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Friedrich Nietzsche foi até certa altura um admirador de Schopenhauer que defendia que o homem prudente não procura o prazer, mas evitar a dor. Deste modo, a fim de evitar os problemas e a ansiedade, que é normal sentirmos quando buscamos o contentamento, o melhor a fazer é reconhecer a impossibilidade de o alcançar:
“Ter como objetivo não aquilo que é aprazível e agradável, mas evitar, na medida do possível, os seus inúmeros males… Os mais felizes são aqueles que atravessam a vida sem uma dor muito grande quer física, quer mental.”
Schopenhauer
Contudo, Nietzsche veio mais tarde a mudar de opinião, quando se apercebeu de que as dificuldades de todo o género seriam bem recebidas por aqueles que buscam a realização.
Ao contrário de Schopenhauer, para quem a realização consistia numa ilusão, defendendo que os sábios deviam evitar a dor em vez de procurar o prazer, e viver sossegados «num pequeno quarto com lareira», Nietzsche considerava agora, que a realização deveria ser conseguida não evitando a dor, mas reconhecendo o seu papel como um passo natural e inevitável no caminho para a conquista de coisas boas. Por outras palavras, a realização seria o prémio para quem muito se esforçou, para quem fez por o merecer, para quem não se poupou.
Para Nietzsche, os mais satisfatórios dos projetos humanos pareciam inseparáveis de um considerável grau de tormento, estando as fontes das nossas maiores alegrias estranhamente próximas ou ligadas às fontes das nossas maiores tristezas. Ninguém é capaz de produzir uma obra de arte notável sem experiência… nem de alcançar uma posição social de um dia para o outro… nem de ser um amante excecional logo à primeira tentativa. Entre o fracasso inicial e o êxito subsequente, entre o que desejamos ser e o que de momento somos, deve haver dor, ansiedade, inveja e humilhação. Nietzsche pretendeu corrigir a ideia de que a realização virá por si, ou não chegará a vir, uma vez que esta ideia poderá levar-nos a desistir prematuramente dos desafios, que poderiam ser cumpridos se nos tivéssemos preparado para a selvajaria muito legitimamente exigida por quase tudo o que tem valor.
Exemplo:
Os Ensaios de Montaigne não brotaram da mente de Montaigne na sua forma acabada! Devíamos olhar para os registos das colossais lutas autoriais por detrás da obra prima final! Para a imensidão de notas e revisões que os Ensaios exigiram! Já com Stendhal foram precisas décadas para que as obras primas emergissem. Mas, se a maioria das obras literárias é menos brilhante do que O Vermelho e o Negro de Stendhal, não é por faltar génio aos seus autores, mas antes por estes não possuírem uma noção correta da quantidade de dor necessária.
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Eis, segundo Nietzsche, como escrever um romance:
“A receita para se ser um bom romancista… é fácil de dar, mas levá-la a cabo pressupõe qualidades que estamos habituados a ignorar quando dizemos: «Não tenho talento suficiente». Basta escrever mais ou menos uma centena de rascunhos de romances, que não precisam de ir além das duas páginas, mas têm de ser tão perfeitos que não haja neles nem uma palavra a mais; devemos tomar nota de episódios do dia a dia até sabermos dar-lhe uma forma mais rica e eficaz; devemos reunir e descrever incansavelmente tipos humanos e personagens; acima de tudo devemos relacionar umas coisas com as outras e ouvir as histórias dos outros, de olhos e ouvidos atentos ao efeito que produzem nos presentes, e devemos viajar como um pintor de paisagens ou figurinista… devemos, finalmente, refletir sobre os motivos por detrás das ações humanas, não desdenhar qualquer indício que nos informe acerca deles e colecionar esse tipo de coisas noite e dia. Devemos fazer este exercício multifacetado durante uns dez anos; o que depois for criado na oficina… será suficientemente bom para sair para o mundo.”
Nietzsche
Assim, a filosofia de Nietzsche resumia-se a uma curiosa mistura de fé extrema no potencial humano (a realização está ao alcance de todos nós, tal como escrever um bom romance) e dureza extrema (porque talvez precisemos de uma década de infelicidade para o primeiro livro).
Nietzsche era um homem das montanhas, é difícil ler algumas páginas sem encontrar alguma referência alpina:
“Ecce Homo: Aquele que souber respirar a atmosfera das minhas obras perceberá que se trata de uma atmosfera de altitude, uma atmosfera agreste. É preciso ser-se feito para ela, de outra maneira o mais certo é apanhar-se uma constipação. O gelo está próximo, a solidão é terrível – mas como tudo parece tão pacífico àquela luz! Como se respira bem! Como nos sentimos abaixo de nós! A filosofia, como a partir daí a entendi e experimentei, é um viver voluntário entre o gelo e as montanhas. “
“Para a Genealogia da Moral: Seria necessário um espírito diferente daquele que é provável encontrarmos nesta época [para compreender a minha filosofia]… teríamos de estar aclimatados ao ar mais rarefeito das altitudes, às ruas no inverno, ao gelo, e às montanhas em todos os sentidos.”
“Humano, demasiado Humano: Às montanhas de verdade nunca se sobe em vão: ou se consegue chegar mais alto hoje, ou se exercita a força a fim de chegar mais alto amanhã.”
“Considerações Extemporâneas: Subir à puramente gélida atmosfera alpina mais alto do que qualquer filósofo antes de nós, chegar ao ponto em que a neblina e a obscuridade cessam e a constituição fundamental das coisas fala com uma voz dura e ríspida mas inevitavelmente compreensível!”
Nietzsche
Mas para atingirmos a moral da filosofia montanhesa de Nietzsche não é fácil trepar três mil quatrocentos e cinquenta e um metros acima do mar. É preciso no mínimo cinco horas, seguir por caminhos estreitos, negociar uma forma de contornar penedos e atravessar pinhais cerrados, ficar sem fôlego por causa do ar rarefeito, sobrepor peças de roupa para combater o vento e abrir caminho entre neves eternas.
Dizia que “só os pensamentos que nos invadem enquanto caminhamos têm algum valor“, estabeleceu uma analogia com o facto de os elementos positivos da vida humana dependerem dos negativos, a felicidade das dificuldades.
Todas as vidas são difíceis; o que faz com que algumas delas sejam também felizes é a maneira como encaram a dor:
A ansiedade pode precipitar o pânico, ou um exame rigoroso do que está errado.
O sentimento de injustiça tanto pode levar ao crime como a uma obra inovadora de teoria económica.
A inveja pode levar quer ao rancor, quer à decisão de competir com o rival e a consequente produção de uma obra prima.
Como explicara Montaigne no capítulo final dos Ensaios:
«a arte de viver está em saber tornar úteis as adversidades».
Bibliografia
BOTTON, Alain. (2001). O Consolo da Filosofia. Círculo de Leitores. Camarate.