Aquele que havia de ser um dia especial!

Publicado por: Milu  :  Categoria: Aquele que havia de..., FLAGRANTES DA VIDA

comunhao

“A verdade é a melhor camuflagem. Ninguém acredita nela.”

MAX FRIESH

A história que vos trago hoje jazia adormecida no mais recôndito da minha memória, não fosse o livro que presentemente tenho em mãos e com o qual há uns dias me entretenho no vale dos meus lençóis, que é precisamente o lugar e o momento em que mais gosto de ler. Lá, no silêncio do meu quarto, sem ninguém  a “chatear-me” a molécula,  viajo por esse mundo fora. O meu espírito leve e despreendido vagueia, bem longe do espaço físico que me rodeia! “Até onde se pode ir” do autor David Lodge foi o livro que fez despoletar em mim a reminiscência de um acontecimento da minha vida que, durante alguns anos, fez mossa  na minha meninice.

Este livro traz-nos  o  relato da vida de um grupo de jovens pertencentes à Juventude Universitária Católica que frequenta a igreja Nossa Senhora e São Judas,  com a missão de estudarem e aprofundarem os ensinamentos do Novo Testamento. A acção desenrola-se no Reino Unido, desde a  década de 50 até ao final da década de 70 e dá-nos conta das dúvidas, angústias e incertezas sentidas por este grupo de jovens, a quem foi ensinado que tudo ou quase tudo é pecado.

Pois bem, mais não foi preciso para que a minha recordação irrompesse das profundezas do limbo em que marinava desde o dia da minha Primeira Comunhão. Eis então a demonstração de “até onde se pode ir” quando somos puros, inocentes e sem mácula.

Durante os dias que antecederam a preparação para a minha Primeira Comunhão foi-me feita a mim e aos meus pequenos coleguinhas, a advertência de que uma vez tomada a hóstia nunca deveríamos tocar-lhe com as mãos, sob pena, se lhe tocássemos, de cometermos um pecado mortal, visto que a hóstia consagrada era o mesmo que o corpo de Jesus. Eu lá ia ouvindo estes insistentes avisos, aborrecida com tanto bater no ceguinho.

Já todos sabíamos que não podíamos tocar na hóstia e nem compreendia o porquê de tanto afinco nas recomendações.  E depois, quem é que ia tocar na hóstia e para quê? Afinal?

O sábado, véspera do Domingo especial, foi inteiramente dedicado às  crianças da Primeira Comunhão. Procederam-se às  confissões  e estava estipulado que, no final da tarde, iria haver uma missa na qual o padre daria a todas as crianças a comunhão, mas, com hóstias não consagradas. Pretendia-se com esta acção preparar os miúdos para um primeiro contacto com a hóstia.

Tal como vinha sendo habitual há muito tempo, sempre que isso fosse possível,  escapulia-me de ir à missa. Furtar-me à catequese era mais difícil, davam logo pela minha falta, a minha mãe disso tomaria conhecimento tão breve quanto demorava dar um sopro, mas, faltar à missa era relativamente fácil. Ninguém podia afiançar, com certeza, que não me encontrava presente. No meio do povo podia muito bem passar despercebida, encoberta por alguém mais corpulento, deste argumento me serviria eu, se visse o caso mal parado. Porém nunca tive problemas em faltar à missa, pelo que normalmente não me fazia rogada. Assim que se avizinhava uma oportunidade de  me sumir não a descurava, há muito que ansiava por ela. Preferia mil vezes andar pelas ruas sozinha, saltar um muro aqui, acolá um lance de escadas ou mesmo sentar-me, a queimar tempo, num qualquer banco de jardim, do que permanecer num lugar que não me era aprazível, nem os cheiros!

As velhotas, quem mais povoava o interior da igreja, incomodavam-me. Exalavam um odor característico, misto de aroma a naftalina e cera  ardida. Antigamente havia o chamado fato domingueiro, a mesma vestimenta servia para ir à missa, aos funerais,  procissões, enfim, raramente era limpa, tornando a indumentária  um  autêntico absorvedouro de odores com as mais diversas origens!

Missa perdida, arruinada, portanto, a oportunidade de  tomar pela primeira vez a hóstia não consagrada. Paguei caro por esta minha obstinação, de não querer assistir à missa, sossegada e bem comportada como as outras crianças!

igreja

No Domingo de Comunhão lá fui com a minha mãe para um acontecimento que costuma ser muito importante na vida de qualquer criança, todavia, para mim, mais não representava do que a concretização da vontade da minha mãe, principalmente, porque pelo meu pai tanto se lhe dava como se lhe deu. Devo dizer que, se fosse por minha  determinação, não me submetia àquele teatro, durante dias a fio sofri tormentosas ânsias, treinei exaustivamente perante o espelho do guarda-fatos, até que ponto deveria abrir a boca e estender a língua para acolher a hóstia, temia escancarar a boca  demais, tal como tinha visto o meu irmão numa fotografia, de língua tão estendida que esta mais parecia um sardão, por outro lado se não abrisse o suficiente, podia ter o azar da hóstia cair ao chão! Enfim, tudo cuidados que seriam dispensados se não tivesse de cumprir aquele ritual.

Chegou a minha vez de receber o Senhor. Abri a boca timidamente, fazendo  minuciosos cálculos  fui estendendo a língua, recebi a hóstia, que de imediato se me agarrou ao céu-da-boca como uma lapa! Voltei ao meu lugar, com a minha mãe atrás de mim. Ternurenta, apoiava as suas mãos sobre os meus ombros. Inesperadamente  senti o meu braço  a elevar-se. Tal como se obedecesse  a uma força oculta levei um dedo à boca, com o qual descolei a hóstia.

Subitamente caí em mim, perfeitamente ciente do acto infame que tinha  acabado de cometer, do qual tanto fui avisada, para não fazer!

Senti-me desgraçada e possuída pelo demónio.

E agora?

Longe de mim, a  ideia de confessar tão abominável pecado, foi logo o que pensei.

Para meu espanto a seguir houve um lanche para as crianças, julgo que nem a minha mãe dele tinha conhecimento. Ela é muito desligada do mundano, mas eu não era. Rejubilei.

doces

Enquanto comi dei tréguas ao meu sofrimento pelo pecado cometido. Não me recordo de mais nada a não ser que via bolos e pudins por todo o lado. Durante uma eternidade  não dei parança ao braço que empunhava a colher. Enfardei até mais não conseguir. Tive o cuidado de aproveitar a ocasião caída dos céus para tirar  a barriga de misérias,  já que lá em casa, ao jantar, o mais certo era que me esperassem as costumadas couves com feijões. Assim como assim, com um bocadinho de sorte, ainda teria bolos e pudins na barriga para digerir. Nem todos os dias  temos oportunidade de lograr destas benesses divinas.

Finalmente, depois de ter dado um considerável desbaste nas doçarias, tive tempo para pensar e de novo tornei a sentir  a angústia, que me  inundou o peito. O coração de súbito bateu mais rápido,  amargurado. Imaginava a minha alma em pecado, por isso feia e preta!…

Porém, guardei este segredo dentro de mim a sete chaves. De cada vez que me confessei sofri horrivelmente, sabia que havia de dizer TODOS os pecados mas disso não me atrevia. Tal como quem empilha pratos sentia-me a empilhar pecados sobre pecados. Pecava por não  confessar em devido tempo que tinha tocado na hóstia,  como na próxima  vez também não confessava, mais pecava. Sentia-me a viver pecaminosamente, a acumular na alma impurezas sobre impurezas. Sentia-me mal e andava mal.

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Todavia, mal cheguei à idade  da adolescência, este estado angustiado desvaneceu-se miraculosamente, tal como uma nuvem se dissipa perante um radiante dia de sol! E o mundo deu vida a outros mundos! Tanta coisa para experimentar e para viver!

Num dia qualquer, quando já não frequentava a Igreja soube, por acaso,  que  num determinado Domingo festivo, a comunhão foi  dada aos paroquianos pelo padre e por  um séquito de senhoras que se prestavam a dar-lhe uma ajuda.  Fiquei aturdida com o choque! Então agora, o padre aceitava pôr as hóstias, o santo corpo de Jesus, nas mãos impuras de  uma qualquer  lambisgóia, que até era o caso? Senti nascer dentro de mim uma onda de indignação! Tanta amarga pena  sofrida em vão.

Estava dado o golpe de misericórdia no que constava a religião na minha vida!

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