Malvado Carocha!

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“Se não queres perder-te no esquecimento tão cedo como chega a morte, escreve coisas dignas de ler-se, ou faz coisas dignas de escrever-se.”

BENJAMIN FRANKLIN

A todos os meus queridos visitantes as minhas saudações! Por motivos profissionais, tenho andado um pouco ausente, mas não me esqueci de que prometi contar-vos outra das minhas histórias com aquele danado carocha!

A minha velha lata tinha uma particularidade que desde logo detestei. Bastava estar parado dois dias seguidos e logo o motor deixava de pegar. Num belo dia, entrei no meu rodinhas para ir dar umas curvas, liguei a chave e ouvi um som que mais parecia uma engasgadela, e por ali ficou! Lá por causa disso não me atrapalhei! Para tudo existe remédio! Engatei a 2ª mudança, pisei a embraiagem, destravei o travão de mão e inundada de esperança que o motor pegasse, deixei descair a carripana estrada abaixo. Para minha grande infelicidade o motor  desta vez não pegou, o que me deixou aflita, já que a estrada estava prestes a atingir um ponto sem qualquer inclinação. Com o carro a soluçar dos frustrados arranques seguia eu estrada fora, já a adivinhar o pior, quando me lembrei de que, imediatamente em frente e à direita, existia uma pequena ruela de acentuado declive que, aí sim, pensei comigo, teria o impulso necessário para vencer a resistência do casmurro motor.

Sabia que esta ladeira era bastante estreita, só não sabia quanto, recentemente tinha sido alvo de  beneficiações, pelo que confiante e decidida virei à direita, quando ouvi um estrondo! Sem mesmo saber o que tinha sido aquele estoiro, desembolei como uma doida pela íngreme descida, pisando e levantando sucessivamente o pé da embraiagem, porém o carocha teimoso não tugiu nem mugiu! Para cúmulo do meu desespero dei-me conta  de que a rua estava a estreitar-se, até que, a  frente do carro ficou literalmente entalada entre dois muros de pedras. Quando vi o que tinha acontecido fui acometida por um súbito e violento afrontamento, desesperada abri a porta para inalar ar fresco, quase me dava uma coisa má!

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Concluí, portanto, que tinha acabado de levar a cabo uma tremenda estupidez, que desta vez não atribuí tanto à minha azelhice, mas antes, aos inconvenientes de conduzir um carro velho, pois se não tivesse a bateria descarregada, nada disto teria acontecido. Saí do carro e procedi a uma avaliação da ocorrência. Se para a frente não havia grande viabilidade, para trás também não, porque estava impedida de pôr o motor a trabalhar. Ainda pensei de, pedra a pedra, desfazer um dos muros, para lograr espaço suficiente que me permitisse sair daquela enrascada, todavia, tal empresa afigurou-se-me uma tarefa algo ingrata, visto que o estreito canal se prolongava por mais de dois metros.

Espreitei ambos os lados do carro, havia que calcular de antemão, as inerentes dificuldades envolvidas nas futuras manobras na remoção do carro do tão inusitado aperto, quando vislumbrei que o guarda-lama direito traseiro estava um bom bocado metido para dentro,  afinal,  o estoiro que havia ouvido e que me tinha parecido um rebentamento, tinha sido fruto de uma cacetada num poste de electricidade, que se encontrava na esquina logo no início da pequena rua, devido a ter feito a curva demasiado fechada. Como se estava a aproximar o final do dia achei por bem deixar as coisas como estavam, e, decidi pedir ajuda a um amigo, que retirou a bateria para ser carregada na oficina. No dia seguinte, bastaria recolocar a bateria no seu lugar.

Depois de uma noite mal dormida, amargurada pela preocupação de saber a carripana naquele despropósito, na hora aprazada  lá fui ter ao local da vergonha, quando uns vizinhos se acercaram e me contaram que a “Cachucha”, uma personagem característica lá da terra, que como se sabe todos os lugares as têm, ao cair da noite, tinha descido a ladeira carregando à cabeça um desmesurado molho de lenha. Ao deparar-se com tão inesperado obstáculo, que a impediu de prosseguir no tão oportuno atalho que a levava a casa, havia desatado a proferir abundantes palavrões daqueles bem peludos e graúdos… e outros mimos! Chamou-me tudo, excepto mãe! Depois de aproveitar a embalagem da tão providencial ladeira, lá teve a desgraçada de fazer o percurso ao contrário, ou seja, subir num esforço redobrado a rua que mais parecia uma íngreme escarpa, com o pesado molho de lenha à cabeça.

Quedei-me a olhar para aquele triste cenário e fui levada pela força das circunstâncias a pôr a mão na consciência, considerei que a tal personagem até tinha razão! Era tudo tão ridículo! Só me apetecia atirar com o carro para uma ribanceira e assim livrar-me de uma vez por todas daquela fonte de vergonhas! Grande malvado!

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São amêndoas, Senhor!

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“Nunca ande pelo caminho traçado, pois ele conduz somente até onde os outros foram.”

ALEXANDRE GRAHAM BELL

Hoje é dia de Páscoa. E como não poderia deixar de ser, apresto-me aqui, para vos contar como foram as Páscoas da minha meninice. Foram pobres, o que me deixa muita pena – mas vergonha, nunca! Não tenho pruridos em revelar que descendo de uma família pobre, humilde e muito honesta. Exactamente o tipo de família que não interessa a ninguém! Mas disso não me incomodo – porque sou diferente – vejo o mundo com olhos de ver, e penso!

Sobretudo, penso. E vejo. E o que vejo e percebo, meu Deus!

Naquele tempo costumávamos passar o Domingo de Páscoa na aldeia natal dos meus pais.  Alguns dias antes fazíamos a viagem num velho autocarro da carreira, carregados de bagagem, que não eram malas nem mochilas elegantes, não senhor! Eram seiras e invariavelmente uma saca de serapilheira cheia de tralha, provavelmente só trapagem.

Esta saca de serapilheira era uma companheira inseparável do meu pai. Para onde ele ia, ia a saca. Tínhamos campos na aldeia dos quais o meu pai se ocupava. A saca de serapilheira cheia que nem um ovo fazia-lhe as honras de mala de viagem. Lembro-me que o velho autocarro, de tanto esforço, resfolegava estrada fora, o que sempre me fez temer ter de fazer a pé alguma subida mais íngreme. Mas o que muito me incomodava eram os gases mortais que exalava pelos tubos de escape e sei lá por onde mais! Ficava sempre mal disposta. Chegava à aldeola num estado deplorável. Mais para lá do que para cá!

Chegados à nossa minúscula casita, a primeira coisa que o meu pai fazia era acender uma brutal fogueira na nossa grande lareira. Ele era assim. Ou tudo ou nada.

Fui acostumada a dois tipos de fogueiras. As do meu pai eram só labaredas, emitiam um tal calor que até nos fazia encolher a pele do rosto!

As fogueiras da minha mãe só faziam fumo, e não aqueciam nada! Era o seu espírito de eterna poupança, neste caso era a poupa da lenha. Entretanto tratava-se do almoço e nós crianças por ali andávamos aos saltos, excitados pela novidade trazida na quebra da rotina.

Pela tarde, a minha mãe embrenhava-se com intenso fervor na limpeza da pequena casa. Só no dia seguinte e rente à noite, lograva descansar de tão árdua tarefa. Incansável, caiava, esfregava e encerava com tanto afinco que no Domingo de Páscoa toda a casa estava num brinco. No ar pairava o reconfortante cheirinho a limpo, a cera e a cal fresca. Escusado será dizer que o fazia sozinha, o meu pai tinha outros interesses e urgências…

No Domingo de Páscoa saíamos da cama na alvorada e depois de um banho vestíamos roupa nova. A nossa casa situava-se num extremo da aldeia, por isso era uma das primeiras a receber a visita pascal. Às oito horas da manhã a porta da entrada da nossa humilde casinha estava já escancarada, tal era a vontade de receber o Senhor. O padre iniciava a sua labuta bastante cedo, tinha de haver tempo para fazer a colheita, pois então! Às tantas lá víamos aparecer o pároco com as suas vestes inconfundíveis acompanhado pelo sacristão. Abeirava-se da porta e pedia licença para entrar, cumprimentava os meus pais que cheios de mesuras o guiavam até à sala, trocavam-se meia dúzia de considerações após as quais lhe era feito um gesto para que pegasse um envelope, que estava poisado num prato de boa e fina louça. Devo dizer-lhes que o envelope dedicado ao padre foi sempre uma coisa que me fez confusão. Ao lerem isto façam-me o favor de não pensarem que estou a armar-me em esperta. Eu lá sabia o que sentia. A seguir compreenderão porque me confundia dar dinheiro ao padre. Assim que o envelope desaparecia das nossas vistas era chegada, para nós crianças, a melhor parte da festa.

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O padre mergulhava a mão numa saca de pano e de lá trazia uma mão-cheia de confeitos que num gesto largo, tal como quem atira sementes à terra fértil, espalhava pelo chão recentemente encerado e que brilhava como um espelho. Sem mesmo esperar pela saída do padre, logo eu e os meus dois irmãos iniciávamos um voo picado em direcção ao soalho, na ânsia de arrebanharmos o mais que podíamos. Um de nós ficava sempre pior, porque outro tinha sido mais ágil, no fundo, é assim em tudo, para uns terem muito, outros há que ficam sem nada.

A seguir o meu pai dava a cada um dos nós um pequeno pacotinho de 125 gramas daquelas amêndoas duras que hoje todos desprezam e porque não havia pacotes ainda mais pequenos, acredito bem! Era a tradição da família. Foi estabelecido que era o meu pai quem nos dava as amêndoas. Olhava-o enquanto me estendia o pequeno pacotinho de amêndoas e percebia que isso lhe dava satisfação. Na sua ideia estava a fazer uma grande coisa! Sei que ele em criança nem isso teve, mas eu via outros a terem muito mais do que eu e essas diferenças intrigavam-me.

Também me revoltava ver a minha mãe comprar um pacote de amêndoas das foleiras, é certo, mas com 250 gramas, para oferecer a uma afilhada. Isto não me caía bem e costumava refilar, ao que ela contrapunha tentando fazer-me ver que era a sua obrigação, na medida em que era um hábito próprio das madrinhas. Todavia este argumento não me convencia e logo retorquia que a afilhada já era bem crescida, trabalhava, tinha ordenado, portanto, não precisava que lhe dessem amêndoas. No fundo considerava que a minha mãe estava a tirar da boca dos filhos para pôr noutra boca e esta minha maneira de ver estendia-se ao envelope dado ao padre.

Sabia que o padre dali, da nossa casa, não levava grande coisa, a avaliar pelas “mãos agarradas” do meu pai… Se dentro do famigerado envelope fossem duas notas de Santo António já era muito, porém, de uma coisa tinha a certeza, com quarenta escudos daria eu largas à minha gulodice e poderia ter comprado muitos pacotinhos de amêndoas, para encher a barriga.

Agora tenho amêndoas de várias qualidades, cores e sabores, ali num lindo pote de cristal decorado a prata, obra das artes vidreiras da Marinha Grande, mas nem lhes toco… Engordam muito! A vida é mesmo lixada… Um minuto na boca, uma eternidade em redor da cintura. Não. Não quero amêndoas…

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E o carocha a fazer das suas!

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“O que viveu mais não é aquele que viveu até uma idade avançada, mas aquele que mais sentiu na vida.”

JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Hoje estou um bocado em baixo. Pela primeira vez o meu filho decidiu dar uma sacudidela à asa materna e embarcou  num avião rumo à Alemanha! Foi ter com a namorada! O que faz um jovem apaixonado! Se a estória que aqui vos conto lhes parecer triste, já sabem qual foi a causa. O meu estado de espírito não está no seu melhor…

Quero também desejar aos meus queridos visitantes uma boa Páscoa.

Ora aqui vai a continuação de um acontecimento da minha vida que me ficou guardado na memória por ter sido especial. Comprei o meu primeiro carro e com isso dei início a um extenso rol de vergonhas das quais fui vítima por não saber fazer marcha-atrás. Depois de sair da cidade de Tomar, a viagem de regresso decorreu com bastante normalidade. Exceptuando um ou outro solavanco causado pelos buracos na estrada dos quais à cautela nunca me desviei, não fosse o diabo tecê-las, ainda era muito cedo para me atrever nas artes da gincana! Assim que cheguei à cidade dirigi-me ao meu local de trabalho, virando para a  rua que lhe dava acesso e que se  encontrava-se parcialmente obstruída pelas obras de recuperação de um prédio antigo. A frente deste estava vedada por uma rede que se estendia para além de cerca de três quartos do pavimento da  estrada, deixando livre um estreito corredor que apenas permitia a passagem dos peões e motorizadas. Dentro do espaço vedado jazia toda uma parafernália de materiais e utensílios próprios da construção civil: montes de areia, a betoneira, diversos tipos de ferros, madeiras, pedras e uma grande quantidade de entulho que transbordava para além dos limites da vedação. Assim que cheguei ao meio da rua vi logo que estava metida numa alhada.

CARRO

O único espaço livre onde era possível o estacionamento e no qual tinha premeditado arrumar o carro, encontrava-se ocupado por um camião que se abastecia num armazém de grossistas que ali havia. Angustiada verifiquei que não havia qualquer possibilidade de deixar o carro estacionado lado a lado com o camião, pois além de impedir a sua posterior saída após o abastecimento, dificultava a passagem dos peões e das motorizadas. A única manobra possível e a qual se afigurava acertada era efectuar a marcha atrás, porém, isso nem pensar! Só de me imaginar aos ziguezagues fazia-me corar de vergonha! Pensei ir em busca de auxílio, alguém que se prestasse a tirar-me o carro dali para fora. Se bem o pensei assim o fiz! Antevendo uma saída airosa desta enrascada, desliguei a chave de ignição, tranquei as portas do carro e serenamente dirigi-me ao meu local de trabalho. Todavia as coisas não correram como havia preconizado, já que de momento não estava por ali ninguém habilitado para tal tarefa. Histérica e completamente fora de mim soltei um chorrilho de imprecações e amaldiçoei a minha triste sorte! Senti-me só e abandonada! Uma avalanche de infinita tristeza invadiu todo o meu ser! Afinal, todos me haviam virado as costas! Uns porque tiveram medo de morrer, e agora, outros, porque não se encontravam onde deviam estar,  quando tanto precisava deles. Sem saber como dar a volta à situação optei por voltar junto do carro, enquanto me esforçava para me lembrar de alguma solução. Foi quando vi os dois homens do camião, que de braços no ar gesticulavam desesperados, deambulando ora rua acima ora rua abaixo, indagando pelas imediações sobre quem teria sido o irresponsável que ali havia estacionado! Como não tive outra alternativa resolvi pegar o touro pelos cornos. Com o coração nas mãos avancei direito ao carro como um condenado em direcção ao cadafalso. Os homens, assim que me avistaram de chaves na mão, perceberam quem era a dona da carripana e acalmaram ligeiramente. Entrei no carro, pus o motor a trabalhar e olhei para o monte de entulho que transbordara por debaixo e à volta da rede, senti-me sem coragem para tomar essa via, porém, assim que me voltei para trás logo fui tomada de pânico! Tinha a certeza que se iniciasse a manobra de marcha-atrás, não me livraria de fazer uma figura deprimente e da qual dificilmente recuperaria. Antecipadamente via já todos a rirem-se do circo, que com a minha inépcia, ali estava prestes a montar! Não! Decididamente não iria fazer marcha-atrás, desse por onde desse! Olhei de novo para o monte de entulho que teria de lavrar, mas para a frente sempre é para a frente, avancei, portanto, direito ao monte de escombros e toca de abrir caminho por entre pedras, pedaços de cimento seco, tijolos partidos enfim, por cima de tudo, quanto por ali morava! Que se lixasse o fundo do carro, mas rirem-se de mim é que não!

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Entretanto virei-me para trás, para me certificar se já tinha libertado espaço suficiente para as manobras de saída do camião. O que vi fez-me corar até à raiz dos cabelos. Tomados pelo assombro, os homens,  de semblante muito sério olhavam-me boquiabertos. Não me foi difícil imaginar os pensamentos que lhes iriam naquelas cabecinhas e, dei por mim a pensar que, afinal, antes tivessem rido, sempre poderia ter alinhado e rido também.

No fundo, o que mais temia era que me considerassem uma naba ao volante!

Dias mais tarde, devido às obras de conservação de uma estrada, fui obrigada a fazer um desvio que  passava por entre um pequeno povoado. As ruas eram muito estreitas e com bastantes curvas apertadas. Calculem vós a minha aflição, quando subitamente vi surgir à minha frente um autocarro da carreira. E porque mais uma vez não tive outra alternativa, engatei a mudança e vá de fazer marcha atrás, num instante consegui fazer a proeza de atravessar o carro na estrada, de tal maneira que depois nem para a frente nem para trás! Foi o cobrador de bilhetes, que nesse tempo ainda os havia, quem saiu do autocarro e me foi dando indicações de como deveria fazer a manobra. Os passageiros, principalmente todos aqueles que se encontravam sentados nos bancos da frente, tiveram assim direito a ver  um divertido  espectáculo e sem pagar bilhete. Riam-se divertidos e disseram-me adeus enquanto o autocarro seguia marcha, o que me fez sentir ainda pior, porque  suspeitei  que me haviam considerado maluca. Lembro-me, que durante uns instantes, permaneci ali a tentar recuperar de tão grande vexame. Olhei-me no espelho retrovisor e quase desmaiei de susto. Estava vermelhíssima… de vergonha… e do esforço de virar o volante em seco.

A próxima estória é mesmo vergonhosa! Até lá…

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