“Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e pensei o quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro.”
Virginia Woolf
Felizmente que já não há fogueiras, e nós mulheres, podemos livremente, prosseguir na luta para a libertação, através da compreensão de como se foi operando ao longo do tempo a submissão da mulher. É conhecendo a história da mulher, que a mulher toma consciência de todas as afrontas que foram, e continuam a ser, cometidas contra si.
Este post foi elaborado com excertos do capítulo IV, sob o título “Feminismo e Discurso do Género na Psicologia Social”, que integra a obra denominada “Um Novo Olhar sobre as Relações Sociais de Género” (“Feminismo e Perspectivas Críticas na Psicologia Social”), classificada como Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, da autoria de Conceição Nogueira.
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“O Objecto mulher nos discursos de legitimação”
“Todas as sociedades parecem reconhecer a existência de sexos diferentes e por isso agrupam as pessoas pelo seu sexo devido a diferentes motivos (Reskin & Padavic, 1994), sendo que cada ser humano quando nasce, na cultura ocidental pertence imediatamente a uma categoria sexual específica” (Denzin, 1995).
“Houve sempre ao longo dos tempos grande quantidade de discursos, teorias, visões acerca do corpo da mulher, principalmente devido à sua capacidade de reprodução. Esta razão terá estado na base de todas as tentativas de compreensão e descrição da «natureza» feminina. No entanto o feminino é desvalorizado, e já em Platão como em Aristóteles a mulher, em relação ao homem, é vista como «um desvio, como uma relação imperfeita»” (Joaquim, 1994, p. 79).
“No pensamento grego, que condicionou a cultura ocidental, o homem é o criador da ordem e da lei, enquanto a mulher está associada ao desejo e à desordem, um ser inferior pela sua natureza. «É sobre estas clivagens simbólicas que se vai fundamentar a própria sociedade» (idem, p. 80), desigual, mas cuja desigualdade está baseada numa presumível diferença de naturezas, atribuindo-se à mulher qualidades negativas que a impossibilitam de participar activamente de forma igual, na sociedade onde vive” (Foucault, 1979).
“A mulher com o estatuto de objecto, produção do discurso masculino, pensado e modelado pelos homens, fez-se sentir a nível da filosofia, da medicina ou da ciência” (Farge & Davis, 1991) in (Nogueira, 2001: 171-172).
(…).
“O discurso filosófico parece concordar com a ideia que a completa igualdade seria o fim da união conjugal e sendo assim só a atribuição de papéis bem definidos resolveria a questão da igualdade dos sexos (Crampe-Casbanet, 1991). No século XVIII, o iluminismo apresenta-se como um discurso da filosofia que aparentemente acaba com as diferenças de raça e sexo, mas de forma algo perversa acaba por justificar a inferioridade da mulher, já que «o discurso iluminista é um discurso do homem, quer dizer do género humano (…) racional: as distinções de raça e de sexo esbateram-se, ainda que tenham conservado algumas especificidades» (idem, p. 369). Mas se o discurso Iluminista se dirige a todos os homens, ele é universal, o que coloca a difícil questão de se saber quem tem direito ao universal. Se no século das Luzes se estava de acordo quanto ao facto das mulheres representarem metade do género humano, o mesmo não se dizia do género masculino, isto é, que constituía metade do género humano” (Nogueira, 2001: 172-173).
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“Destas duas metades diferentes de género humano parte-se para uma dupla maneira de dizer, de escrever e de definir, sendo o sujeito desse discurso o homem e o objecto a mulher com uma interioridade no discurso, mas um estatuto de exterioridade” (Nogueira, 2011: 173).
(…).
“Salvo algumas excepções, como Condorcet, o pensamento do iluminismo mantém a inferioridade das mulheres e justifica o seu papel numa suposta necessidade feminina. Mas, para resolver o problema teórico que provinha da diferença dos sexos, o espírito iluminista resolve o problema atribuindo à mulher uma dualidade de estatuto. Trata-se de dar às mulheres papéis sociais como esposas e mães, funções que por natureza as mulheres querem desempenhar e, por causa delas, as mulheres podem então ser cidadãs, nunca lhes sendo reconhecido um estatuto político.
O discurso médico acaba por confirmar superstições mesmo perante factos científicos (Berriot-Salvadores, 1991), e por isso se parte da descrição do corpo feminino como uma cópia defeituosa do corpo do homem, para a crença de uma natureza frágil sujeita às desordens provenientes dos seus órgãos reprodutivos. Desde os textos medievais, passando pelo renascimento, até ao discurso na época da revolução, o discurso médico é sempre utilizado para permitir justificar a colocação da mulher na esfera familiar, conferindo-lhe um estatuto particular na sociedade. O discurso científico legitima o lugar dado à mulher: a maternidade define-a, é este o discurso científico do século das Luzes. «Em nome de um determinismo natural, o pensamento médico confina então a feminilidade ideal na esfera estreita que a ordem social lhe destina: a mulher, sã e feliz, é a mãe de família, guardiã das virtudes e dos valores eternos»” (idem, p. 444) in (Nogueira, 2001: 174-175).
(…).
“A legitimação proveniente deste discurso científico permitiu que persistisse durante toda a modernidade «um discurso sobre os sexos que, nas suas vertentes dualistas, biologizante da condição das mulheres, e essencialista, pouco difere do discurso religioso da pré-modernidade»“ (Nogueira, 2001: 175).
Bibliografia
NOGUEIRA, Conceição. (2001). Um Novo Olhar Sobre as Relações Sociais de Género. Fundação Calouste Gulbenkian.