Padrinhos do pecado e do interdito

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“São milénios de tradição de submissão e desigualdade que pesam sobre nós”.

Teresa Pizarro Beleza
(Professora catedrática de Direito Penal da Universidade Nova de Lisboa)

 

Sempre que leio notícias como esta, que se refere a um acórdão que desvaloriza a violação de uma mulher, sinto-me ainda mais na obrigação de continuar a publicar posts que contribuam para informar e difundir a História das Mulheres.

O que me move, nesta cruzada de procurar a verdade, é a imperiosa  necessidade de aprofundar os conhecimentos para melhor entender sobre como foi possível, ao longo dos séculos, manter a mulher num estado de submissão e de desigualdade. Algo que foi e ainda continua a ser aceite pela própria como sendo um estado natural, emanado pelas leis da natureza, ou divinas. Pois bem, tenho muita pena de ferir as susceptibilidades de algumas pessoas, mas a verdade é que a Igreja tem a sua quota parte de culpa neste processo. E não é pouca. É preciso que se diga, e repita, que houve um tempo em que só os homens eram letrados e grande parte destes eram sacerdotes, e com isso ajudavam a difundir uma ordem que lhes era favorável. Quanto às populações, estas eram na sua vasta maioria analfabetas, e às  mulheres, com muito raras excepções, era vedado o ensino, transformando-as assim em terreno fértil para as crendices e os abusos de toda a espécie.

É tão fácil dominar num mundo de ignorantes…

Este excerto que se segue, foi retirado do livro “As Damas do Séc. XII. A Eva e os Padres” da autoria de George Duby, historiador medievalista, especialista da época designada por Idade Média. Vamos ler!

(…).

“Convidar as mulheres, pelos menos as mais nobres, a confiar-se a um homem da Igreja era tratá-las como pessoas, capazes de se corrigirem. 

Mas era também capturá-las.

A Igreja apanhava-as nas suas malhas.

No limiar do segundo milénio, na época em que Burchardo de Worms* trabalhou, deu-se na Europa um acontecimento de considerável importância. Que, ao modificar as relações entre o masculino e o feminino, marcou profundamente toda a cultura europeia e as suas repercussões ainda hoje não se dissiparam por completo. Instituição de longe a mais poderosa de todas, tanto mais forte quanto depurava o seu pessoal e se desligava de qualquer outro controlo, a Igreja decidiu colocar sob o seu rigoroso domínio a sexualidade. A Igreja estava então dominada pelo espírito monástico.

A maior parte dos seus dirigentes, e dos mais empreendedores, eram antigos monges. 

Os monges julgavam-se anjos.

Pretendiam, como estes, não ter sexo e viam honra na sua virgindade, professando horror pela mácula sexual. A Igreja, por conseguinte, dividiu os homens em dois grupos. Aos servidores de Deus, proibiu o uso do seu sexo; permitiu-o aos outros, nas condições draconianas que decretou. 

Restavam as mulheres, o perigo, uma vez que tudo girava em redor delas.

A Igreja decidiu subjugá-las.

Para tal, definiu claramente os pecados de  que as mulheres, pela sua constituição, se tornam culpadas. No momento em que Burchardo compunha a lista destes pecados específicos, a autoridade eclesiástica acentuava o seu esforço para reger a instituição matrimonial. Impor uma moral do casamento,

governar a consciências das mulheres: um mesmo projecto, um mesmo combate.

Foi longo.

Acabou por transferir para os padres o poder dos pais de entregar as mãos das filhas a um genro e por interpor um confessor entre o marido e a sua esposa” (Duby, 1996:39-40).

“Os padres tinham que ajudar os pecadores a purgar-se inteiramente, portanto, submetê-los ao questionário, forçá-los à confissão. Assim que o penitente começava a reconhecer os seus pecados, seria bom atiçar nele a vergonha, instá-lo a ir mais longe, a examinar lucidamente o mais profundo da sua alma” (Duby, 1996:21).

“O «Decretum» apresenta-se como ferramenta indispensável de purificação geral. Dos vinte livros que o compõem, os cinco primeiros tratam do clero  e dos sacramentos, que ele distribui, isto é, dos agentes deste saneamento necessário. Vem a seguir um catálogo exaustivo dos pecados que há para extirpar punindo-os conforme a sua gravidade” (Duby, 1996:20).

“Burchardo de Worms insta o padre a interrogar directamente as mulheres. Depois de ter enunciado cento e quarenta e oito perguntas, o «Medicus» avisa:

«Se as perguntas supracitadas são comuns às mulheres e aos homens, as seguintes destinam-se especialmente às mulheres»” (Duby, 1996:23).

 

Transcrevo a seguir algumas perguntas que estava instituído fazer às mulheres durante a confissão, segundo as orientações fornecidas pelo penitenciário Decretum, obra do bispo Burchardo de Worms, um dos “fabricantes” e perpetuadores do pecado e dos interditos.

 

  • “«Fizeste o que certas mulheres têm o costume de fazer, fabricaste uma certa máquina do tamanho que te convém, usaste-a no lugar do teu sexo ou de o de uma companheira e fornicaste com outras ruins mulheres ou outras contigo, com esse instrumento ou com outro?»;
  • «Fizeste como essas mulheres que «para extinguirem o desejo que as atormenta se juntam como se pudessem unir-se?»;
  • «Fornicaste com o teu menino, isto é, pousaste-o sobre o teu sexo imitando assim a fornicação?»;
  • «Ofereceste-te a um animal, provocaste-o para o coito com algum artifício?»;
  • «Provaste a semente do teu homem para que ele arda mais de amor por ti?»;
  • «Misturaste, para o mesmo fim, no que ele bebe, no que ele come, diabólicos e repugnantes afrodisíacos, peixinhos que puseste a marinar no teu interior, pão de massa batida sobre as tuas nádegas nuas, ou então um pouco de sangue dos teus mênstruos, ou ainda uma pitada de cinzas de um testículo torrado?»;
  • «Exerceste o proxenetismo, de ti ou de outras? Quero eu dizer, vendeste, como as putas, o teu corpo a amantes para que dele gozassem? Ou, o que é mais maldoso e culpado, o corpo de outra, quero dizer, a tua filha ou a tua neta, outra cristã? Alugaste-a? Alcovitaste?»;
  • «Fizeste o que certas mulheres têm o costume de fazer quando  fornicaram e querem matar o que trazem? Actuam para expulsar o feto da matrix, seja com malefícios, seja com ervas? Assim matam e expulsam o feto ou, se ainda não conceberam, fazem o que for preciso para não conceber»;
  • «Foi por pobreza, por dificuldade em alimentar a criança, ou por fornicação e para esconder o pecado?»” (Duby, 1996:24-26).

Por outro lado, e é a principal razão, o homem é a cabeça da mulher. É responsável pelos actos e pensamentos daquela que desposou. O que a vê fazer abertamente, o que a ouve dizer abertamente e que desagrada a Deus, é seu dever proibir-lho. E se outras mulheres da sua casa, as suas filhas, suas irmãs e até serventes da cozinha, repetem em coro os refrãos que a Igreja reprova, terá que, de cacete em riste, as calar. (…) O homem é o seu «dono e senhor». Elas estão à sua mercê e, ao longo de todo o Decreto, muitas referências aos textos conciliares reforçam este postulado. Cito duas. No livro XI, Burchardo transcreve os termos do juramento que o marido e a sua cônjuge eram chamados a prestar quando o bispo os reconciliasse. 

O homem diz simplesmente:

«Tê-la-ei doravante como um marido segundo o direito deve ter a sua mulher, acarinhando-a na necessária disciplina; não me separarei dela e não tomarei outra enquanto ela viva».

A mulher fala durante mais tempo porque se compromete mais.

«Doravante tê-lo-ei e enlaçá-lo–ei e ser-lhe-ei submissa, obediente, no serviço, no amor e no temor, como segundo o direito deve a esposa ser sujeita ao marido. Não me separarei mais dele e, sendo ele vivo, não me ligarei a outro homem por casamento ou adultério»” (Duby, 1996:33-34).

 

Conclusão

 

“Do lado feminino, a servidão, a tremura, a vergonha; deste lado, e só deste lado, o adultério e as terríveis sanções que o castigavam” (Duby, 1996:34).

 

* Burchardo de Worms – Bispo de Worms, antes monge de Lobbes, elaborou o Decretum, “que mostra onde está o direito reunindo, classificando os «cânones», as decisões tomadas ao longo da história nos concílios, nas assembleias de bispos, e as prescrições contidas nesses livros chamados «penitenciários», porque indicavam, para cada pecado, a pena que haveria de resgatá-lo” (Duby, 1996:18-19).

Bibliografia

DUBY, Georges. (1996). As Damas do Séc. XII. 3 Eva e os Padres. Teorema. Lisboa.

 

A raiz do mal!

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“Não se pode, por isso, infligir a uma mulher adúltera o cilício, nem muitas vigílias, nem o jejum porque o homem poderia suspeitar de adultério se a vir fazer semelhante penitência. E, por outro lado, o corpo da mulher está de tal modo em poder do marido que não  se pode enfraquecê-lo sem o consentimento deste. Pelo contrário, ela deve alimentar e cuidar do seu corpo para que este esteja apto a ser utilizado pelo homem […]”. 

 

Tomás de Chobham in Pilosu (1995:  102)

A respeito do post de hoje, pouco tenho a acrescentar. É ler e reflectir. Apetece-me dizer que aqui estão alguns dos pais do pecado e dos interditos e, sobretudo dos carrascos das mulheres. Ajuda a compreender como foi possível durante séculos manter a mulher num estado de submissão, de inferioridade…

Em breve farei um outro post com algumas perguntas que era suposto fazer às mulheres durante a confissão… que coisa mais miserável… é certo que vivemos um outro tempo, não posso alhear-me desse facto. Não é correcto criticar factos passados com o olhar actual. As gerações futuras também se irão admirar com o nosso “modus vivendi”.  Criticar-nos por deixarmos que certas coisas tivessem acontecido, aliás, que estão ainda a acontecer. Por outro lado, também é certo que a Igreja, se pudesse, continuaria a agir como se estivéssemos na Idade Média. É que de vez em quando surpreendemos-lhe uma fraqueza, um tique do passado.

Mas vamos a factos, eis George Duby, historiador e especialista na Idade Média:

“Estêvão de Fougères foi capelão de Henrique Plantageneta, um dos padres que procediam às liturgias na casa real. Tão bem serviu o seu poderoso senhor que se tornou, em 1168, bispo de Rennes. (…). Para guiar os homens no sentido do bem, e muito especialmente os homens da Igreja a quem era imposta a castidade e que era necessário encorajar a luta contra os seus apetites, escreveu em latim vidas de santos, em particular a de Guilherme Firmat, exemplo da renúncia às alegrias do corpo. (…). Para Estêvão, a mulher é portadora do mal. É o que repete vigorosamente no «Livre des manières», redigido entre 1174 e 1178″ (Duby, 1996: 11-12).

“Este longo poema – trezentas e trinta e seis estrofes, mil trezentos e quarenta e quatro versos – é, sob uma forma aprazível, um sermão, ou melhor, uma colecção de seis sermões, cada um deles dedicado a uma categoria social, sublinhando os seus defeitos específicos e propondo-lhe um modelo de conduta. (…).

(…) o autor falou dos dominantes, os  reis, os clérigos, os cavaleiros. Passa a seguir aos dominados, os camponeses, os burgueses e por fim as mulheres.  Pela primeira vez no que hoje resta da literatura em língua profana, as mulheres são mostradas como constituintes de uma «ordo» dotada da sua moral própria e sujeita às suas próprias fraquezas. Estas são aqui denunciadas com aspereza e brio” (Duby, 1996: 12-13).

“Estêvão nada inventou, limitou-se a multiplicar os termos brejeiros que dão força ao seu discurso virulento. Com efeito, espraiou-se numa ampla, numa muito antiga corrente de ditos misóginos. (…).

(…) foi beber directamente a duas obras que tinha à mão no armário de livros da residência episcopal. Em primeiro lugar, ao «Livre des dix chapitres», escrito meio século antes por um dos  seus predecessores na sé de Rennes, Marbodo. Este ao tratar «Da Prostituta», assentara em oitenta versos forjados vigorosamente um contorno assustador da mulher (Duby, 1996: 17-18).

Um bispo, Burchardo de Worms, elaborou a obra intitulada «Decretum» que

“consiste em um tratado austero, um manual prático de administração, uma «colectânea canónica», como dizem os eruditos” . Com efeito, mostra onde está o direito reunindo, classificando os «cânones», as decisões tomadas ao longo da história nos concílios, nas assembleias de bispos, e as prescrições contidas nesses livros chamados «penitenciários», porque indicavam, para cada pecado, a pena que haveria de resgatá-lo. Há décadas que se compunham inventários desses. Ajudavam os chefes da Igreja a desempenhar uma das suas principais funções: julgar, definir, baseando-se na autoridade dos seus antecessores,  as infracções a fim de as reprimir e, assim, assentar um pouco mais solidamente as regras de uma moral. (…).

Burchardo acumulou  as fichas, ordenou-as convenientemente, elaborou o seu «Decreto» para seu uso pessoal e para o dos seus amigos. Tinha sido monge em Lobbes. Um dos seus antigos mestres, que se tornara abade de Gembloux, bem como o bispo de Espira, deram-lhe uma mãozinha. Quando pensamos nos instrumentos muito fracos que então dispunham os letrados, quanto mais não fosse para fixar as palavras por escrito, a amplitude da obra realizada espanta. O seu rigor, a sua clareza deslumbram.

Impôs-se.

Transcreveram-na por toda a parte nas dioceses do Império e da metade norte da França. Nesta parte da cristandade, todos os bispos se serviram dela durante o século XI e até ao fim do século XII, para buscar o pecado e dosear equitativamente os castigos redentores. (…). Dos vinte livros  que o compõem, os cinco primeiros tratam do clero e dos sacramentos (…). Vem a seguir um catálogo exaustivo dos pecados que há para extirpar punindo-os conforme a sua gravidade” (Duby, 1996: 18-20).

“Com efeito, no século XII as modalidades de administração do sacramento da penitência iam sendo lentamente elaboradas. Os padres tinham que ajudar os pecadores a purgar-se inteiramente, portanto, submetê-los ao questionário, forçá-los à confissão. Assim que o penitente começava a reconhecer os seus pecados, seria bom atiçar nele a vergonha” (Duby, 1996: 21).

“Também Burchardo dispunha de um modelo. Cem anos antes, na mesma região, Reginon, antes abade de Prüm, então abade de Saint-Martin de Trier, tinha, a pedido do bispo de Ratbodo, que exigia ser guiado nas suas visitas pastorais através da diocese e nas sessões do tribunal episcopal, escrito dois livros, «Das causas gerais e Da disciplina eclesiástica». No segundo figura um questionário, um interrogatório sobre o pecado. Burchardo achou-o de tal modo precioso que o transcreveu integralmente no início do Decretum, na parte consagrada aos poderes do bispo. Aqui, porém, as perguntas são formuladas de um modo diferente. Não pelo padre ao pecador arrependido, mas pelo bispo a sete homens escolhidos em cada paróquia, sete jurados «maduros, de bons costumes e verídicos». Ficam de pé diante do prelado. Este admoesta-os: «Não ides prestar juramento diante de um homem mas diante  de Deus, vosso criador […]. Cuidai de nada esconder, de não serdes condenados pelo pecado dos outros.»”

“O pecado dos outros, na verdade, não o seu.”

“Não  se pretende que vasculhem a sua consciência e confessem as fraquezas próprias. Devem revelar tudo o que sabem, o que viram, ouviram dos pecados cometidos em seu redor, na comunidade popular. O bispo passa a interrogá-los: «Há nesta paróquia um homicida? Um parricida? […] Não há quem tenha ousado cantar junto da Igreja canções dessas que fazem rir?» Sucedem-se assim oitenta e nove perguntas que vão, também elas, dos crimes mais patentes, os crimes de sangue que maculam toda a população, aos delitos sexuais muito íntimos e aos mínimos gestos de desrespeito para com o sagrado. Trata-se de um processo «inquisito» como os que o poder público instaurava periodicamente para restabelecer, para manter a paz.

É um documento que revela os primeiros avanços de um movimento que teve grandes consequências para a história da nossa cultura. Vemos no início do século X a ala activa da Igreja aperfeiçoar os seus processos de controlo e de dominação.

Vemo-la infiltrar-se, insinuar-se no seio do povo fiel por intermédio de emissários ajuramentados, encarregados, sem levar em conta  «nem amor, nem temor, reconhecimento ou afeição familiar», de detectarem, com olhos abertos, ouvidos à escuta, os menores indícios do que ela define como pecado. Vemo-la apertar assim com uma boa volta de parafuso a sua presa sobre a conduta dos leigos. 

É um primeiro passo.

Um século mais tarde, no tempo de Burchardo, a ferramenta aperfeiçoa-se consideravelmente. O padre passa a manter o diálogo, olhos nos olhos, confidencialmente, com o paroquiano.

O bispo delegou nele o seu poder de vigiar e punir, recomendando-lhe que «use de grande discrição, distinga entre aquele que pecou publicamente e fez penitência pública e aquele que publicou secretamente e confessa por si». A Igreja passa a estar à altura de regulamentar as coisas mais íntimas. Mergulhando o olhar muito além do que os inquiridores do século X estavam em posição de descobrir, toma sob a sua alçada gestos e pensamentos que ninguém antes tinha por culposos e que, nomeando-os descrevendo-os, transforma em delitos, alargando assim indefinidamente o campo da ansiedade, desse medo do inferno que leva a que as pessoas se inclinem diante dela” (Duby, 1996: 21-23).

 

Bibliografia

DUBY, Georges. (1996). As Damas do Séc. XII. Eva e os Padres. Teorema. 3º volume. Lisboa.

PILOSU, Mario. (1995). A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Editorial Estampa. Lisboa.