Perder a alma

Publicado por: Milu  :  Categoria: PARA PENSAR, Perder a alma

hqdefault

“A minha presença neste universo é a de quem não foi convidado.”

Fernando Pessoa

No nosso dia a dia surgem-nos algumas  situações, por vezes desesperadas, que nos levam a considerar o aforismo popular, que nos diz que,  «se não os consegues vencer junta-te a eles», afinal um incitamento  para  vender-mos a alma ao diabo.

Mas o diabo é que nem para toda a gente é assim tão fácil dar esse passo. Por muito atraente que seja a recompensa, o certo é que uma pessoa sente que deixa de ser ela, perde o respeito por si própria. Pelo menos é isso que eu penso. E sinto. E não estou sozinha. Francesco Alberoni corrobora a minha tese. Está assim explicado porque nunca irei passar da cepa torta. Não sou dotada de xico espertismo ou de esperteza saloia.

“O pacto com o diabo”

“O que devemos fazer quando compreendemos que não podemos realizar o nosso ideal? Pormo-nos de acordo com o vencedor para procurar reduzir ao mínimo o dano, ajudá-lo a realizar o seu projecto a troco de vantagens para nós e para evitar represálias contra os nossos colaboradores? Ou será melhor recusar o compromisso, sacrificando as nossas comodidades e as dos que nos são queridos, para sermos coerentes, custe o que custar? O bom senso aconselhar-nos-ia o primeiro caminho porque na vida nem sempre se pode vencer e, acima de tudo, é preciso sobreviver. Todos nós conhecemos personagens que, depois de uma derrota, abraçaram logo a causa do vencedor, declaram-se do seu lado e extraíram disso vantagens sensíveis.

Em compensação, muitos dos que se mantiveram fiéis ao ideal acabaram por levar uma vida miserável. Pensemos, por exemplo, no nosso poeta Ugo Foscolo: declara-se com entusiasmo do lado dos Franceses em nome dos valores da liberdade, igualdade e fraternidade e pela independência italiana. Desiludido com o comportamento de Napoleão, critica-o e abandona Milão. No entanto os austríacos, ao voltar para Milão, tinham-lhe oferecido de novo a cátedra em Pavia e a direcção de uma revista.

Mas Foscolo  não tinha vontade de aceitar o governo austríaco. Parte inesperadamente para Inglaterra, onde vive um exílio voluntário, desconhecido e na miséria extrema, até à morte, ocorrida quando tinha apenas quarenta e nove anos.

Uma escolha desastrosa no plano humano. Se tivesse ficado em Pavia teria sido honrado, teria podido trabalhar igualmente pela unidade nacional.

No entanto, dito isto, não podemos deixar de perceber por trás da sua escolha uma profunda razão moral. Ficando teria justificado a ocupação estrangeira. Teria chegado a um compromisso não só com os austríacos, mas também consigo próprio.

E, de compromisso em compromisso, pode-se ir muito longe.

Recordemos o caso de Pétain.

Pétain era um grande general, o vencedor da primeira guerra mundial. Depois da derrota de França pelos alemães em 1940, é chamado a ocupar o cargo de presidente do conselho. Aceita, assina o armistício e procura um acordo com os vencedores para evitar males maiores. Porém, em pouco tempo torna-se um fantoche nas mãos de Hitler. Como acontece com Mussolini, quando adopta as leis raciais, ou quando cria a República de Saló.

Mas deixemos de lado os grandes personagens e os exemplos históricos e voltemos à nossa vida quotidiana. Eu chamo a este tipo de escolha «o pacto com o diabo». Exactamente como o Fausto que, em troca da juventude, promete a sua própria alma. Só que a nós não se apresenta, no momento da morte, um diabo a reclamar a nossa alma.

Hoje, perder a nossa alma significa perder a nossa clareza, a nossa dignidade, a nossa liberdade.

Nós perdemos a nossa alma quando renunciamos aos nossos sonhos e aos nossos ideais por medo, ou por avidez de dinheiro e de poder. Quando escolhemos um caminho no qual já não teremos coragem de voltar para trás, sendo forçados a aceitar, um após outro, qualquer compromisso e qualquer humilhação.

Quer dizer, qualquer mentira. Até já não sabermos quão fundo caímos. Até já não sabermos quem somos.”

Bibliografia

ALBERONI, Francesco. (2000). Tenham Coragem. Bertrand Editora. Venda Nova. pp. 30-32.