Uma Doce Procissão

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Uma Doce Procissão

Procissão

Imagem da autoria da pintora portuguesa Sarah Affonso

A verdade, como a inocência, costuma estar inerme: não toma o cuidado de se precaver com alibis. Essa é a sua miséria, essa é a sua grandeza.

PILAR URBANO

Durante o mês de Agosto o blog Aldeia da Minha Vida tal como vem sendo habitual, promoveu mais uma blogagem colectiva, desta feita subordinada ao tema “Festas e tradições na minha terra”. Actualmente não aprecio este tipo de manifestações populares, porém, em criança fui delas uma verdadeira fã. Naqueles tempos em que proliferava a santa ignorância e digna miséria, as festas populares eram o único meio disponível para espantar a pasmaceira reinante naquela terra que me viu despontar para o mundo. Porque as minhas abundantes recordações, para graça minha, permanecem viçosas, ainda pensei participar narrando um episódio pitoresco, ou que  de alguma forma, melhor representasse as minhas vivências desses festejos.

Todavia, enquanto assim estava, imbuída das melhores intenções, uma dúvida me assaltou o espírito! Então, mas que cara de pau é a minha, ter a pretensão de redigir um texto sobre os tradicionais festejos e romarias, a que assisti na minha infância, se lhes desconheço completamente as origens? Algo incomodada conferenciei para os meus botões: Quando quiseres falar sobre seja o que for, vê se o fazes como deve de ser. O mesmo seria dizer, que gostaria e, sobretudo, deveria iniciar a minha narrativa, referindo como se originou a tradição e como foi evoluindo ao longo dos tempos. Confesso humildemente que disso nada sei. Porém, não deixo de ter uma certeza: As festas tradicionais têm na sua maioria raízes religiosas. E aqui reside o busílis da questão: Ora! Assim sendo, eu deveria deter sobre estas festas populares conhecimentos mais profundos, na medida em que além de ser católica, na minha infância também fui praticante. Pois se frequentei a catequese e até fiz o crisma! Também costumava ir à missa aos Domingos, por vezes até optava por ir ao sábado, lá pelo final da tarde, para mais depressa ficar “despachada”, que era assim que ouvia dizer aos adultos, como se o exercício da fé fosse mais um dever do que a necessidade de alimento para o espírito. Escusado será dizer que ir à missa era para mim um suplício.

Tornava-se-me incompreensível  toda aquela retórica sobre o pecado.  Mas que mal já teria eu feito para  que me fosse dado pressentir, ao assistir a uma simples missa, tantos  e  tão impiedosos castigos? Depois  havia  ainda outra agravante, que era o incómodo de ter de ficar de pé, por não haver lugar disponível para me sentar. Os pés agonizavam apertados dentro dos sapatos domingueiros, que do pouco uso permaneciam indomáveis e me mordiam implacavéis os tenros deditos. Sempre que por um inusitado acaso conseguisse almejar um lugar sentada, infelizmente era sol de pouca dura. Não levava muito tempo até sentir poisar no meu delicado e franzino corpito, o olhar feroz e carregado de censura de alguma senhora mais idosa, que desta maneira tão suja, me acusava mudamente de lhe estar a usurpar o lugar que devia ser seu, porque a idade e as trôpegas pernas lhe concedia esse direito.

Por causa desta e de outras situações, como por exemplo, o incomodativo cheiro a naftalina dos armários, que impregnava as cerimoniosas fatiotas de ir à missa, quando a igreja estava apinhada, aproveitava-me da confusão para me escapulir. Para evitar o sermão da minha mãe, que não iria aceitar pacificamente o facto de me ter raspado da igreja, costumava entreter-me na rua, sentava-me nem que fosse numa pedra num canto qualquer mais recatado e ali esperava, sozinha que nem um cão, até perceber o final da missa pelo furioso repenicar dos sinos.

E assim fui fazendo. Sempre que me era possível usava de manhas e artifícios para me furtar de ir à missa, até que lá pelos meus treze anos, decidi lançar o grito do Ipiranga e libertar-me do jugo materno. Depois de conquistado o meu direito de opção, as vezes que entrei numa igreja e assisti à missa podem ser contadas pelos dedos das mãos, se é que não será mais acertado referir apenas os dedos de uma mão. Que me lembre devem de ter sido as missas de dois casamentos, de um baptizado e de um ou dois funerais, porque normalmente prefiro ficar na rua a confraternizar. Mas a verdade é que destas poucas vezes, gostei sempre de ter ido. A mensagem de Cristo é  tão bonita!  Contudo,  admiro-me profundamente  por as pessoas que  se dizem cristãos praticantes, não serem efectivamente bem melhores, isto é, mais justas, tolerantes e verdadeiras, do que aquelas que nunca  foram praticantes ou que um dia o deixaram de o ser! Afinal, não posso deixar de confessar que me causa alguma estranheza, como pode ser possível que se esvaia do espírito, assim tão facilmente e com tamanha rapidez, uma mensagem tão bela e que, para mais, tanto ouvem!

vela

Mas a igreja não é só missas. Também tem festas e procissões, coisas que já não considerava nenhum sacrifício. Muito pelo contrário! Embora me cheirasse tudo ao mesmo, isto é, continuava a haver santos e rezas. Lembro-me que gostava especialmente de incorporar as procissões de uma determinada época em que se andou a construir uma nova igreja. Para ajudar a angariar fundos para financiar a divina obra, foi criada uma comissão que levou a peito a missão de idealizar formas capazes de gerarem receitas. Viram-se, então, senhoras que transportavam acolhidos no regaço, lindíssimos e aparentemente deliciosos bolos, em cuja confecção haviam caprichado, movidas pelo desejo e, também, a verdade seja dita, por alguma pouco discreta vaidade, que o seu bolo pudesse atrair as atenções e assim rendesse uma grossa maquia, que com muito gosto ofertariam à nova igreja. Ver todas aquelas provocadoras iguarias, aqueles manjares do céu, faziam-me sentir simultaneamente prazer e sofrimento! Por vezes penso, que nós, seres humanos, somos demasiadamente complicados. Afinal, porque me dava  àquele masoquismo? Porque havia eu, afinal, de ficar ali a babar-me toda, vendo perante os meus gulosos olhos desfilar tão garbosos bolos, se tinha a absoluta certeza que não lhes poderia chegar? E como não podia fazer outra coisa, dedicava-me então a sonhar com o dia em que os poderia comprar, não só para os comer, mas, também e principalmente, para os dar a comer aos meus filhos. Houve um bolo que vi na procissão cuja imagem me perseguiu durante longos anos. Era um bolo adornado com uma cobertura muito bonita e serpenteando à sua volta haviam uns fios de um creme qualquer, que me fazia lembrar a massa esparguete, só que  aquela não era uma esparguete qualquer, esta adivinhava-a bem doce e gostosa, melhor dizendo, uma coisa do outro mundo! De bom grado lhe teria metido o dente! Recordo-me que ficava hipnotizada  a olhar  para o tal bolo e a engolir abundantes golfadas de saliva. Porém, resta-me uma consolação: É caso para dizer que ainda bem que não tive meios, ou seja, que não tive dinheiro para o comprar, porque hoje sou capaz de imaginar quanto pó, perdigotos e germes  lamentavelmente carregaria. É que os bolos, anichados nos braços das pessoas, desfilavam a céu aberto, sem nada que os envolvesse protegendo-os! Ainda não havia a temida ASAE! E não estou a fazer como a raposa, que quando viu que não chegava às uvas resolveu dizer que estavam verdes, logo não prestavam!

Bolo