“Se você não contar a verdade sobre si mesmo, não pode contar a verdade sobre as outras pessoas.”
VIRGINIA WOOLF
Quando publiquei o post anterior tinha a intenção de logo escrever um outro, onde vos daria conta de mais algumas atitudes perfeitamente reveladoras do carácter abjecto desta senhora, que tem vindo a ser protagonista das minhas mais recentes histórias, que insana, ainda tinha a veleidade de pensar, que era tida por todos quantos a conheciam, como o exemplo acabado de uma senhora fina, oriunda de uma casta superior e detentora de uma polida educação. No fundo o que eu pretendia mesmo era escrever uma história que servisse na perfeição de corolário para todas as outras, o mesmo é dizer que, de todas as histórias esta seria a pior, aquela que conteria factos ainda mais inconcebíveis, contudo, vou ter de adiar esse meu projecto, já que a Flordeliz, uma das minhas fiéis visitantes, num dos seus comentários ao post anterior, a propósito do recado em que eu acartava um malote cheio de laranjadas e outras bebidas, comentou que a meio da leitura ainda chegou a pensar que me teria atrevido a beber uma das laranjadas, o que me fez lembrar de uma outra situação, na qual e para meu infortúnio, mais uma vez fui uma inocente vítima da invulgar mesquinhez que caracterizava esta senhora.
Mas, a verdade seja dita: Se nunca me deu na veneta de beber uma das laranjadas foi tão-somente porque a isso nunca me senti tentada. Vendo bem até que me seria fácil, visto que a minha casa me ficava no caminho, teria aberto uma das garrafas com a velha e ferrugenta chave que de tão pouco uso jazia esquecida no fundo da gaveta, pois que, laranjada na minha casa só mesmo quando o rei fazia anos. Mas também sabia que o meu desplante e atrevimento me iriam valer um correctivo, que tanto poderia ser um valente par de açoites ou até mesmo, já não seria a primeira vez, uma violenta saraivada de chineladas aplicadas no traseiro, além de que, disso tenho a certeza, a minha mãe faria questão de pegar em dinheiro e pagar o meu estrago, o que me faria sentir duplamente culpada. Lá levar porrada era uma coisa, praticamente só dói naquela altura, mas fazer com que a minha mãe tivesse de gastar o pouco dinheiro que tínhamos, já era outra! Mas vamos ao caso que a Flordeliz me fez recordar:
Um dia houve em que pude testemunhar o quanto a sovinice e avareza das pessoas pode ser desprezível. Quanto a mim, as pessoas que assim são, deveriam ser emparedadas junto com todas as suas notas de banco, já que tanto gostam delas o dinheiro que lhe servisse de companhia para toda a eternidade.
Na altura eu já era uma adolescente de 14 anos, sei disso porque o meu pai havia falecido recentemente, o que nos fez a nós, à minha mãe e aos seus três filhos menores, mergulhar num mundo de dificuldades, foi um tempo em que quase tudo nos faltou. Não é de admirar, portanto, que de repente nos tivéssemos tornado no alvo das atenções das pessoas que melhor nos conheciam, ou que de alguma forma nos fossem próximas. Parecia que todas queriam dar o seu contributo, ajudando cada uma à sua maneira. Todavia e para minha infinita tristeza não demorei a compreender que as aparências iludem. Infelizmente o que as pessoas mais gostam de fazer, não é bem aquela ajuda com atitudes dignas e em tempo útil, o que se aprestam a fazer e de bom grado é a chamada caridadezinha, que não só não melhora as condições de vida de quem precisa, como em vez disso, chega a ser humilhante. Afinal sempre há alguma desconcertante verdade no adágio que nos diz que, “Santos ao pé da porta não fazem milagres”.
Pois esta senhora numa conversa com a minha mãe transmitiu-lhe a ideia de eu ir à sua casa para fazer uns trabalhos de limpeza, juntamente com outras duas senhoras que trabalhavam à hora, que me pagaria igual a elas, para eu poder ter o meu dinheirinho, já que agora era uma jovenzinha com todas as necessidades que isso implicava, que assim e que assado. E a minha mãe achou jeito àquela conversa, pelo que se esforçou para me convencer a aceitar, até porque se não fosse iria ser criticada, logo diriam que eu não queria trabalhar, que era uma mandriona e porque torna e porque deixa.
Lá fui! Pouco ou nada entusiasmada, é certo, mas com a esperança de que o dinheiro ganho servisse para comprar algo de que gostaria muito porque de necessidades estava eu inundada, já nem valia a pena pensar nisso, o que queria mesmo era uma coisa de que gostasse, que me servisse de verdadeiro alento e recompensa, como por exemplo um verniz de uma cor bem bonita para pintar as unhas ou um lápis preto para delinear os olhos, enfim, algumas daquelas coisas para as quais a minha normal vaidade de adolescente começara a despertar.
Calhou-me a ingrata tarefa de remover com um áspero esfregão de arame a cera velha do soalho da sala, da mesma sala onde tantas vezes me inebriei de encantamento ao ver as séries televisivas de então. Durante horas, que me pareceram uma dura eternidade, lá andei intrépida na desagradável penumbra da sala virada a norte, que ainda para mais cheirava intensamente a tabaco, suando as estopinhas e já profundamente arrependida de me ter metido naquela empreitada. Subitamente deram-me ganas de atirar com o esfregão para longe e largar o serviço, mas, em vez disso, apliquei-me ainda com mais fervor ao trabalho, esfregando com tanta força que quase arrancava farpas de madeira, ferindo ainda mais o já tão castigado pavimento.
Lá pelo meio da tarde ouvi-lhe a vozinha melosa com que habitualmente se me dirigia, a chamar por mim, para que fosse à cozinha a fim de retemperar as forças com o lanche que me havia preparado. Fiquei surpreendida com tamanha amabilidade que não era seu apanágio, mas não deixa de ser verdade que até as pessoas mais duras e secas são capazes de momentos de fraqueza, por isso foi com prazer e considerável alívio, já que aproveitei para descansar um bocadinho da rudeza da faina, que engoli uma sandes composta por um pastel de bacalhau dentro de um papo-seco e um pequeno copo de laranjada para ajudar a desembuchar.
Depois de lanchada foi com entusiasmo renovado que me atirei com assanhado fulgor à tarefa de que havia sido incumbida e que para minha infinita alegria já ia grandemente adiantada. Quando um pouco mais tarde dei por finda a tão penosa labuta olhei para o resultado do meu esforço e sorri maravilhada, apesar de me sentir derreada das costas. Afinal tinha valido a pena! Aquele chão que tanto me havia atormentado brilhava resplandecente, pois que, depois de removida a cera velha havia-lhe aplicado uma generosa camada de Dabri, (passe a publicidade, mas foi mesmo este produto que me recordo de ter usado). Finalmente e para meu grande contentamento era chegado o momento mais desejado, aquele em que iria receber o produto do meu trabalho, o dinheirinho que durante toda a tarde tantas vezes gastei em sonhos ditados pela minha imaginação.
Mas, eis que o insólito estava para acontecer!!! No momento de efectuar o pagamento da minha prestação de trabalho esta senhora resolveu dizer que não iria pagar-me igualmente às outras duas mulheres, porque estas, habituadas a trabalhar à hora, haviam sido mais lestas, como quem diz que eu teria andado o tempo todo a engonhar. Pareceu-me mal! Pois pareceu! Então, se assim havia sido, porque não se queixou antes? Se logo no início me tivesse acusado de estar a fazer ronha, e se eu entendesse que me estava a pedir demais, sempre podia ter largado o trabalho enquanto era tempo. Contudo deixei-me ficar calada apesar de imensamente desiludida. Tinha a nítida impressão de que estava a ser vilmente enganada, mas perante um adulto o que faz uma indefesa adolescente de quem todos se aprestariam a duvidar? Naqueles tempos um adulto gozava de mais credibilidade do que um qualquer adolescente, quanto mais eu, tornada tão frágil devido ao meu quase total desamparo.
Mas por incrível que possa parecer a avareza não se ficou por aqui, uma outra situação inédita aconteceu:
No auge da indecência, esta senhora fez-me saber que do montante restante que me haveria de pagar seria descontado o valor do lanche que eu havia tomado. Ao ouvir tamanha aleivosia fiquei sem fala! Era demais para mim. Então se nem sequer estava a contar com o lanche, de bom grado teria estado sem comer desde que recebesse o meu dinheiro!! A triste verdade é que com o meu esforçado e diligente trabalho paguei um pastel de bacalhau, que de bacalhau só tinha o nome, um papo-seco, que era mesmo seco, tinha pelo menos três dias e um diminuto e mísero copo de laranjada!..
Pois aqui tens Flordeliz, o episódio que tu me lembraste, quando referiste que ainda chegaste a pensar que num qualquer dos recados para ir comprar bebidas, teria mandado o temor do consequente castigo às urtigas e vá de emborcar pelo gorgomilo abaixo uma das deliciosas laranjadas! Escusado será dizer que este episódio ditou o fim da minha parceria nos trabalhos domésticos em casa desta senhora. Ninguém gosta de trabalhar para aquecer!…