Embustes bestiais

Publicado por: Milu  :  Categoria: Embustes bestiais, TERRORISMO

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Diz Giddens e muito bem:

 

«Os velhos maquinismos do poder não funcionam numa sociedade em que os cidadãos vivem no mesmo ambiente informativo que aqueles que os governam» (2000: 88).

 

Na minha senda da busca de esclarecimento sobre a trama do Terrorismo eis mais um post com um excerto do livro “A Sociedade Invisível”, da autoria de Innerarity, que considero deveras pertinente, uma vez que põe a nu o cinismo que poderá haver na luta contra o terrorismo. É que ele, afinal… dá um grande jeitão…

Na pretensa luta contra o terrorismo podem-se fazer as coisas mais impensáveis… E esta circunstância deveria suscitar a desconfiança de todos nós… Cada um que leia e pense o que bem entender, mas uma coisa é certa: o terrorismo pode, de uma forma esconsa, reverter em  benefícios para uma determinada facção, numa determinada conjectura. Sejamos observadores, críticos e capazes de pensar e imaginar o impensável, se não quisermos ser engolidos, trapaceados a todo o momento. Sejamos capazes de pensar o impossível… mas que pode não ser assim tão impossível. A ganância  e a sede pelo poder é uma cegueira e na cegueira o ser humano é capaz de tudo, tudo pode. Ou seja, o terrorismo não deixa de ser também uma desculpa para levar a cabo medidas que jamais seriam aceites noutras circunstâncias.

“Observar bem a realidade é uma tarefa interpretativa que exige desenvolver uns hábitos semelhantes aos da espionagem, sobretudo quando o mais imediato é o mais enganoso e a crescente complexidade não se combate acumulando dados ou informações, mas mediante uma boa interpretação.”

Prólogo 

As Desculpas:

“Transformaram-se em operações muito adequadas num momento de escassez de projectos e ideias. A arte de administrar a desculpa torna possível efectuar as operações básicas exigidas no programa: cativar, distrair, desviar, aparentar, dissimular. A estratégia da desculpa põe ao alcance de qualquer uma fórmula infalível para conseguir o que noutros tempos teria de ser o resultado de um trabalho profundo. O actual dirigente já não precisa de ler muito nem de pensar muito. Nem sequer tem de argumentar ou de ser convincente: basta-lhe manejar correctamente os dispositivos da atenção pública. É uma pessoa que não tem ideias para convencer, mas apenas processos de distrair” (Innerarity, 2009: 60).

 

“Comecemos pelo princípio. Falando propriamente, que vem a ser o terrorismo? O terrorismo é um fenómeno muito próprio do nosso tempo, da era das desculpas, pois é a maior de todas elas, a mais grosseira, que parasita causas que só prejudica, como os direitos humanos, a religião ou a liberdade das nações. Mas o terrorismo tem também uma dimensão «virtual» que não consiste em procurar a eliminação física do inimigo (como procuravam as guerras convencionais), mas a sua deserção, mediante uma estratégia que, dirigida em princípio contra certas vítimas concretas, pretende modificar o comportamento de toda a sociedade. O terrorismo faz parte da nossa paisagem cultural porque é também uma estratégia de manipulação dos sinais no intuito de encenar e confundir. Umberto Eco indicava recentemente que o terrorismo procura desestabilizar o campo do inimigo, pôr o outro numa situação em que todos desconfiem de todos (2003).

E também o antiterrorismo se pode transformar numa desculpa. Modificando a célebre fórmula de Clausewitz, dizia Baudrillard que determinado antiterrorismo é a continuação da falta de política por outros meios. Neste momento, é já bastante claro que o antiterrorismo nem sempre serve para molestar os terroristas e proporciona, por vezes, benefícios que de outro modo não poderiam ser obtidos. Entre outras coisas, serve para ganhar eleições, obter legitimidade, incomodar o adversário, desviar as atenções de outros temas, impor prioridades, ocultar incompetências ou assumir poderes que uma sociedade democrática não suportaria sem essa desculpa. Dos benefícios que ele pode facultar, o mais suculento é aquele que provém da possibilidade de entalar a oposição e eliminar as divergências. Quem traça os eixos do bem e do mal efectua uma polarização que simplifica coactivamente o terreno do jogo, despolitiza e comprime o pluralismo. Daí o interesse em promover unanimidades forçadas a partir das quais o direito de fazer oposição fica ameaçado e em interpretar a divergência como cumplicidade ou deslealdade. Por que é que a política antiterrorista não é um âmbito adequado ao exercício do pluralismo?

Uma vez abandonada a velha justificação ideológica que procura silogismos e demonstrações, a lógica de certo comportamento antiterrorista gira em redor da categoria da equiparação. A estratégia consiste em repetir insistentemente que A é igual a B até que isso crie um automatismo social. Num mundo confuso, atacar começa por identificar, e o público sente-se aliviado com alguma referência indiscutível no meio da confusão. Desse modo se promove uma guerra contra um país ou se ilegaliza um partido político; mas também se limita o jogo de qualquer adversário com a ameaça de o acusar de cumplicidade. São equiparações mais ou menos arbitrárias que definem um território cómodo para as estratégias mas que impedem a distinção inteligente das realidades que são complexas.

Depois do 11 de Setembro, criou-se um clima que outorgava licença a tudo quanto se apresentasse como luta antiterrorista. A mais clara regressão do direito foi formulada no «Patriot Act» de 25 de Outubro de 2001, que autorizava prender um estrangeiro sem motivo e privá-lo de todos os seus direitos, criava tribunais de excepção e revogava o texto de 1974 que proibia a eliminação física de adversários. A reacção de determinados estados perante as novas formas da violência e dos conflitos seguiu uma linha de requinte dos métodos de repressão virados contra as populações civis, ignorando em grande medida os fundamentos sociais dessas novas violências.

Sob o rótulo da luta contra o terrorismo, a própria população volta a ser objecto de uma suspeita generalizada: religião, raça e procedência convertem-se de súbito em critérios de observação intensificada.

O principal prejudicado por tudo isto é o direito, que sempre girou em redor de provas e evidências demonstráveis e que agora é obrigado a mover-se no mundo da suspeita.

Na era da desculpa, o abuso conta com maiores possibilidades de aceitação.

Todas as garantias, todos os procedimentos e toda a presunção de inocência perdem força no horizonte de uma possível conspiração. Os discursos penetram no território virtual do subjuntivo. Não haverá provas de o Irak possuir armas de destruição em massa, mas o facto de se as não encontrar será utilizado como argumento: elas «têm» de existir. Quando explicava que a guerra contra o Afeganistão não podia ser justificada pelas provas tradicionais, Bush dava a entender uma coisa realmente estranha:

era uma guerra em busca de provas que pudessem justificá-la;

Powel desfiava no Conselho de Segurança uma bataria de suposições com base nas quais ninguém poderia ser condenado em qualquer país civilizado; Aznar pediu ao Parlamento que acreditasse nele, parecendo dar a entender que tinha dados que nós não conhecíamos mas que, se os conhecêssemos, o apoiaríamos. Toda uma reabilitação da velha concepção do poder segundo a qual uns mandam porque sabem mais do que todos os outros.

Diz Giddens: «Os velhos maquinismos do poder não funcionam numa sociedade em que os cidadãos vivem no mesmo ambiente informativo que aqueles que os governam» (2000,88).

Nas manifestações de cidadãos contra a guerra do Irak, foi defendido não só o desejo de paz mas também a aspiração democrática de igualdade no conhecimento dos dados com base nos quais são tomadas as grandes decisões colectivas. Foi defendida a prática do peso da prova contra os privilégio da suspeita. O combate ao terrorismo começa, em qualquer nível, pela protecção do juízo equilibrado e plural que o terrorismo pretende destruir” (Innerarity, 2009: 61-64).

Bibliografia

INNERARITY, Daniel. (2009). A Sociedade Invisível. Teorema. Lisboa. 61-64.