Desencantos da minha infância

Publicado por: Milu  :  Categoria: Desencantos da minha ..., FLAGRANTES DA VIDA

Há quem passe por um bosque e só veja lenha para a fogueira.

LEON TOLSTÓI

Em seguimento ao post anterior, no qual relatei uma lamentável situação bem reveladora do quanto o comportamento de um adulto pode ser indecoroso em relação às crianças, e tanto mais indigno quanto mais indefesas as crianças se lhes afigurarem, eis-me aqui, pois, para lhes dar a conhecer mais alguns destes casos, mas agora relatados na primeira pessoa, o mesmo é dizer que se passaram comigo.

Tinha de ser, pois claro!

Foi num tempo em que era ainda muito menina. Lembro-me que frequentava a escola primária e que durante as férias grandes,  ou ainda, esporadicamente em outras ocasiões, foram muitas as vezes em que me acolhi na casa de um casal de meia-idade, meus vizinhos, num arremedo de fuga ao desamparo e vazio de gente que era o meu triste lar, já que os meus pais se ausentavam durante todo o santo dia, mergulhados na faina do seu trabalho, arrebanhando com suor e sacrifício os parcos proventos essenciais à sobrevivência da família.

Não é que eu gostasse destes vizinhos para minha companhia, nunca perto deles me senti particularmente bem, mas, foi o melhor que se pôde arranjar naqueles tempos de penúria e de bisonhice mental. Ao menos lá, na casa deles, pude sentir o calor humano que chegava até mim através da televisão, na qual me foi possível ver algumas das bonecadas e filmes da época. Desgraçadamente, nem tudo para mim foram rosas naquela casa! Porque nada lá me foi dado! O direito a permanecer na pequena saleta, sentada defronte da televisão, conquistava-o eu, à custa de abnegadas prestações de serviços solicitados pela dona da casa, alguns bem custosos, diga-se em bom abono da verdade. No fundo, entre nós havia-se estabelecido uma simbiose perfeita. Primeiro ajudava-a nos afazeres domésticos e também saía à rua para lhe fazer alguns recados, entretanto, era chegada a altura em que era dispensada para, finalmente, me sentar defronte da televisão. E ali ficava durante horas esquecidas, absorvida pelo êxtase que a interminável sucessão de imagens em mim provocava! Só tornava a acordar para o mundo, quando já noite adiantada, a minha mãe me ia buscar, de vergasta disfarçada por debaixo de um dos braços, disposta a desferir-me umas boas bordoadas, como castigo por não me achar em casa quando ela, cansada, havia chegado do trabalho. Em tempos foi assim! Por tudo e por nada levava-se pancada, era para cedo torcer o pepino.

Uma das tarefas que normalmente fazia para esta senhora era arear as pratas da casa e toda uma cambulhada de berliques e berloques em metal que por lá infestavam, espalhados por cima dos móveis. Também costumava varrer-lhe os imensos terraços  em redor da casa, que no Outono se encontravam constantemente cobertos por folhas caídas das árvores, coisa que gostava imenso de fazer, já que andava por ali ao sol. Até aqui ainda a coisa ia tal e tal. Mas quando me chamava para a ajudar a fazer a cama, um angustiante frio de aço subia por mim até à ponta dos cabelos, que se me eriçavam encrespados. Depois de, uma de cada lado acabarmos de fazer a cama, era chegado o momento de eu deitar mão aos dois penicos, que se encontravam guardados nas mesinhas de cabeceira, para os ir despejar, não na casa de banho que para este casal era um museu a preservar, mas antes, para um buraco no quintal, que se destinava a reunir todos os tipos de dejectos para mais tarde fertilizar as sementeiras. Porque havia de ser eu e não ela, a carregar tão odiosos caldeiros? Nos quais, para minha infelicidade, de tudo havia! Quando digo de tudo, é mesmo de tudo aquilo que pode evadir-se do corpo humano, e, para melhor coroar uma das tão profícuas taças vai de o marido lhe despejar, para acrescento da mistela, um cinzeiro a abarrotar de beatas, que normalmente tinha em cima da mesa-de-cabeceira, já que fumava no quarto durante a noite, ou antes de adormecer, sei lá, sei apenas, que era sempre um cinzeiro completamente cheio.

Apesar da inexorável passagem do tempo ainda  me consigo imaginar naqueles tormentosos momentos em que acartava para a rua um penico de cada vez, não fosse o diabo tecê-las, e para minha infinita desgraça, escaparem-se-me das mãos e derramar os demónios. Tanto quanto o meu bracito podia, afastava de mim e do meu irrequieto olhar os malvados e asquerosos penicos e, naqueles infectos instantes, sentia nascer dentro de mim um profundo sentimento de desprezo por aquela mulher. Não fosse o temor de levar um arraial de porrada da minha mãe, como castigo pelo meu atrevimento, e um dia ainda teria dado um fim diferente àquelas penicadas.

Por agora fico-me por aqui, mas há muito que dizer acerca das minhas aventuras e desventuras com este casal meu vizinho… Prometo que não vão ser histórias de penicos, mas ainda assim, susceptíveis de enojar quem as ler, de tão deploráveis actos perpetrados logo numa criança …