“Se pensássemos em todas as sortes que tivemos sem as merecer, não teríamos coragem de nos lamentar.”
JULES RENARD
“Não chore; não se revolte. Compreenda.”
BENTO DE ESPINOSA
Um dia destes ao visitar o blog Congeminações deparei-me com um post que aludia a uns determinados veículos pertencentes à categoria de quadricíclos, que na linguagem corrente e, enfim, algo brejeira, são designados popularmente por mata-velhos, taca-taca, papa-reformas, caga-tacos, assassino de idosos e sei lá que mais! De imediato me ocorreu à memória uma sucessão de imagens de várias cenas por mim presenciadas, que me podiam ter causado alguns estragos, devido aos possíveis danos colaterais, de tanto me ter rido. A história que vou contar pode até, ferir algumas susceptibilidades, afinal, eu e os meus colegas de então, não fizemos outra coisa que não fosse tirar proveito de uma cena do quotidiano – que nos era alheio – para uns momentos de bom e puro riso.
A todas as pessoas que, porventura este relato incomodar, que aceitem o meu pedido de desculpas, se entenderem que o devem fazer. Faço saber que me esforço continuamente para compreender os melindres de cada um, mas sem exageros, nada de travar a minha liberdade! Confesso, desde já, que a consciência não me pesa. Primeiro, porque gosto de rir e que riam comigo das minhas desventuras. Todos os que me lêem sabem-no bem! Depois, porque não alinho em falsos moralismos! Conheço gente, muito moralista, que até faz questão de que os seus filhos frequentem a catequese, para aprenderem os bons princípios cristãos, mas que no dia-a-dia , seja no local de trabalho, seja nas relações da sua vida privada, só não passam por cima daqueles que não puderem!
Posto isto, penso que ficou bem expresso, que apenas à minha consciência presto satisfações e mesmo assim só às vezes, até porque não me incomodo com ninharias, mas sim com o que é verdadeiramente grande e importante! Tenho uma forma muito própria de estar no mundo, faço apenas o necessário para me ser possível viver em paz, o resto entrego nas mãos do tempo ou do destino, eles que operem!
Trabalhei numa empresa que ocupava um rés-do-chão de um prédio situado numa avenida de intenso tráfego rodoviário. A fachada frontal do espaço era constituída por uma grande montra de vidro revestida por uma película espelhada que permitia que avistássemos o que se passava no exterior, sem no entanto denotar a nossa presença, ainda que pudéssemos estar do lado interior colados à montra. Foi isso que fizemos, eu e os meus colegas, para nos divertirmos à brava com a inépcia de um vizinho de idade avançada que tinha um papa-reformas, quadricíclo ou lá o que lhe queiram chamar! Assim que algum dos meus colegas lograsse avistar o dito senhor no interior da caranguejola, prestes a iniciar a manobra de sair de marcha atrás da bainha de estacionamento defronte da empresa, logo ocorria a chamar os outros porque iríamos ser agraciados com uma cena para rir a bom rir!
Uma razão existe para que estes veículos circulem por aí nas estradas, essa razão é tão-só a circunstância de os seus condutores não estarem habilitados de capacidades para tirarem a carta de condução da mesma forma que um normal cidadão, que tem de se esforçar para aprender e saber interpretar o código da estrada. E isto era bem visível no que ali testemunhávamos…Depois de ter posto o motor a trabalhar…
Taca-taca-taca-taca-taca-taca-taca-taca…
Sair de marcha atrás, da bainha de estacionamento, era para este senhor uma autêntica e titânica odisseia! Profundamente embrenhado na confusão do jogo entre os pedais, travão, embraiagem e acelerador, hesitava constantemente, fazendo caras que desenhavam um semblante que reflectiam um tal desassossego e estupefacção que me fazia lembrar o jeito de um bebé assustado, no exacto momento em que transita do susto para um berreiro infernal. Para cúmulo do azar, a avenida apenas por uns escassos instantes ficava desimpedida, consequência de um semáforo um pouco mais adiante, que provocava longas filas e que demoravam a espera no escoamento do trânsito! Do lado de dentro do estabelecimento, protegidos pela superfície espelhada da montra, todos nos ríamos que nem uns perdidos com a atrapalhada azáfama do senhor, que não havia meio de resolver semelhante imbróglio, coisa que para nós seria uma manobra trivial. Os espirituosos dichotes dos meus colegas, que se deitavam a adivinhar as próximas reacções do desditoso senhor, sucediam-se uns atrás dos outros, o que me fazia rir ainda mais, ao ponto de me encharcar em lágrimas e chegar a temer desconjuntar os maxilares. Que me ficavam a doer ficavam, mas a sensação de leveza que podia sentir após tanto riso, essa, penso bem, não haver dinheiro que a pague!
O pobre senhor esmerava-se em tentativas que saíam goradas! A carripana, cuja carroçaria ostentava de um lado, não me recordo qual, uma larga estaladela, fruto de um qualquer “encosto”, que lhe dava o aspecto de um brinquedo partido, estremecia como um pudim devido aos constantes arranques falsos! Por fim, em dada altura e sem que tivesse havido algo que o deixasse adivinhar, irrompia numa frenética marcha atrás sem mesmo ter verificado como se encontrava a sua retaguarda, no fundo, aquela manobra tinha sido uma roleta russa!
Por sorte, em todas as vezes que pudemos testemunhar tamanha imperícia, quis o acaso que não embatesse em nada nem a ninguém, mas foi apenas por acaso, porque não foi coisa que ele verificasse, depois de tanta concentração, pisava o acelerador, largava a embraiagem e atirava à toa e à maluca com o carro para a estrada, que se lixasse quem lá viesse!