Umas férias esfomeadas

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Umas férias esfomeadas

ferias

“A espécie de felicidade de que preciso não é fazer o que quero, mas não fazer o que não quero.”

JEAN-JACQUES ROUSSEAU

E porque me apetece continuar neste registo, isto é, a contar situações que vivi durante as férias, na minha já ida juventude, eis que vos trago a narrativa de quando nos deu na mona, a mim e à minha prima, de irmos  passar umas férias de Verão no Algarve. Se bem o pensamos, melhor o fizemos, e as duas partimos rumo ao Algarve, dispostas a assentar arraiais numa qualquer praia ao sabor do acaso. Quis o destino que ficássemos em Armação de Pêra. Mais uma vez alugamos um quarto numa residência particular, desta feita  no apartamento de um casal de meia-idade com uma filha, que durante cerca de um mês foram como nossa família. No regresso, no final das férias, tivemos alguma pena de os deixar. Insuspeitamente, tínhamo-nos afeiçoado a eles! Eram uma família muito característica, especialmente o marido que nos fazia rir. Trabalhava de noite e dormia durante o dia, apesar de viver na praia raramente apanhava sol, também fumava desalmadamente, circunstâncias que terão contribuído para que a sua pele apresentasse uma tonalidade cinzenta. Quando passávamos defronte do seu quarto, cuja porta se encontrava normalmente aberta, chegámos a vê-lo de tronco nu e soerguido  na cama,  bastante magro e de braços desmesuradamente compridos, o que nos fazia lembrar um aranhiço peçonhento. O tanto que nos ríamos! Mas, no fundo, simpatizávamos imenso com ele!

Aranhiço

Já estão  mesmo a ver como foi a nossa vida durante essas férias! Desta vez não apanhei escaldões, porque as horas de  maior insolação eram-me insuportáveis. Era um calor muito seco e  ao qual não estava habituada. Como não me cheirava ao mar, até me esquecia que estava numa praia, é tão diferente das minhas praias aqui, onde se sente  o ar fresco impregnado de um levíssimo cheiro a marisco! Que bom! E que bem me faz!

As noites eram passadas nas discotecas. Conheci várias, mas gostava especialmente da Kiss em Albufeira! Foram grandes noites! Grandes vidas!

Mas o título deste post alude a umas férias esfomeadas! O que era isso, então? Calma! Não era nada do outro mundo! Tratando-se de duas mulheres é bastante  previsível. Foram as nossas dietas malucas! Uma das piores coisas que pode acontecer a uma mulher é engordar no tempo de praia, logo, era expressamente proibido acartar para casa com o que quer que fosse de comida. Fazíamos apenas uma refeição por dia, o jantar. Depois da praia tomávamos um duche, preparávamo-nos para sair e vá de ir para um restaurante, habitualmente numa esplanada, para ir entretendo os olhos e aconchegando a alma. Outras vezes, comprávamos pizzas que levávamos para casa. Havia um estabelecimento que as servia  com imenso queijo, era um caso sério para separar as fatias, que permaneciam agarradas umas nas outras por extensos fios de queijo que mais pareciam cordas! Para quem tinha passado o dia sem comer, atestar-lhe assim, de uma só vez, com este arsenal de calorias, o organismo até entrava em choque, mas vá lá, era próprio da idade. Não éramos nenhumas anorécticas! Nós comíamos! Só uma vez por dia, é certo, mas à “fartazana”!

Ao sair da discoteca e  após  o desgaste de uma noite inteira a dançar, ficávamos esganadas de  fome, que habitualmente aplacávamos com um cachorro ou uma bifana comprada numa qualquer roulotte  que encontrássemos. Algumas vezes houve, que não tivemos possibilidade de comprar fosse o que fosse para comer,   o estômago refilava que se fartava, jurávamos, então, que nos havíamos de  emendar e que no  dia seguinte compraríamos  uma latita de atum, quanto mais não fosse, para nos acudir no desespero. Mas, no dia seguinte, já  preparadas para ir encher a mula no restaurante, não queríamos saber das agruras da madrugada anterior, depois de jantadas ainda muito menos queríamos saber, pelo que a compra do atum era adiada. Bem, nem vos digo: Uma desgraçada noite houve, em que a fome era de tal forma impetuosa e canina, que estivemos num vai-não-vai, em comer a carne picada que estava no frigorífico e que se destinava à cadelinha caniche, mascote da família. Por  um fio não pegámos numa frigideira!   No maldito frigorífico não havia mais nada que se trincasse, visto que a família fazia as suas refeições fora de casa. Naquelas horas de aflição, de fome negra, quantas vezes, com uma pontada de inveja, olhámos para a cadela, que nos fitava com uns olhos redondos e complacentes!   Ao menos ela, tinha comida, e  tanto lhe fazia engordar como não!

Quase no final do mês fiquei impaciente, estava farta de praia e do Algarve, convenci a minha prima a desaparecer dali o mais rápido possível, ou ainda ficava maluca! A  ela não lhe apetecia vir embora, mas perante a minha insistência fez-me a vontade. Tão rápido quanto nos foi possível rumámos a Lisboa e aí aconteceu mais uma das nossas histórias, bem reveladora de um facto – que  nós duas nos tínhamos como o centro do mundo! Aliás, assim sentem os jovens!

Praia 3

A Reconciliação

Publicado por: Milu  :  Categoria: A Reconciliação, FLAGRANTES DA VIDA

Gelados

“A crença na bondade alheia é uma prova não desprezível da própria bondade.”

MICHEL DE  MONTAIGNE

Continuando na saga do vendedor de gelados…

No dia seguinte pela hora do almoço, acabadinhas de acordar, visto a noite ter sido de folia, numa das discotecas da zona, não me lembro se na Sunset ou na Princess, ambas em Alcobaça e das quais, eu e a minha prima, fomos frequentadoras habituais, saímos do nosso quarto para comermos alguma coisa e de seguida rumarmos para a praia. Atravessámos a estrada e, logo ali em frente à residência onde morávamos, existia um  pequeno estabelecimento onde entrámos para tomarmos o pequeno-almoço. Sim! Pequeno-almoço! Para nós, só agora começava o dia! Sentámo-nos à beira de uma pequena mesa, encomendámos dois pregos no pão e dois refrigerantes.  Depois de devidamente acomodadas olhámos em redor e quem havíamos de avistar? O nosso amigo vendedor de gelados! A contas com uma imponente travessa de belo bacalhau acompanhado de grão, batatas e ovo cozido. Assim que nos pôs a vista em cima afivelou imediatamente uma cara de poucos amigos, e nós duas , também não ficamos nada bem-dispostas. Tantos cafés e restaurantes na Nazaré e tínhamos logo de ter entrado naquele onde se encontrava aquela linda prenda! Era preciso ter galo!

Entretanto, foram-nos servidos os dois pregos que comemos em silêncio e ansiosas por sairmos daquele lugar com tão funesta companhia, porém, nos olhares discretos que enviámos pelo canto do olho em direcção ao nosso inimigo, reparámos que os seus olhos imensamente azuis pareciam adocicados e brilhavam sorridentes enquanto nos miravam! O que se passaria? Mal acabámos de comer saímos rapidamente do estabelecimento, aliviadas por nos livrarmos daquela incómoda figura e seguimos em linha recta em direcção à beira-mar, preparadas para mais uma tarde de sol e de descanso.

Algum tempo depois, avistámos o vendedor de gelados a caminhar pela areia, que ao ver-nos se aproximou de nós.  De um modo extremamente afável, que  muito nos intrigou, perguntou-nos se queríamos comprar gelados. Prontamente  respondemos-lhe que não. Ainda mais simpático, tornou a perguntar se queríamos um gelado e que nesse caso fazia-nos o preço normal, porque sabia que nós não tínhamos dinheiro, mas que, lá por isso, não deixávamos de ter direito a ter a nossas férias!  Surpreendidas e confusas entreolhámos uma para a outra e foi quando no nosso espírito se fez luz! O vendedor de gelados, ao ver-nos à hora do almoço a comer os pregos e não sabendo que tínhamos acabado de sair da cama, conjecturou que éramos duas tesas, que estávamos de férias, sim, mas a contar os tostões e que por isso não tivemos uma refeição condigna, à semelhança da dele. Estava, então, condoído de nós! As pobres moças, pensou,  não tinham querido comprar os gelados mais caros, não por incompreensão ou má vontade, mas antes, porque o dinheiro não abundava! E não estava assim tão longe da verdade!

praia

Duas palecas na Nazaré

Publicado por: Milu  :  Categoria: Duas palecas na Nazaré, FLAGRANTES DA VIDA

Nazaré

“Os olhos do espírito só começam a ser penetrantes quando os do corpo principiam a enfraquecer.”

PLATÃO

Agora que finalmente  entrámos na estação do Estio, tempos de praia e de férias, ocorreu-me contar-vos uma situação engraçada que comigo aconteceu, quando contava vinte e poucos anos. Eu e uma minha prima, com a qual durante uma fase da minha vida tive um historial pleno de aventuras, encontrávamo-nos de férias na praia da Nazaré. Tínhamos alugado um quarto numa residência particular e estávamos ambas imbuídas de uma enorme vontade de fazermos uma espécie de desintoxicação de todos os agentes nocivos, com os quais comungamos diariamente. Durante quinze dias pretendíamos abolir da nossa alimentação alimentos como a carne, gorduras, doces, álcool, fumar o menos possível, já que deixar de fumar não nos afigurava um objectivo fácil de atingir e, sobretudo, dormir bem, logo, nada de deitar tarde. Havia da nossa parte o firme propósito de deitar cedo e cedo erguer, não que pretendêssemos crescer, tal como nos promete a sabedoria popular, que para isso já era um pouco tarde, mas para com tantos cuidados, uma boa alimentação e muito descanso, almejarmos um aspecto fresco e radioso de fazer inveja ao mundo!

Pois bem! Durante aqueles quinze dias fizemos tudo menos as nossas nobres intenções! Foi uma autêntica desgraça! Desde deitar cedo, pela madrugada, a levantarmo-nos da cama tarde, já a meio do dia, a comer pizzas, cachorros, frangos assados e batatas fritas, muita carne, afinal! No fundo, tudo aquilo que sabe bem, mas que nos envenena por dentro! Assim que saíamos da cama, íamos a qualquer lado comer alguma coisa, pouco, que vontade não havia muita, ainda por ali andavam os últimos resquícios dos gins tónicos da noite anterior e seguíamos para a praia, logo nas horas de maior insolação! Por causa disso e devido às minhas ânsias em ficar num ápice toda morenaça, queimei as trombas todas, até fiquei com inchaços numa zona do rosto abaixo dos olhos! Acabei as férias com um bronzeado todo malhado e por isso feia como os trovões! Mas divertimo-nos a valer!

gelado

Um dia estávamos nós duas repimpadas na praia a assoalhar, quando ouvimos o pregão do vendedor de gelados, decidimos chamar por ele já que nos apeteceu um gelado, engordam, mas por outro lado são bastante recomendados pelos especialistas em nutrição, porque são muito nutritivos! Ao mesmo tempo que peguei no gelado que o vendedor me estendia preparei-me para lhe pagar, perguntei quanto custava. Não gostei do que ouvi. Não me recordo dos valores, sei apenas que a diferença de preço entre comprar um gelado num qualquer estabelecimento ou comprar ao vendedor era considerável, pelo que chamei a atenção para esse facto e num gesto meio indignado, devolvi-lhe o gelado dizendo-lhe que àquele preço nem pensar, no que fui imitada pela minha prima! O que se seguiu só mesmo visto, porque assim, contado, nunca expressará o insólito e caricato do momento. O vendedor, que até ali se encontrava de joelhos na areia, levantou-se como se tivesse uma mola no corpo, desatou a proferir impropérios chamando-nos palecas, que se quiséssemos gelados mais baratos que levantássemos o cu, e os fôssemos comprar ao café mais próximo, que se encontrava já ali ao atravessar da estrada. Continuou numa verborreia inacreditável dizendo que andava num constante calcorrear da areia, debaixo da torreira do sol, para nos vender gelados a nós, que passávamos o dia deitados, que mesmo assim tínhamos tido a pouca vergonha de achar um gelado caro, mas  que se fosse preciso oitenta ou cem escudos para comparar um batom, para pintarmos os lábios e ficarmos a parecer os palhaços do circo Mariano, já não achávamos caro! Tudo isto, dito alto, em bom som e aos quatros ventos! À nossa volta todos os presentes nos olhavam com um olhar indefinido. Seria de indignação? De censura? De incredulidade? E de que lado estariam? Fosse como fosse, a verdade, é que apesar de jovens e desprendidas de preconceitos não conseguimos evitar de sentir algum desconforto. O nosso dia de praia ficou, portanto, estragado!

A história não ficou por aqui, no dia seguinte houve da parte do vendedor um volte-face radical!

CONTINUA

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