, dádivas ou quaisquer outros afins, bem como transacionar, vender ou comprar seja o que for, com os utentes da Instituição.

O exercício da solidariedade social constitui um duplo engano racionalizador – o dos familiares e o das instituições. Os familiares, violentados pelo regime de trabalho que os impossibilita da partilha de sociabilidade com o idoso, exige que elas funcionem como espaço de preenchimento das virtuais condições que a família lhe ofereceria, pelo menos em termos de extensão e complemento afectivos. As instituições, por sua vez, ao atribuírem à família um descomprometimento indevido, obstinam-se perante as mesmas, inviabilizando qualquer crítica relativa à qualidade da prestação de serviços que, afinal, só se produz porque «há boas vontades»” (p. 168-169).

“A vida totalmente administrada antagoniza-se com o mundo da vida, pela razão de que as suas práticas estão divorciadas de uma totalidade existencial dos indivíduos. São mera prestação densificada de serviços (p. 169).

“A vivência do idoso é perpassada pela padronização, rotinização e atomização da acção profissional sob o manto da cultura institucional. Passa a obedecer a uma razão que a instituição produz, com vista à fundamentação de atividades classificadas como socialmente necessárias, pela concepção do trabalho subjacente à produção de serviços” (p. 170).

“A sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, destinadas a «normalizar» os seus membros, a fazê-los «comportarem-se» a abolir a ação espontânea ou reação inusitada” (Arendt, 1987: 50) in (p. 172).

IPSS – Instituições Particulares de Solidariedade Social

“A invocação dos «interesses públicos em jogo e o bem comum em vista» não ocultam o vasto rol de demissões que têm lugar no quadro de uma política prescrita pelo tutelamento. O modelo que tem a solidariedade como elemento chave do campo constrói-se através da incorporação do racionalismo político do estado, sob a forma vaga de «políticas sociais para a 3ª idade», nas quais as IPSS certificam um contratualismo corporativista que o Estado regula e catalisa, nas dimensões jurídica e económica e no locus das contracções produtoras de inacessibilidades universalizadoras a bens, cujo usufruto estas instituições selectivizam” (p. 182).

“A imposição ao idoso de um papel não produtivo na sociedade é o resultado da alienação da vida moderna relativamente à velhice. A seu ver, a solução para o problema deste ordenamento institucional de vida reside na mudança radical dos papéis sociais dos indivíduos, através da abolição do modo de produção do capital” (p. 208).

“Estas preocupações têm como pressuposto que o ganho de excelência se produz no espaço público, entendendo aqui no conceito de Celso Lafer, ao prefaciar «a condição humana» de Hannah Arendt como «aquele espaço que, quando existe ou não está obscurecido, tem como função, (…) iluminar a conduta humana , permitindo a cada um mostrar, para o melhor e para o pior, através de palavras e acções, quem é e do que é capaz» (Arendt, 1987: 1) (p. 228).

“A asilação traduz-se no fechamento ao mundo público pelo que, só a sua reapropriação permite a valoração da identidade do idoso num contexto de liberdade e criatividade escalpelizadas na força da palavra e da acção. O que está em causa é o direito que assiste ao idoso, do uso do pensamento, da vontade e do julgamento. Torná-lo público implica, no mínimo, que se faça a desmontagem dos espartilhamentos a que a modernidade o sujeitou” (p. 228).

“O idoso asilado não fala, não porque não tenha língua e menos uma linguagem propensa à publicitação da sua experiência, tão pouco por ter capitulado na aspiração à acção, no jogo em que se joga a comunidade política. Não fala, isto é, não age, porque a vida administrada lhe saca a palavra e a liberdade, num espaço ocupado por terceiros que lhe ilegitimam comportamentos em defesa de interesses recobertos por planos organizacionais que lhe são alheios, por proposições em que ele é utilizado no espaço público como sujeito sem identidade. Se ninguém liberta ninguém, se a libertação só é passível no endossamento à sociedade, a «velhice», como categoria social acorrentada em submundos, só se libertará através da conquista de excelência no espaço público” (p. 229).

Sem Título

“O afrodisíaco do poder nobilita-se na importância de quem detém a faculdade de prestar «favores» fulanizados à sociedade. Um não direito justifica um favor, trampolim estamental que enobrece quem o presta. Irrompem estratégias laboratoriais de delonga no internamento, nas quais se exercitam relações sociais clientelares” (p. 232).

“O quotidiano do homem moderno é caracterizado como sendo repartido por diversos campos de actividade: «(…) o indivíduo dorme, distrai-se e trabalha em lugares diferentes, com diferentes parceiros, sob autoridades diferentes, sem que esta diversidade de parcerias o retire de um plano de conjunto.» (Goffman, 1974: 17). Estes parâmetros desaparecem com o internamento, onde todos os aspectos da vida se passam a realizar no mesmo lugar e sob uma única autoridade – a instituição. A partir daqui, todos os aspectos da vida dos internados se inscrevem no mesmo quadro: as actividades quotidianas desenvolvem-se colectivamente, de forma homogeneizada, «uma relação de promiscuidade total com um grande número de outras pessoas, submissas aos mesmos tratamentos e às mesmas obrigações» (Ibid: 18); todos os períodos de actividade são regulados segundo um programa rígido, de forma a que todas «as tarefas se encadeiem umas nas outras de forma ordenada e sem falhas, de acordo com planos pré-determinados impostos de cima por um sistema explícito de regulamentos, cuja aplicação é assegurada por uma equipa administrativa»” (Ibid, 1974: 18) in (p. 238).

“Definindo as instituições de internamento como instituições totais, lugares «… de residência e de trabalho onde um grande número de indivíduos, colocados na mesma situação, retirados do mundo exterior por um período relativamente longo, levam em conjunto uma vida reclusa em que as modalidades são explícita e minuciosamente reguladas». Goffman encontra, nestas instituições, um «continuum objetivo» que se traduz no isolamento e no controle totalitário dos indivíduos, através da utilização de técnicas, tácticas e estratégias particulares de neutralização, segundo um modelo que impõe uma ordem racional, eficaz e coerente, às condutas dos indivíduos que dominam” (p. 239).

“Divergindo de Goffman, Horácio Ribeiro de Sousa considera as instituições modernas como «… dispositivos sociais de poder e veículos privilegiados para a manutenção do status quo. São o locus onde se treinam os indivíduos para a repetição da forma de sociabilidade vigente, através do acatamento cego das normas dominantes… são, na verdade, o espaço onde a sociedade confina os conflitos que evidenciam as suas contradições» (Ibid: 13).

“As instituições dependem, na realidade, dos seus clientes, mas transformam essa relação na figura de clientes dependentes de si. Ao atingir este estádio, a «instituição está realizada», não importando mais aqui a sua utilidade, os seus fins, ou a boa ou má utilização dos seus recursos – ela já é acatada, obedecida, não contestada e consequentemente inevitável a sua continuidade” (p. 240).

“De tal forma possuídas pelo poder, atribuem-se o poder de interpretar a realidade através da sua visão, estereotipada de acordo com as suas necessidades. Desautorizam e despojam da palavra aqueles que se lhes sujeitam, determinando as suas formas de pensar e sentir, de tal forma que qualquer manifestação por parte daqueles é minimizada: «Não sabem o que fazem» ou «não sabem o que querem»” (p. 240-241).

“O poder institucional implica obediência e impõe a sua prática e ideologia através da menorização e tutelamento dos que lhe estão sujeitos. «É a omnipresença da instituição sobre o seu internado, onde não só lhe subtrai a linguagem, como também se realiza a destruição do Ego do internado que depois não se adaptará à vida fora dos portões da instituição. Há uma eliminação do equipamento social do interno, uma perda da sua identidade»” (Ribeiro de Sousa, 1984: 22) in (p. 241).

É um espaço onde se instaura um processo de luta, oposição e dominação que deverá subordinar toda a individualidade e identidade do idoso e «vencer suas pretensões, domar seus arroubos, quebrar seu orgulho»” (p. 242).

“Numa categoria de inacção e morte, envolta num quadro impressionista do metabólico, a velhice permanecerá na opacidade, no anonimato, enquanto não arremessar ao espaço público a sua capacidade de pensamento, e de ação, até aqui dominada pela produção social do idoso menorizado. Com efeito, «conhecer as condições de existência normal implica, ao mesmo tempo, conhecer as condições de possibilidades de agir, em si mesmo antecipável quando se manifesta na sua liberdade mais absoluta»” (Miranda, 1994:32) (p. 229).

“Os rituais de internamento constituem marcos angustiantes, carregados de fortes sentimentos de perca. Neste momento, o idoso despoja-se da quase totalidade dos seus papéis. É a perda definitiva da privacidade, da individualidade, isto é, do pouco sentido identitário que ainda possa ter preservado. Subtilmente, vai-se despindo da sua aparência habitual e despedindo de um sentido pessoal de auto-estima e segurança, num ambiente que não lhe garante a sua integridade física e psíquica, já que aqui o território do seu «Eu» é violado, o seu corpo deixa de lhe pertencer de forma privada, uma vez derrubadas as barreiras entre o seu ser e o ambiente. A organização disciplinar penetra na sua vida. Coloca a suas ações à mercê de sanções (explícitas e implícitas) que violam a autonomia das suas atividades, bem como a sua liberdade de ação. A perda de autonomia, implicando a perda de poder de decisão e escolha, tem como resultado a renúncia da vontade” (p. 248).

O corpo degradado do envelhecimento, corpo-sinal, portador de estigmas, é despossuído da sua privacidade na instituição. É colocado a nu, mostrado, exposto, através de práticas quotidianas de higiene e prestação de cuidados. A promiscuidade das salas comuns ou dos quartos, a ausência de equipamentos conducentes a uma maior privacidade (biombos, instalações sanitárias individualizadas) contribuem para que o seu corpo seja tratado ou manipulado aos olhos de todos. Aquilo que traduz o aspecto mais privado da vida do indivíduo, o corpo, é aqui desnudado, tratado com a maior indiferença e revelado publicamente em toda a sua degradação – os olhos do pessoal e, porque não dizê-lo, muitas vezes aos olhos dos visitantes. O corpo é mostrado, a intimidade violada, em nome da higiene” (p. 249).

“O estigma segregador dos uniformes (de há muito em desuso), mantém-se na malha simbólica do corpo institucional. Muito embora a generalidade dos utentes detenha o seu próprio vestuário pessoal, este é numerado e regulamentarmente entregue à disciplinada guarda de um sector de rouparia que, semanalmente (ou com a periodicidade que o estado de controle ou não de esfíncteres exige, para uma higiene eficaz), envia para o sector de internato a roupa que entende que o idoso deve utilizar naquela semana. O idoso não escolhe a roupa que vai vestir. Com o decorrer do tempo deixa mesmo de conhecer o que é seu. Este corpo degradado não necessita de sentir gosto e prazer em estar confortavelmente vestido, arranjado com gosto e até vaidade pessoal. Já não tem direito à vaidade, porque a higiene tomou-lhe o lugar. Corpo desprezível, feio, curvado e deformado só necessita de não se apresentar nu, apesar de paradoxalmente desnudado. No interior da instituição, concorre-se para o desencentivo de todo o valor simbólico do arranjo pessoal, quer no que respeita ao vestuário, ou ao embelezamento pessoal do corpo. Sempre que foge da normalidade expõe-se à ironia, ao sarcasmo a até ao sancionamento invisível dos funcionários e dos colegas:
– «isto já não é para a minha idade».
– «esta velha maluca veste-se de todas as cores do arco íris, não tem vergonha»
– «vejam, ela pinta-se, é a senhora “pote de pintura”» (p. 250).

27.08.12_-_ENVELHECIMENTO

“A lógica dos agentes institucionais insere-se ainda, num poder/dever de distribuição da refeição e promover o controlo do seu consumo efectivo, não como um fim em si mesmo, mas como um meio. Neste sentido, os agentes dos cuidados directos usufruem de um forte poder de dominação sobre o idoso, na medida em que, através da distribuição alimentar, lhes é possível punir ou gratificar cada idoso” (p. 253).

“Por exemplo: se um idoso gosta mais do peito do frango, o funcionário pode puni-lo colocando no seu prato uma perna; se o idoso come muito, coloca-lhe pouca comida; e se pede para repetir pode dizer que já não há mais; o idoso não gosta de um determinado prato e a funcionária sabe-o, podendo dar-lhe mais sopa para que não fique mal alimentado, todavia, porque não gosta dele, não o faz” (p. 253).

«A idosa X está numa cadeira de rodas algaliada. Precisa de 3ª pessoa para o quotidiano». «A candidata a utente (…) foi hoje submetida a exame médico tendo revelado uma independência física, mas do ponto de vista psíquico e provavelmente por arteriosclerose cerebral senil marcada mostra-se dependente, pelo que e dado o número de dependentes já existentes, sugiro que seja ponderada a sua admissão, já que na prática parece vir a tornar-se uma dependente total». Nestes casos, a formalização escrita da exclusão é linearmente assumida e revela a exclusão pela relação custo-benefício, isto é, pela lógica economicista que encerra. Esta é uma das facetas da exclusão, indiciadora do sentido autofinalista da instituição que, no bojo de um racionalismo pragmático/utilitário, equaciona a perpetuação do quociente entre o número e condição dos internados, e a quantidade de trabalhadores ao seu serviço” (p. 268).

“O benefício do serviço prestado pela instituição ao idoso inverte-se pela lógica do benefício do idoso à instituição. A apreciação dos parcos meios dos despossuídos, ao funcionarem como contrapartida aos meios institucionais, acabam por distorcer os fins propalados pela instituição” (p. 276).

“A aritmética política do Estado, materializada na atribuição de uma massa monetária per capita aos recursos privados, não impede, e nalguns casos favorece, uma regulação orientada para uma selectividade negativa da pobreza, isto é, divorciada da inclusão institucional dos indivíduos mais carenciados” (p. 278).

“Assim, os fundos públicos acabam por ter um carácter contraditório. Se por um lado, as IPSS são tuteladas numa lógica não mercantil, isto é, de não lucro, por passarem pelos fundos públicos; por outro, a racionalização dos fundos conduz a que a sua gestão opere com instrumentos próprios de acumulação através dos quais as instituições reforçam tarifas preferenciais, selectivas, adversas da noção de serviço público” (p. 279).

“A analítica da racionalidade do sistema asilizador, reflectida ao longo deste trabalho, não se insere num juízo crítico apriorístico da preferência por uma experiência de mudança, mas pela constatação da resistência dos indivíduos a tomarem como representação de «vida boa» o modelo institucional que se apropria das suas vidas” (p. 294-295).

“A solidariedade é uma questão pública que se aplica à arquitectura da sociedade como um todo, pelo que importa perceber que qualquer tentativa da sua redução à caridade e à benemerência, constitui uma apropriação privada inadequada de um problema público” (p. 301).

A solidariedade e os valores que se lhe associam, constituem algo mais complexo que o solidarismo filantrópico, separado do conhecimento integrado dos problemas, dos meios de análise e interpretação do próprio sistema em que está inserido e o modo como usar tais objectivos de forma rigorosa e politicamente adequada. Isto implica a superação do problema das amarras de uma relação institucional singular tomada como modelo «natural», para uma visão da 3ª idade como categoria política aberta, isto é, sujeita à discussão no espaço público” (p. 301).

“O racionalismo jurídico-contábil do Estado cessará, como elemento moralizador da aplicação dos dinheiros públicos, através da aplicação de políticas públicas caucionadas pela avaliação dos resultados e pela criação de expectativas comuns, isto é, baseadas em programas de acção identificados com uma política social. O seu cumprimento advirá de uma gestão que se implique não como racionalidade pastoral, mas como social, através de uma co-gestão participativa dos indivíduos.
Promover a solidariedade social como política, envolve o empenhamento do Estado na resolução dos princípios constitucionais de uma política pública para a 3ª idade, que promova a formação de espaços que reflictam com os idosos uma relação paritária com a sociedade civil. Impõe-se uma relação clara com o estado e as associações de idosos, numa relação construída como política pública de assistência.
Conceder cidadania à população até agora alvo de uma caridade intermitente e burocrática, só pode culminar na desmetaforização da solidariedade social e na elucidação de que as IPSS (ao se constituírem como lobbies filantrópicos orientados para o campo de um dever moral) prestam um serviço que, se se mantiver reprodutor de uma racionalidade burocrática, divergirá da solidariedade do mundo da vida, isto é, não se direccionará para «o campo dos direitos sociais e a universalidade da protecção social, da segurança social», para a ponderação de valores de equidade social” (p. 302).

“A leitura crítica do modelo asilar e dos efeitos da racionalidade burocrático-tutelar, como marco dominante do campo assistencial das IPSS, deixa justificadas questões em aberto quanto à sua relação com o «progresso», entendido como expressão de liberdade, de justiça e auto-organização. A administração, fundada nos princípios de uma razão estranha e formal, separada dos indivíduos, acalenta uma experiência periférica ao «mundo da vida», cristalizadora dos seus impulsos de liberdade e autodeterminação. Importa, por isso, que à luz das conclusões da pesquisa, se repensem os fundamentos do modelo asilar numa sociedade democrática, como condição de apropriação de garantias mínimas de uma «vida boa» universal. A reflexão não chega ao fim sem que seja precedida de uma derradeira crítica à faceta desregulamentadora do modelo asilar – a denominada «assistência domiciliária» – tomada pelo Estado e as instituições, como vanguarda autonomizadora no campo da solidariedade social. A domiciliação da assistência tem por base o princípio alternativo de levar a instituição a casa dos indivíduos e constitui a face liberal do modelo asilar, onde a ideologia tuteladora permanece intocável na negação dos sintomas de autonomia dos «assistidos». Não há, na sua forma, uma evolução do modelo asilar mas uma composição do mesmo. Trata-se de uma nova versão que constitui o respaldo performativo de reflexibilidade da crítica ao modelo clássico. Na impossibilidade de reconstituição da unidade familiar, distorcida pela fragmentação da experiência, pretende, com o pretexto aparente «da manutenção do idoso na comunidade» e de uma assistência no »seio da família», ocultar uma estratégia geral de descomprometimento com uma política social para a 3 ª idade. Nesta versão liberalizadora do modelo, não está em causa qualquer esboço de política social associada à vontade de reconstituição da comunidade, mas antes a prestação de apoios esporádicos que, ao se efetivarem em casa, tranquilizam falsas consciências quanto ao modo de vida mais solitário que se possa imaginar e que o domicílio oculta” (p. 310-311).

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“Fundada em pressupostas preocupações com a não expropriação do idoso do seu espaço habitacional, este serviço, a par da intermitência e natureza esporádica dos apoios, aponta para a negação da vivência organizada dos indivíduos. Tudo se passa como se para a maioria dos indivíduos, tal espaço traduzisse formas de sociabilidade concreta. A pretexto da manutenção domiciliária do idoso, incrementa-se um estilo de vida solitário. Mesmo para a maioria dos idosos que têm família consaguínea ou parental, a sua vivência relacional esfuma-se na dispersão espacio – temporal das famílias nucleares descendentes. A casa não é mais um emblema de um habitat estabilizador, mas um sintoma de vida familiarmente descontextualizada, de uma referência eremítica, mesmo quando gerido por um deficitário rodízio familiar que antecede a experiência do internamento. O apoio domiciliário, baseado na mobilidade territorial da instituição, acaba por se constituir um modelo que, do ponto de vista da sociabilidade, se configura como um isolamento tão perverso quanto o modelo asilizador. Esta versão do modelo permanece apostada na manutenção de uma concepção deficitária do idoso, pela negação da sua condição se sujeito como mente de uma enunciação jurídica, ética e política. Submetido à condição de consumidor desqualificado de serviços geridos pela mesma racionalidade, o idoso confronta-se com as mesmas tecnologias de denominação dos corpos. Só a sua geografia muda” (p. 311).

“As instituições, não tendo sido criadas directamente pelo Estado, acabam, legitimadas por ele, por funcionar como campos de cisão da experiência, produtores de uma castração do exercício da autonomia e liberdade dos indivíduos, em que a sua lógica contábil acaba por inverter a posição entre beneficiado e beneficiário” (p. 313).

“Analisa-se a exclusão social não como prática desejada pelas IPSS, mas como imperativa no contexto de uma lógica para-mercantil a que as instituições se obrigam, por força do racionalismo aritmético estatístico a que aderem, ao aceitarem a função de criação de excedentes, como forma de superação do protagonismo deficitário das debilidades da regência do Estado-Providência nacional” (p. 313).

“As relações Estado-Instituições, nos moldes em que este trabalho as dá a conhecer, perpetuam uma tutela que as mantém em fronteiras artificiais de interesses múltiplos e heterogéneos, que têm mais a ver com a orientação de interesses instituídos que com o afrontamento da pobreza como condição de cidadania” (p. 313).

“Uma nova concepção de homem supõe a destronização da concepção vigente de «velho». No novo modelo nenhuma fronteira distingue o cidadão do velho, porque eles são, por força do direito, iguais no ato de habitar ou de usar um serviço público. Impõe-se um modelo que dê crédito à sua condição de cidadania, e discuta a criação de condições de exercício autónomo da administração da vida. A acção social só será justa na medida em que uma relação solidária venha a ter, como base de actuação o aumento e não a diminuição da autonomia das pessoas” (p. 315-316).

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“Na minha utopia, a solidariedade humana seria vista… como um objetivo a atingir… pela imaginação, pela capacidade imaginativa de ver em pessoas estranhas companheiros de sofrimento. A solidariedade não é descoberta pela reflexão, mas sim criada… com o aumento da nossa sensibilidade aos pormenores específicos da dor e da humilhação de outros tipos, não familiares, de pessoas. Uma sensibilidade assim aumentada torna mais difícil marginalizar pessoas diferentes de nós por se pensar que “eles não sentem da mesma maneira que nós sentiríamos” ou que “terá sempre de haver sofrimento e, assim sendo, porque não havemos de os deixar a eles sofrer?” (Rorty, 1994: 19) in (p. 320).

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Bibliografia

SANTOS, Figueiredo. ENCARNAÇÃO, Fernanda. (1998). Modernidade e Gestão da Velhice. Edição do centro Regional de Segurança Social do Algarve. Faro.