O diabo que escolha!

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, O diabo que escolha!

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“A alma sensível é como harpa que ressoa com um simples sopro.”

BEETHOVEN

Violência

Mais do que nunca este é um tema actual. Volta e meia surge a notícia. Um aluno fez e aconteceu à professora, agrediu, faltou ao respeito e assim sucessivamente. Como não poderia deixar de ser, logo  se ergue um coro de vozes, cada uma aventando as suas razões e dizendo de sua justiça. Há quem chegue ao descalabro de vaticinar grandes males ao mundo por via destes jovens insurrectos, que possuídos de ímpetos destruidores não respeitam nada nem ninguém. Condeno, obviamente, qualquer violência exercida sobre os professores venha ela de quem vier, não esqueçamos os maus exemplos de que alguns pais já foram notícia, porém, esforço-me continuamente para julgar estes casos à luz da mudança dos tempos. Nunca nada permanece inalterável! Violência sempre houve! Não sofro de qualquer maleita susceptível de me encurtar a memória, lembro-me perfeitamente do passado e de como era então. E não era melhor, não senhor! A violência era o pão-nosso de cada dia! Oh se era! Com a diferença de que esta era infligida às crianças pelos adultos. Sempre que a este respeito estabeleço um paralelo de comparação entre os tempos idos e os de agora, dou por mim sem saber o que será melhor, é caso para dizer que venha o diabo e escolha!  Se pensam que hoje há violência nas escolas e que antigamente não havia, então leiam:

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Tempos houve em que bater nas crianças foi considerado um bom método para as educar. Pai e mãe, que regularmente não chegassem a roupa ao pêlo dos filhos eram comummente criticados pela vizinhança, que com refinado gosto se deitava a adivinhar os mais sombrios desígnios – que fulano e sicrana qualquer dia não faziam nada dos filhos e por aí adiante. Para reafirmar tamanha verdade lá vinha alguém dar uma achega e citava o velho adágio, “De pequenino se torce o pepino”, no que era prontamente assentido com circunspectos acenos de cabeça, tão ao gosto dos conceituados e responsáveis adultos. Naquele tempo, sempre que um amigo nosso acolhia uns bons açoites, o melhor que tínhamos a fazer seria tão cedo não cantarmos de galo, provavelmente não iríamos rir durante muito tempo, logo chegaria a nossa vez, qualquer coisinha e, zás, uma lamparina ou costa de mão aplicada com intrépida genica por um qualquer dos progenitores. Não raro as crianças assistiam-se reciprocamente a dolorosas cenas de pancadaria. Recordo-me de ter sido testemunha de um valente arraial de porrada que um vizinho deu no filho e de este se enfiar para debaixo da cama, numa desesperada tentativa de escapar às mãos do inclemente pai. Furibundo, o pai pegou numa vassoura e, tal como quem pica a loca de um grilo, arremessou em contínuas investidas a ponta do cabo no encolhido corpo da próprio filho, que se espremia o mais que podia contra a parede do outro lado da cama. Fiquei bastante impressionada, levei alguns “tareões”, pois levei, mas destes assim não, graças a Deus!

Com o meu pai estava eu à vontade, podiam ir junto dele para lhe fazerem queixas de mim, que de nada valeriam. Simplesmente não me batia! Fixe, “paizão”! O mesmo já não posso dizer da minha mãe, (está perdoada, há muito)  sacudiu-me o pó bastantes vezes, lá isso é verdade. Tal como uma praxe, tive direito aos meus enxertos de pancada, umas vezes com uma vergasta feita de um ramo de abrunheiro, meticulosamente limpo de folhas e rebentos, outras vezes com a colher de pau no rabo, que a seguir, num acesso de raiva, eu fazia em duas, ou até com a escova de esfregar o chão de cimento da cozinha! Com a mão não! Doía-lhe mais a ela do que a mim! Eu era rija como um corno! Parecia ter mais ossos do que carne! Pudera, era irrequieta, brincava muito e comia pouco. Ainda não havia chocapic e bolicaos. Um bocado de casqueiro, pão grosso, barrado às três pancadas com Planta e um copázio de água do poço para ensopar e já vais com sorte! De maneira que sem acepipes para me alambazar, não tinha hipótese de deixar de ser um feixe de ossos!

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A violência na escola, da parte dos professores, era na altura considerada absolutamente normal, a maioria das vezes batiam nos alunos com o consentimento dos pais. Era uma espécie de continuação do tido como bom método educativo! Quando frequentava o 2º ano do Ciclo Preparatório, num maldito dia a professora pediu a um dos alunos cujo pai possuía uma serração, para lhe arranjar uma régua, a antiga havia misteriosamente desaparecido. Passados que foram dois dias, o rapaz, constrangido, levou para a escola um belíssimo e digno exemplar, um primoroso trabalho de profissional, arestas e superfícies cuidadosamente polidas, pesada e consistente! Metia respeito, o raio da régua! Logo se instalou um burburinho, que foi crescendo obscena e desmesuradamente – qual de nós iria ser condenado a tirar os três à majestosa régua? Vendo bem, todos ansiavam por um momento de puro sadismo! É  sempre assim, com o mal dos outros podemos bem!

Claro! Estava-se mesmo a ver quem havia de ser!

Eu! Esta infeliz! O destino, caprichoso, achou por bem, que fosse eu a sofrer a desdita de inaugurar a maldita régua!

A professora detinha também o cargo de directora, pelo que era frequente abandonar a sala de aulas para proceder a trabalhos pelos quais era responsável. Nessas alturas costumava deixar uma miúda de atalaia, para ver quem se atrevia a falar na sua ausência. Para nos deixar entretidas ordenou que fizéssemos uns determinados exercícios de matemática. Atirei-me com fulgor à tarefa mas, mais à frente, fui impedida de prosseguir, encalhei com uma qualquer dificuldade que não estava a conseguir ultrapassar. Espontaneamente voltei-me para trás, para indagar se a minha colega estaria com o mesmo problema. Apercebi-me, então, que devido ao meu entusiasmo tinha quebrado a ordem de não falar. No quadro preto figurava já o meu nome! Porém, acalentei a secreta esperança de que a professora fosse compreensiva, porque, afinal, tinha falado sim, mas por razões válidas!  Infelizmente não foi isso que aconteceu! Antes pelo contrário! Pareceu-me que estava divertida! Aliás, todos estavam divertidos e aliviados também, devido à consciência de que, felizmente, tinham escapado ao tão terrível fado – estrear tão ameaçadora régua. Já havia uma vítima, finalmente!

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Com o coração pequenino, apertado de tão cheio de angústia ouvia claramente os risinhos abafados das minhas excitadas colegas… e via-lhes os olhos brilhantes… olhei suplicante para a professora, mas esta, de todos era a mais radiante! O que isso me doeu, meu Deus! Quantas foram as réguadas, não me lembro… sei apenas, que a humilhação quase deu cabo de mim! Desenvolvi pela professora um ódio visceral! Passei noites e noites sem dormir. Sonhava acordada, a magicar uma forma de mitigar a minha infinita revolta e a humilhação que me trazia profundamente envergonhada! A caminho de casa, a professora teria de passar por debaixo de uma frondosa árvore. Quantas vezes me imaginei, envolta e dissimulada por entre o intenso folhedo, armada de uma pedra bem consistente ou um tijolo e cheia de raiva deixá-lo cair naquela tão odiada cabeça! Ter que conviver todos os dias com esta professora, que demonstrava prazer em humilhar os alunos  foi para mim um tormento!

Quase no fim do ano, à beira de abandonarmos definitivamente aquela escola, esta professora teve a distinta lata, a falta de vergonha e um imenso descaramento de nos inquirir individualmente, perguntando qual a professora, que nos seis anos de escola mais tínhamos gostado! Mentirosas e falsas como Judas, as minhas colegas afirmaram ter sido ela, pela parte que tocava  antes preferia  que me   cortassem a garganta do que proferir semelhante aleivosia, ainda para mais não sendo verdade! Até porque a dignidade é um sentimento pelo qual sempre nutri um grande apreço. Bajulice deste calibre não, nem que me amargue a boca! Disse-lhe qual a professora que mais tinha gostado e  da qual nunca me iria esquecer! Despeitada respondeu-me: – Era bem fraquinha essa professora.

E isto dizia-se? Se era fraquinha  não o  sei – só sei que nunca me bateu!