Rebeldias…

Publicado por: Milu  :  Categoria: Rebeldias, SOCIOLOGIA DA FAMÍLIA

 

 

“Perder-se também é caminho.”

 

Clarice Lispector

 

Nas minhas incursões pelas leituras deparo-me amiúde com narrativas que  têm o condão de me despertarem memórias, algumas já de um tempo longínquo. Foi hoje o caso. A partir do conceito de “sacrifício”.

Ao ler um livro, cujo título é “Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher” da lavra de Carol Gilligan, filósofa, psicóloga e professora de Educação da Universidade de Harvard, fui levada a recordar-me de um episódio da minha vida teria eu cerca de 12 anos de idade.

Frequentava ainda a  catequese e foi num desses momentos que, a minha catequista, cuja idade  não sei precisar, mas já não era muito jovem, nos deu uma lição de que nunca me esqueci. É pertinente referir que, naquela sessão de catequese, éramos todas meninas, logo, colocadas mesmo a jeito para a tal lição…

Nesse dia, que o tempo sabe-se lá porquê não apagou da minha memória, a minha catequista, acredito que inconscientemente, contribuiu para reforçar o estereótipo de género, enaltecendo o já vincado espírito da obediência, que nos tinha vindo a ser inculcado desde a mais tenra idade.

Dizia ela que, quando a nossa mãe nos mandasse fazer alguma tarefa doméstica, como por exemplo lavar a louça, não obstante não nos apetecer fazer tal coisa, deveríamos fazê-lo, e oferecer esse sacrifício a Deus, rogando-lhe que servisse para desconto dos nossos pecados.  Recordo-me que, durante um pedaço de tempo, foi enumerando  exemplos de tarefas domésticas que por não serem agradáveis de fazer implicam sacrifício, mas que, segundo ela, hosana nas alturas, seria convertido em moeda de troca para conquistar  o perdão de Deus. Uma forma de encurtar a estadia no Purgatório, melhor dizendo…

Por que será que nunca me esqueci desta lição de catequese?

Naquela idade e naquele tempo, eu não fazia ideia do que consistia a questão de género. É certo. Não me apercebi, portanto,  que de alguma forma estava a ser levada pela mão para aquele que era considerado o destino natural das mulheres: cuidar e limpar a casa. Mas, um pequeno grande pormenor não me escapou: a intuição de que não tinha feito fosse o que fosse que ofendesse tanto a Deus. Não tinha, por conseguinte, que empreender sacrifícios para descontar no mal que não tinha feito. Também não estava disposta a pagar adiantado… Simples.

Agora, que já estou na posse de elementos que me permitem compreender a ordem que governa o mundo, só posso sentir carinho pela criança que assim pensou e arrumou bem o assunto.

Mas vamos ao que me interessa aqui partilhar, um excerto retirado do livro acima  citado, onde está implícita a ideia de auto-sacrifício, outrora uma praxis feminina, e que motivou estas minhas cogitações.

A Conferência de Seneca Falls foi seguida pela exclusão de Stanton, Mott e outras delegadas da participação na Convenção Mundial Anti-esclavagista realizada em Londres, em 1840. Ultrajadas por se verem relegadas para as galerias para observarem os acontecimentos em que deveriam participar, estas mulheres reclamaram para si próprias, em 1848, aquilo que tinham tentado reclamar para as outras oito anos antes, ou seja, os direitos de cidadania num estado assumidamente democrático. Baseando as suas reivindicações no princípio da igualdade e fundamentando-se nas noções de contrato social e direitos naturais, a Declaração de Seneca Falls não procura consideração especial para as mulheres, mas defende, simplesmente, que «estas verdades são óbvias:

todos os homens e mulheres são iguais; que são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis; que entre estes estão o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de procurar a felicidade.

Mas, a reivindicação dos seus direitos por parte das mulheres colocou-as logo numa aparente oposição à virtude, uma oposição que foi negada por Mary Wollstonecraft, em 1792. Em «Uma reclamação dos direitos da mulher», ela argumenta que a liberdade, mais do que promotora da licenciosidade, a liberdade é «a mãe da virtude», porque a escravidão causa não só a abjecção e o desespero, mas também a falsidade e o engano. A «arrogância» de Wollstonecraft ao atrever-se a «aplicar a minha própria razão» e a desafiar «as noções erradas que escravizaram as pessoas do meu sexo» foi, de seguida, igualada pela ousadia de Stanton ao dizer a um jornalista

«escreva em letras maiúsculas: O DESENVOLVIMENTO DA PESSOA É MAIS IMPORTANTE DO QUE O AUTO-SACRIFÍCIO. O que mais retarda e dificulta o desenvolvimento da mulher é o auto-sacrifício».

Contrariando a acusação de egoísmo, o pecado principal na escala da virtude feminina que tende para um ideal de perfeita devoção e abnegação não só perante Deus, mas também perante os homens, estas pioneiras proponentes dos direitos das mulheres equiparavam auto-sacrifício a escravatura e afirmavam que o desenvolvimento da mulher , tal como o do homem, serviria para promover o bem geral.”

Bibliografia

GILLIGAN, Carol. (1997). Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher. Editora Gulbenkian.