Auguste Comte

Publicado por: Milu  :  Categoria: Auguste Comte, REPOSITORIUM

Comte

Na saga do  meu propósito de construir um Repositorium de textos sobre Sociologia, apresento desde já o primeiro post de outros que se lhe seguirão, nos quais serão expostas algumas classificações das sociedades, de acordo com critérios que diferentes autores utilizaram para as comparar e para lhes determinar o estádio de desenvolvimento na evolução social.

Informo também que poderá aceder aos posts sobre Sociologia, procurando o separador onde diz REPOSITORIUM, na faixa esquerda deste blog.

 

 

AUGUSTO COMTE:

O ESTÁDIO DOS CONHECIMENTOS

Augusto Comte (1798-1857) é geralmente considerado o pai da sociologia, porque foi o primeiro a designá-la com este nome, depois de lhe ter chamado «física social», e sobretudo porque apresentou a primeira formulação sistemática da sociologia” (…) (p. 20).

“Três princípios de base”

“Na base da sociologia de Comte existem três princípios que a esclarecem inteiramente. Em primeiro lugar, segundo Auguste Comte, não é possível compreender e explicar um fenómeno social particular sem o repor no contexto social global a que pertence, como não é possível em biologia explicar um órgão e as suas funções sem os considerar relativamente ao organismo inteiro.

Este princípio do «primado do todo sobre as partes» aplica-se à análise daquilo a que Comte chama a «ordem espontânea das sociedades humanas», que constituiu o objecto da «sociologia estática»; aplica-se também – e é isto que aqui nos interessa mais particularmente – à sociedade histórica, à evolução das sociedades no tempo, objecto da «sociologia dinâmica». De facto, a sociedade de uma determinada época só se compreende e só se explica relativamente à sua história, melhor ainda, relativamente à história da humanidade. A sociologia de Comte é pois necessariamente uma sociologia comparada, cujo quadro geral é a história universal.

O segundo princípio exige que alinha directiva da história humana seja dada principalmente pelo «progresso dos conhecimentos». O homem age segundo os conhecimentos de que dispõe; as suas relações com o mundo e com os outros homens dependem do que ele conhece da natureza e da sociedade. Não pode dizer-se exactamente que são «as ideias que movem o mundo»; são antes os conhecimentos e mais precisamente os modos de conhecimentos que constituem o elemento dominante da história. Se não podemos falar de um determinismo dos conhecimentos em Comte, segundo ele, não deixa no entanto de existir uma coerência necessária, porque lógica, entre o estádio dos conhecimentos e a organização social. Mais adiante veremos o como e o porquê do que acabamos de referir.

Por fim, o terceiro princípio, «o homem é o mesmo por toda a parte e em todos os tempos», é devido à sua constituição biológica e particularmente ao seu sistema cerebral. É pois natural que por toda a parte a sociedade evolua da mesma maneira e no mesmo sentido e que a humanidade inteira esteja em marcha para um mesmo tipo de sociedade mais avançada” (pp. 20-22).

“A «lei dos três estados»”

“Expostos os três princípios, será mais fácil compreender a classificação das sociedades estabelecidas por Auguste Comte. Uma lei histórica que Comte dizia ter descoberto fornece-nos a chave desta classificação: é «a lei dos três estados», segundo a qual o progresso dos conhecimentos humanos se realiza através de três estádios ou estados:

  1. «o estado teológico», no qual o homem explica as coisas e os acontecimentos atribuindo «quer às próprias coisas quer a seres e a forças sobrenaturais e invisíveis a sua própria natureza, os seus sentimentos, as suas paixões, etc. Quando é às coisas que o homem empresta vida e acção o pensamento diz-se «fetichista«, fase inicial do estado teológico; depois o homem confere determinados traços da natureza humana (virtudes, vícios, motivações, etc) a potências sobrenaturais e então surgem sucessivamente o politeísmo e o monoteísmo;
  2. – «o estado metafísico», caracterizado pelo recurso a entidades abstractas, a ideias graças às quais se acredita poder explicar a natureza das coisas e a causa dos acontecimentos; estas unidades abstratas são então tratadas como verdadeiros agentes ou pessoas, o que leva Comte a dizer que elas substituem as potências sobrenaturais do estado teológico;
  3. – «o estado positivo», no qual o homem procura, através da observação e do raciocínio, apreender as relações necessárias entre as coisas e entre os acontecimentos e explicá-las pela formulação das leis. Este estado diferencia-se totalmente dos dois precedentes, antes de mais porque o homem se torna mais modesto e renuncia a conhecer a natureza íntima das coisas e as causas primeiras e últimas, e depois porque os conhecimentos se tornam eficazes para assegurar ao homem o domínio e o controlo do universo. Aos olhos de Comte, o estado positivo é, evidentemente, o estado superior que cada homem, cada ciência e a humanidade inteira  acabarão por atingir” (p. 22).

(…).

“A evolução das ciências mostra-nos de facto como cada uma delas alcançou a maturidade, libertando-se progressivamente das considerações teológica e metafísicas para se tornar positiva” (p. 23).

(…).

“Necessidade de uma nova ciência: a sociologia”

“Para completar o quadro das ciências, falta agora criar uma verdadeira ciência positiva do homem, da história humana e da sociedade uma «física social» ou sociologia. A ausência desta ciência explica a actual anarquia social; pois se hoje o homem conhece suficientemente a natureza para a dominar e a controlar, encara ainda a sociedade e a história de uma forma teológica e metafísica. É portanto necessário fazer triunfar definitivamente o reino da razão positiva neste último bastião da teologia e da metafísica que é o conhecimento  do homem e da sociedade; será esta a única maneira de assegurar à história humana uma direcção fundada já não na ficção e na imaginação, características do estado teológico  e metafísico, mas num conhecimento científico das leis sociais, na previsão e numa acção eficaz. Através da sociologia, Comte propõe aplicar aos fenómenos sociais o adágio «saber prever; prever para agir», que assegura já ao homem um certo domínio da natureza.

Tais são, para Auguste Comte, os fundamentos teóricos e práticos da nova ciência das sociedades. A sociologia tem portanto uma dupla vocação: contribuirá para o progresso dos conhecimentos completando o quadro das ciências positivas; favorecerá a passagem definitiva da sociedade e de toda a humanidade ao estado positivo. A sociologia surge, a Comte, simultaneamente como conhecimento e acção; mais exactamente, será acção porque será conhecimento. (…). Caberá portanto à sociologia fornecer o homem, com um conhecimento mais exacto dos mecanismos da sociedade e do sentido da história, o instrumento necessário para tomar em mãos o seu próprio destino.

Isto surge a Comte tanto mais correcto quanto a história passada nos ensina que a cada estádio dos conhecimentos está ligado um tipo particular de sociedade. «A evolução das sociedades, com a dos indivíduos e dos conhecimentos, obedece à lei dos três estados». Porque resume o progresso dos conhecimentos, esta lei é a grande lei da história. Daqui resulta que Comte distinga três tipos principais de sociedades, correspondentes aos três estádios dos conhecimentos (pp. 23-24).

“A sociedade militar”

“Quando os conhecimentos eram de predominância teológica, a sociedade era do tipo militar. Existe de facto uma afinidade profunda entre o modo de conhecimento teológico e a sociedade militar; ambos são fortemente autoritários e hierarquicamente unificados. Assim, na origem da humanidade e durante muito tempo, também os chefes políticos eram investidos de um carácter sagrado e até sacerdotal que lhes assegurava, bem como ao clero, um poder absoluto e total. Nos casos em que eram  distintas, a autoridade civil e a autoridade religiosa entravam frequentemente em conflito; mas podemos notar que, apesar disso, apoiavam-se e sustentavam-se sempre mutuamente.

A sociedade militar de espírito teológico, e por natureza anticientífica, era necessariamente agrícola, baseada na propriedade e na exploração do solo. A sua célula central era a família, principal unidade económica através da qual se transmitia não só a propriedade dos bens,  mas também o poder político e até o poder sacerdotal. (…)” (p25).

“A sociedade dos legistas”

“Ao estádio metafísico dos conhecimentos corresponde a «sociedade dos legistas“. Esta caracteriza-se por uma distinção nítida entre o poder espiritual e o poder temporal e pela independência progressiva deste último em relação ao primeiro. O enfraquecimento da autoridade religiosa é proveitoso para a autoridade civil, cujos poderes aumentam. As noções de Estado e de pátria tornam-se preponderantes; a antiga unidade assegurada pela autoridade religiosa desintegra-se. Surgem então dois grupos de homens que vão contribuir fortemente para definir e expandir as funções e o poder do Estado: são os ministros, a quem os reis deverão delegar uma parte crescente da sua autoridade, e os diplomatas que estabelecem e manipulam as relações entre os Estados. Ministros e diplomatas adquirem a sua autoridade em detrimento dos generais que passam a estar submetidos ao poder civil.

Mas o que acima de tudo caracteriza este tipo de sociedade é o facto de ela constituir uma «idade crítica». Na ordem dos conhecimentos, o estado metafísico é uma etapa transitória, uma fase crítica que serve para pôr em questão os preconceitos religiosos estabelecidos, para os denunciar, e para preparar assim um estádio positivo. Este último estádio não poderia surgir directamente do teológico sem esta crítica.

O mesmo se passa com a evolução social. A sociedade dos legistas serve para quebrar o império e a unidade da sociedade teocrática; é um período de desorganização, marcado por crises, revoluções. Mas tudo isto é necessário porque a sociedade positiva não poderia suceder imediatamente à sociedade militar, fundamentalmente religiosa, anticientífica e autoritária. Na história ocidental, o período crítico surgiu no século XIV, durou cinco séculos e deu lugar à Revolução Francesa, ao parlamentarismo e às nações modernas” (pp. 25-26).

“A sociedade industrial”

“A sociedade de transição dos legistas preparava a terceira etapa, em que a humanidade se encontra actualmente, a da «sociedade industrial”, correspondente ao estado positivo dos conhecimentos. As ciências positivas aplicadas à ordem  natural juntamente com o aparecimento da indústria estão em vias de transformar as condições de trabalho. (…). É através da indústria, e também pelo ensino das ciências positivas, que a mentalidade positiva se divulgará, provocando uma transformação radical das mentalidades” (p. 26).

“O pensamento social de Comte”

“A evolução da sociedade industrial que Comte previa no começo do século XIX era profundamente diferente da que anunciavam os socialistas do seu tempo: Saint-Simon,Prodhon, Marx e Engels. Comte não acreditava que a desaparição da propriedade privada fosse uma ideia cientificamente válida e demonstrável; também não acreditava que essa desaparição pudesse implicar a formação de uma sociedade igualitária. Além disso, Comte não era um liberal, não partilhava o optimismo dos economistas que atribuíam à livre concorrência virtudes providenciais e mágicas.

Com efeito, Comte é já «o homem da organização». Anuncia a burocratização da sociedade industrial; prevê o papel crescente dos tecnocratas da indústria e do poder político; mais ainda, toma inteiramente partido por uma sociedade organizada segundo a racionalidade dos planificadores e dos organizadores. A sociedade industrial de Comte é afinal «o Plano»” (pp. 28-29).

“Influência da Sociologia de Comte”

“Ao contrário do que acontece relativamente às obras dos sociólogos socialistas, a obra de Comte não se inscreve numa corrente ideológica e militante. Contudo, ela não é por isso menos importante. Foi Comte quem primeiro expôs e sistematizou uma sociologia científica. A sua sociologia era sem dúvida exclusivamente influenciada pelo modelo das ciências da natureza; está também demasiado marcada pela reflexão filosófica o que contribui para fazer dela uma sociologia da humanidade, mais do que das sociedades concretas; por último, Comte atribui à sociologia funções sociais excessivas. Porém, viu bem que a mentalidade técnico-científica passaria das ciências da natureza para as ciências humanas e sociais e que a sociedade industrial recorreria largamente a estas últimas.

Depois, Comte foi o primeiro sociólogo a analisar em profundidade a sociedade industrial. Esta não lhe surgiu como uma sociedade burguesa ou capitalista como aconteceu com os sociólogos socialistas; foi a sociedade industrial, como tal, que ele procurou compreender e cujo futuro quis desenhar. Deste ponto de vista, uma longa tradição ininterrompida liga Comte à sociologia contemporânea.

“Quanto às suas previsões no que toca à sociedade industrial, a história nem sempre lhe deu razão. Auguste Comte não analisou bem as hipóteses de sobrevivência da ideologia nacional; não soube medir o papel que o Estado iria desempenhar; exagerou o alcance histórico e a moral de instrução, a sociedade industrial não trouxe enfim a paz que ele esperava. Todavia previu o impacto do espírito técnico-científico na mentalidade e na organização social da sociedade industrial; apercebeu-se da secularização da sociedade industrial; compreendeu as tendências organizadoras inerentes a este tipo de sociedade e predisse o lugar que ocupam hoje os tecnocratas” (pp. 29-30).

 

Bibliografia

ROCHER, Guy. (1999). Sociologia Geral – A Organização Social. Editorial Presença. Lisboa. pp. 20-30.