A malvada

Publicado por: Milu  :  Categoria: A malvada, SOCIEDADE

 

 

” A religião não é somente um sistema de ideias, ela é antes de tudo um sistema de forças.”

 

Émile Durkheim

Hoje, neste meu post, dispenso-me de palavras, basta-me dizer que muitos dos preconceitos e crenças atávicas em relação à mulher, que ainda estão presentes na nossa cultura, pois cujo renascimento temos vindo a presenciar nestes últimos dias, têm uma origem muito antiga. Vou dar voz a quem estudou profundamente esta problemática .

Como introdução, aconselho a que se atente  neste trecho de Georges Duby:

Há quinze anos, na última frase de um livro, O Cavaleiro, a Dama e o Padre, fiz a pergunta:

que sabemos nós das mulheres?

Desde então procurei, em todos os vestígios deixados pelas damas do século XII. Gostava delas. Sabia bem que nunca veria nada do seu rosto, dos seus gestos, da sua maneira  de dançar, de rir, mas tinha esperança de entrever alguns aspectos da sua conduta,

o que pensavam de si próprias,

do mundo

e dos homens.

Entrevi apenas sombras, flutuantes, inapreensíveis. Não me chegou directamente nem uma das suas palavras. Todos os discursos que, no seu tempo, lhes foram atribuídos são masculinos. (…). Enfim, sei mais dos homens, os seus contemporâneos, do olhar que lançavam sobre elas. Eva atrai-os. Eva assusta-os. Afastavam-se prudentemente das mulheres, ou então maltratavam-nas, escarneciam delas, entrincheirados na certeza obstinada da sua superioridade natural” (Duby, 1996:187-188).

 

Excerto do Prefácio da autoria de Jean-Claude Schmitt – Directeur d’Études à l´École des Hautes Études en Scienses Sociales (Paris).

“No princípio era a pecadora, a tentadora, Eva, responsável juntamente com Satanás pelo pecado original. Ela é a encarnação dos vícios, que aparecem representados sob a forma de alegorias femininas. De entre estes, a luxúria reúne a feminilidade, o sexo e o pecado. 

(…). Mas se o antifeminismo não é por si só inerente ao cristianismo, parece bem sê-lo na Igreja das origens, nas missões de S. Paulo e ainda nos ensinamentos dos Padres do Deserto, que nos seus eremitérios parecem tornar-se anjos. Para eles, que odeiam a carne, existem dois destinos que se confundem: o da mulher e o do diabo. Os preconceitos que daí derivaram foram férteis em consequências: transmitidos e difundidos pela literatura monástica, aceites pelos pregadores e pelos confessores, ainda hoje têm o seu peso nas realidades ocultas mas muito importantes da nossa cultura, na nossa atitude em relação ao corpo ou no nosso sentido de culpa” (Schmitt, in Pilosu, 1995:12).

(…) os sermões enquanto discursos dirigidos a pessoas na sua maioria analfabetas eram literalmente constelados daquelas histórias curtas que são denominadas exempla, introduzidas para sublinhar uma passagem importante, para demonstrar a negatividade de alguns tipos de comportamento e  também, talvez, para chamar a atenção de um público cansado e distraído.

Os exempla são frequentemente retirados de uma tradição clássica erudita, quer seja uma tradição bíblica ou cristã, quer seja uma tradição popular mais ao gosto de um público rural. Assim, pela sua correspondência com a cultura do público, estas histórias pias, que relatavam factos milagrosos, desgraças, castigos divinos, com inúmeros  «topoi» releváveis na literatura hagiográfica  e nas histórias populares, eram facilmente assimiladas como modelos pelo auditório do sermão” (Pilosu, 1995:21).

“O principal papel que a  Mulher (Eva) tem no Antigo Testamento é o de «instrumentum diaboli», um instrumento que causa a perdição do género humano, resgatado depois pela descida do Salvador. O «motif» da tentação da carne personificada por uma representante do sexo feminino aparece desde as primeiras páginas do Génesis e constituirá o próprio núcleo da religião mosaica, de maneira que o «topos» da mulher enquanto instrumento diabólico será uma componente sempre presente na religião judaica e, depois, na cristã” (Pilosu, 1995:29).

“Uma vez mais, no Génesis, aparece um exemplo de tentação rejeitada por parte de um protagonista da história do Povo Eleito. A resistência de José às propostas da mulher de Putífar será um elemento determinante para o seu triunfo posterior em presença do faraó (Génesis 39, 7-23). A reacção do jovem hebreu provoca uma falsa acusação de estupro avançada pela mulher, que vê escapar o jovem superintendente do marido. O próprio pormenor da mulher que rasga as suas roupas para melhor simular o estupro atingiu a fantasia dos artistas medievais levando-os à representação realística de um jovem José que foge completamente nu das mãos da sedutora desiludida, que apenas consegue reter a sua túnica. (…). Mas há muitos outros heróis do Antigo Testamento que caem na armadilha da sedução feminina e, de entre estes, destaca-se como exemplo Sansão, que resgatará com o seu sacrifício e com a morte de inúmeros filisteus a sua fraqueza relativamente a Dalila, uma personagem que continua a figurar, juntamente com Eva, entre os exemplos de engano feminino citados pelos pregadores e pelos comentadores bíblicos (Juízes. 16, 4-31)” (Pilosu, 1995:29-30).

“Até o sábio rei Salomão, nos últimos anos da sua vida, sucumbirá ao fascínio da beleza feminina, rodeando-se de mulheres e de concubinas que o conduzirão, como instrumentos diabólicos que são, pelos caminhos da idolatria. O castigo de Jahvé será a divisão do reino de Israel entre Roboão e Jeroboão (I de Reis 11,1-13).  (…). Mas o Antigo Testamento não oferece apenas exemplos de personagens ilustres seduzidas pela graça feminina ou completamente surdas às propostas sexuais. O redactor anónimo do «Eclesiastes» compara a mulher ao laço do caçador, a uma armadilha que pode aprisionar o homem para toda a vida, exortando em seguida a evitá-la para se salvar do pecado (Eclesiastes 7, 26)” (Pilosu, 1995:30).

“Poder-se-ia perfeitamente argumentar que, tendo em conta todas estas referências ao perigo representado pela mulher tentadora, tudo isso se enquadrava perfeitamente no seio de uma concepção cultural na qual a mulher assumia um papel secundário, subordinado ao do homem (…)” (Pilosu, 1995:31).

“Um dos primeiros exemplos da tentação provocada pelo diabo transformado em mulher aparece na história da vida de Santo António, composta durante a segunda metade do século IV por Atanásio, bispo de Alexandria, e traduzida para latim nesse mesmo século. As primeiras tentações ocorreram logo durante a juventude do santo eremita, com o objectivo de o fazer abandonar a sua solidão voluntária. Depois da tentação da lembrança das riquezas e do amor dos seus progenitores, do dinheiro e dos prazeres do alimento, o diabo, derrotado, recorre finalmente à arma mais eficaz, como ele próprio afirma, relativamente aos jovens: a luxúria. E eis então os pensamentos sórdidos afastados com a oração, a «immunditia» enfrentada com o jejum e a fé; e o diabo tem de, por fim, chegar ao ponto de se transformar em mulher para o tentar seduzir:

O diabo, miserável, dispunha-se a transformar-se, de noite, em mulher e a imitá-la em todas as maneiras para seduzir António. Mas este, pensando em Cristo e tendo presentes, graças a Ele, a nobreza e o carácter racional da alma, extinguia as brasas da paixão e da sedução. // E uma vez mais o inimigo lhe recordava a suavidade do prazer, e ele, qual homem irado e atormentado, pensando nas ameaças e na dor do fogo e dos vermes, opunha-se ás tentações e passava ileso por elas. E tudo isto acontecia para vergonha do inimigo” (Pilosu, 1995:32-33).

“(…). Naturalmente, também os pregadores utilizam com muita frequência estes temas nos seus sermões, com o objectivo de mostrar a malvadez do sexo feminino e o poder da vontade perante as tentações, como acontece num sermão de Jordão de Rivalto:

Lê-se que um eremita, tentado pelo demónio que tinha vindo até ele com a aparência de uma rapariga, queima seus próprios dedos porque queria experimentar antecipadamente se conseguia suportar as penas do inferno. Porém, não conseguiu aguentar as dores dos dedos todos, e portanto disse: «Não quero este prazer», e a dor passava. E lê-se que era tão forte a tentação que aquele eremita suportava que ele aguentava a queimadura de alguns dos dedos até que a tentação cessasse.

Nas lendas hagiográficas, como também nos exempla, aparece, portanto, o tema do monge ou do eremita que utiliza métodos terríveis ou milagrosos para evitar as tentações e também para fazer desistir da sua obra de sedução a mulher que se aproxima dele” (Pilosu, 1995:61).

 

“A mulher, que permanece sempre junto do homem na natureza, peca sobretudo através do uso insensato do seu corpo, enquanto ao homem é censurado, como o pecado mais grave de entre os pecados capitais, o seu orgulho, a «Superbia», ou seja, a aspiração de se colocar acima dos outros e assim desafiar a autoridade religiosa e laica. Desde Eva que a luxúria é feminina; então que mérito pode ser maior do que aquele que se adquire ao libertar-se da mácula que conspurca todos os descendentes da primeira mulher (com excepção de Maria)? (…). Ao mesmo tempo, a Igreja oferece como modelos alguns homens que, sempre com a ajuda da providência divina, conseguiram esquivar-se das teias da sedução feminina tendo repelido, com sucesso, as tentações da carne e defendido a sua castidade dos ataques do diabo.

A Igreja perpetua desta forma um modelo cultural que vê na mulher sempre o perigo, a impureza e o agente de um enfraquecimento da qualidade espiritual do homem” (Pilosu, 1995:175-176).

 

Bibliografia

DUBY, Georges. (1996). As Damas do Séc. II. 3 Eva e os Padres. Teorema. Lisboa.

PILOSU, Mario. (1995). A Mulher, a Luxúria e a Igreja na Idade Média. Editorial Estampa. Lisboa.