Um tempo que já foi

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Um tempo que já foi

“Os negócios são o dinheiro dos outros”

ALEXANDRE DUMAS

E já que andei aqui a falar de copos, e também porque a época para isso muito se apresta, não resisti a contar-lhes um episódio que comigo aconteceu. Desta vez não venho falar de nenhum amigo, venho falar de mim, porque agora quem bebeu fui eu. Antes de prosseguir, pretendo deixar bem expresso, que com esta narrativa não estou de forma alguma a fazer a apologia do álcool e do tabaco, até porque esta minha história pertence a um tempo que já lá vai, há muito que  não fumo, quanto a beber ainda lhe dou um jeito. Mais copo menos copo, tudo depende do pitéu, é certo. Perante uma soberba bacalhauzada ou uma revigorante feijoada não quero nada com a água! Tenham lá paciência os eventuais abstémios que porventura me lerem, mas as coisas são como elas são! Se não houver vinho para acompanhar tão soberbos e sumptuosos paladares prefiro o jejum! Ora vamos à história cujo cenário foi a capital.

Quando o episódio que deu origem a este post aconteceu, teria cerca de 22 anos. Há uns tempos que regularmente me deslocava a Lisboa com o fim de prosseguir na manutenção de meu recente negócio. Naquele tempo, muito acertadamente dizia-se que “Lisboa era Portugal e o resto era paisagem”, por isso mesmo, costumava fazer sucesso com as roupas que adquiria para meu uso pessoal em lojas como Os Porfírios, a Casa Africana, a Chez Elle e em muitas outras situadas nas imediações da Praça da Figueira, do Rossio, do Chiado, na rua do Carmo, enfim, por toda a Baixa Lisboeta. Esta ideia do negócio havia ganho corpo na minha mente, após ter reparado, que as minhas  amigas e pessoas conhecidas, costumavam cobiçar todas as minhas aquisições, já que na parvalheira onde então vivia, nem sequer logravam aparecer, visto que os lojistas preferiam investir com segurança, comercializando roupas e artigos mais virados para o clássico, e nisto eles tinham razão, porque nem todos tinham o meu arrojo, que já nessa altura gostava de inovar.

Dei então em comprar mais umas peças de vestuário e bijutaria, na maior parte das vezes em saldo, a cujo preço acrescentava mais alguns escudos, não muitos, para que não me chamassem “careira”, bem parva fui, e toca de as vender às amigas e conhecidas. Escusado será dizer, aqui para nós que ninguém nos ouve, que com este negócio em vez de ganhos, o mais certo é que arrecadasse francos prejuízos. É que ao adquirir os artigos pagava imediatamente o total e a pronto, enquanto que ao vendê-los era uso corrente receber os respectivos pagamentos às “mijinhas”. Rara era aquela que se distinguia por ser de boas contas, já para não falar de alguma que entretanto se fazia esquecida. Nestas condições, qualquer um no meu lugar, não hesitaria em acabar com tão ruinoso negócio, mas eu era muito persistente,  aliás, todos somos persistentes enquanto acreditamos, a verdade é que gostava destas trocas e baldrocas, era jovem e tal… Vistas bem as coisas, andava a fingir, principalmente para mim, que era uma comerciante e peras! E como a minha inexperiência e juventude me permitiam sonhar, decidi que devia expandir o negócio, pelo que comecei a acompanhar um senhor, familiar de uma pessoa amiga, que tinha uma loja e que costumava abastecer-se em armazéns sitos em Lisboa, assim como nas lojas dos monhés no Martim Moniz. E foi aqui nestas lojas, que dei início à nova era expansionista do meu negócio, que se não me serviu para almejar consideráveis lucros, pelo menos serviu para me trazer entusiasmada, porque na vida temos de fazer coisas.

Um belo dia, depois de procedermos à aquisição de novas mercadorias no Martim Moniz, este senhor convidou-me para irmos almoçar, num restaurante do qual nunca mais consegui saber onde se situava, a não ser que ficava por ali nas redondezas do Rossio ou da praça da Figueira. Recordo-me apenas, que entrámos por uma porta que dava acesso a uma sala de jantar interior, sem janelas, talvez por causa disto sempre me passou despercebido nas vezes que o procurei. A dona do estabelecimento era francesa e foi ela que muito simpaticamente nos serviu.

Para acompanhar o belo e opulento cozido à portuguesa que encomendámos, pedimos uma cerveja e um sumo de ananás. Ora bem, tendo em conta a mentalidade, os usos e costumes daqueles tempos, julgar-se-ia que a cerveja era para o cavalheiro e o sumo para a senhora, e foi mesmo nesta ordem que as bebidas foram colocadas na mesa, pelo que o senhor que me acompanhava pediu à francesa, proprietária do estabelecimento, para que trocasse as bebidas e os respectivos copos, já que a cerveja, por sinal uma Calrsberg, se destinava à senhora. Mais tarde e depois da refeição foi por nós solicitado um cinzeiro.

Ora bem! Quem é que normalmente fumava? Era o homem! Portanto, vá de colocar o cinzeiro à direita do cavalheiro, gesto que este logo tratou de emendar, que mais uma vez elucidou que o cinzeiro era para a senhora! E foi neste momento que a francesa abriu um sorriso rasgado, aproximando-se da nossa mesa para nos felicitar, maravilhada pela nossa atitude vanguardista, denunciando assim que nos havia tomado como um casal e não como dois amigos ou simplesmente conhecidos. Mostrando-se divertida, ali se aprestou à conversa realçando a satisfação, de perante ela, ter um casal bem diferente do comum, isto é, o pretenso marido não fumava nem bebia, por seu lado, a também suposta esposa fazia as duas coisas, ainda mais invulgar se tornava tendo em conta a cultura do país, onde o que mais se via era precisamente o contrário. E logo ali nos contou o choque que havia tido ao chegar a Portugal, quando verificou que o papel do homem e da mulher eram bem definidos, destacando-se a falta de liberdade de acção das mulheres, que ainda por cima, pareciam acatar submissas e de bom grado o papel que a sociedade lhes reservava! Bem, não esqueçam, isto passou-se já lá  vão vinte e cinco anos, um quarto de século, portanto! Actualmente o cenário é bem diferente…

E porque aqui referi o Martim Moniz, os monhés e as suas tão características lojas, deixo-vos esta anedota:

Um sujeito engravatado entra na lojinha do Abdul, no Martim Moniz, em Lisboa, e olha com desprezo para o balcão escuro, as roupas penduradas em ganchos, as caixas de papelão, os invólucros de plástico aos montes pelo chão…
Abdul irrita-se com o desprezo do tipo e resmunga :
– Está a olhar para a loja do Abdul com cara de parvo porquê? Com esta lojinha, Abdul tem apartamento no Cascais, tem apartamento no Algarve, tem casa no Chiado, tem quinta no campo, tem filho a estudar medicina nos Estados Unidos, tem filha estudando moda em Paris. Tudo só com lojinha!
– Bom dia, eu sou fiscal das Finanças!
– Muito prazer! Eu, Abdul, monhé mais mentiroso do Martim Moniz… 😀

Tirada daqui