A primeira vez que me bateram…

Publicado por: Milu  :  Categoria: A primeira vez que...

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«Vista de perto, a vida é uma tragédia. Vista de longe, é uma comédia».

CHARLES CHAPLIN

Esta história que aqui narro é real. Passou-se comigo. Por vezes  quando estou   à conversa com o meu filho, procuro fazer-lhe ver quão felizardo ele foi na escola, principalmente com os professores que lhe couberam em sorte, se comparado comigo. Muito embora reconheça que basta um, apenas um mau professor, para dar cabo do trabalho de  uma boa meia dúzia dos bons, a verdade é que já nada pode ser igualado com os tempos de antigamente.

Tinha sete anos quando entrei para a escola primária. Fui levada pela mão de uma vizinha alguns anos mais velha, que também frequentava o mesmo estabelecimento de ensino! A escola era um pequeno edifício constituído por quatro salas que se encontrava em avançado estado de degradação. No entanto, os meus olhos de criança não a viram assim, a inocência impedia-me de percepcionar tão  humilhante  decrepitude. Anos mais tarde, quando num dia por acaso,  passei defronte da minha primeira escola pude, então,  avaliar com verdadeiros  olhos de ver. Verifiquei com assombro  que,  de tão pequenina, mais parecia uma escola para bonecas. Mas foi lá, naquela minúscula escola que aconteceu um episódio que ficou gravado a ferros na minha memória. A primeira vez que alguém me bateu. Se os meus pais me terão dado algumas palmadas no rabo ou qualquer coisa semelhante, disso não guardo memória, pelo que continuarei a afirmar que foi nesta escola que pela primeira vez tive contacto com a violência.

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Logo nos primeiros dias fiz amizade com uma colega com a qual trocava o meu lanche. A  minha mãe preparava-me para levar para a escola um papo-seco barrado com Planta,  por muito boa que esta manteiga possa ser considerada, a verdade, porém, é que já estava farta daquele sabor. Já deitava Planta pelos olhos. Raramente me era dada a oportunidade de  degustar paladares mais sublimes. Com a minha colega passava-se o mesmo, apenas com uma ligeira diferença,  no lugar da manteiga era marmelada, da qual dizia não gostar. Um dia surgiu-nos a ideia de trocarmos o lanche, uma vez que ela gostava de manteiga e eu de marmelada. E assim fomos fazendo regularmente, ao mesmo tempo que criámos uma certa confiança entre as duas.  A professora, Leopoldina,  era uma senhora idosa que para gáudio meu se reformou nesse mesmo ano, livrando-me da sua nefasta presença. Naquele tempo, os professores tinham o hábito de levar para a escola assuntos particulares para adiantarem serviço. O mais comum era a correspondência. Abriam as cartas  e logo   procediam às respostas da mesmas. Interessava-lhes, portanto, que os alunos estivessem absorvidos com alguma tarefa. Daí  ter-nos mandado fazer um desenho. Cada uma de nós  espalhou os seus  lápis de cor nas carteiras e lá fomos traçando uns incertos rabiscos.

Eu era uma criança irrequieta,  por isso não é de admirar que, ao fim de algum tempo, toda eu estremecesse em intenso formigueiro, como a colega, com a qual trocava o lanche, estava sentada no lugar logo atrás de mim, espontaneamente  voltei-me para conversar com ela, sacudindo assim o meu aborrecimento. Não posso afiançar o que a seguir  aconteceu, talvez ela estivesse mal disposta ou então foi mesmo verdade que, a brincar,  terei feito o gesto de quem lhe queria tirar os lápis de cor. O que sei é que ela chamou a professora dizendo-lhe que eu lhe estava a tirar ou a roubar os lápis.

A professora não gostou  de ser interrompida nos seus afazeres. Levantou-se furibunda e a  bufar pelas ventas dirigiu-se a nós. Para minha infelicidade o meu lugar era na carteira da frente, portanto mais ao jeito, assim que chegou perto de mim, içou a mão  e  fechou-a em punho, recuou o braço para ganhar balanço e arremessou-o com toda a fúria direito ao meu queixo, desferindo-me um soco tal, que o impacto projectou a minha cabeça  que bateu  fortemente no tampo da carteira que se encontrava  atrás, num estrondo que ecoou por toda a sala. Fez-se um silêncio sepulcral. Ninguém  riu. É por demais conhecida a típica crueldade das crianças que usam do riso, ainda que à socapa, quando algum colega é vítima de admoestação. Naquele dia, porém, ninguém riu, ficaram, isso sim, mudos e quedos, como se, não obstante a tenra idade, tivessem tido colectivamente, o mesmo clarão iluminador que lhes agitou as consciências perante a visão de um acto tão pleno de despropósito. Pela parte que me toca, direi que a dor maior que senti não foi no queixo, foi na alma, porque a vergonha e o vexame pareceram-me do tamanho do mundo. A partir desse dia não era mais a mesma menina. Pela primeira vez eu tinha sido vítima de uma agressão.

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