Uma passagem de ano especial!
“A liberdade é aquela faculdade que aumenta a utilidade de todas as demais faculdades.”
IMMANUEL KANT
Já lá vão dez anos! O tempo passa, mas as vivências, essas, ficam, principalmente se tiverem sido especiais, tal como esta passagem de ano que me apresto aqui a narrar.
O fim da tarde do último dia de um ano, agora já tão distante, aproximava-se rapidamente, sem que eu e uma minha prima, vislumbrássemos uma forma aliciante de festejarmos esta data tão apetrechada de simbolismos. Tínhamo-nos separado de um grupo de colegas, com as quais pensávamos ir a um restaurante jantar e, depois, fazermos a passagem de ano no Império Romano, uma discoteca da zona. Porém, uma colega comum que integrava esse grupo, manifestou-se desagradada pelo facto de me fazer acompanhar pelo meu filho, que na altura não teria mais de oito anos. Na opinião dela, não havia cabimento para a presença de uma criança no nosso jantar de fim de ano. De imediato e sem qualquer constrangimento, afirmei que perante tais condições desistia do jantar, da discoteca ou do que quer que fosse! De mim, nem outra coisa seria de esperar! O meu filho, nunca e em qualquer circunstância estará a mais na minha vida, para todo o sempre seremos um para o outro, independentemente de todos aqueles que se cruzarem nas nossas vidas! Se uns vão, outros virão depois! Todavia, há os que para sempre permanecem, porque esses são verdadeiramente nossos! Pois que fossem para o jantar, que apanhassem todos uma monumental bebedeira, que fossem para a discoteca, que se divertissem muito, que disso não teria inveja, até porque sempre gostei muito da minha companhia, além de que não estava sozinha, tinha o pequerrucho, com o qual, por incrível que pareça, tinha conversas bem mais inteligentes e proveitosas do que com certos adultos! Assim que fiz saber, que já não estava interessada em sair com este grupo, a minha prima decidiu que também não iria e assim ficámos os três, eu, o meu filho e ela.
Fomos jantar a um restaurante chinês. O ambiente estava óptimo, todas as mesas se encontravam ocupadas de jovens casais, com uma única excepção – a nossa – já que éramos duas mulheres e uma criança. Mas nem por isso menos animada! Conversámos muito, jantámos bem e bebemos ainda melhor! Uma garrafa de vinho disputada entre as duas, nada mau, para começar! Entretanto saímos para a rua e uma verdade se impôs! E agora? O que fazer? Que destino dar à noite que ainda agora começava? Não obstante estarmos cientes, de que as alternativas não abundavam, a hipótese de irmos para uma discoteca estava fora de questão. Não era isso que fazíamos frequentemente, afinal? No fundo, eu e a minha prima estávamos imbuídas de um espírito que apelava para algo de diferente, uma experiência incomum, qualquer coisa que fosse digna de registo!
E foi exactamente isso que tivemos!
Nós duas, muito produzidas, claro, e o meu filho, deambulamos sem destino pela cidade deserta. Tão deserta, que nem se avistava vivalma! Esporadicamente um ou outro carro apressado fazia a sua aparição, mas logo desaparecia do nosso horizonte. Um frio instalou-se nas nossas almas solitárias! Parecia que estávamos os três sozinhos no mundo! Para onde tinham ido todos? Nas profundezas do nosso íntimo e sem que o confessássemos, censurávamo-nos a nós próprias! Tão descuidadas e inconsequentes havíamos sido, para acabarmos assim, sozinhas, logo num dia em que todos se divertiam! Pelo menos era assim que julgávamos toda a gente! Aproximámo-nos de um hotel e ali nos detivemos. Pelas grandes montras envidraçadas conseguíamos ver a recepcionista, já era alguma coisa, pelo menos além de nós, havia ali outro ser humano! Foi o suficiente para sentirmos algum ânimo e, a verdade seja dita, menos sós! Subitamente reparámos num rapaz que se aproximava, tinha um aspecto um tanto alienado, de pouco cabelo e todo ele de pé, como se tivesse acabado de sair da cama e usava uns óculos de lentes garrafais. Entabulámos conversa, indagámos se sabia de algum local para onde pudéssemos ir festejar o novo ano. Informou-nos que os pais tinham viajado e que se encontrava sozinho em sua casa, podíamos ir para lá, mas antes disso iria ver se conseguia arranjar uma garrafa de champanhe. Disse-nos que conhecia os proprietários de um estabelecimento e esperava que estes lhe fizessem a especial deferência de o atenderem, apesar do inconveniente da hora e… desapareceu!
Transidas de frio e angustiadas pela demora do suposto anfitrião, o qual, entre nós, apelidamos de cientista maluco, devido ao seu aspecto, optámos por entrar no hotel. Perguntámos à recepcionista se podíamos permanecer, comodamente instaladas nos sofás da recepção, já que estavam prestes a dar as doze badaladas. Como não havia meio do cientista maluco aparecer, por ali ficámos resignadas e pensativas. Qual não foi o nosso espanto, quando um belo espécime masculino, de nacionalidade francesa, que se encontrava hospedado no hotel e que já havíamos discretamente apreciado, se nos dirigiu empunhando uma garrafa de champanhe Moët & Chandon, que fez estoirar no pino das festivas doze badaladas, às quais brindámos animadamente. Entretanto, num curto espaço de tempo em que nos deixou a sós, aproveitámos para traçar um plano: ”Atracadas” no belo francês, agora sim, iríamos até à discoteca, onde presumíamos estarem a nossas colegas, para lhes fazermos inveja! Antecipadamente gozávamos já o impacto da surpresa. Para nos divertirmos demos em imaginar uma delas, que tinha tiques de sedutora, a pavonear-se e a arrastar a asa defronte do “nosso” belo Adónis! Todavia, o destino tramou-nos! Foi com grande desalento que constatámos que a “inofensiva” e discretíssima recepcionista nos tinha tomado a dianteira! Depois da meia-noite, no final do seu horário de trabalho, levou-o com ela!
Ainda ficámos mais algum tempo na recepção do hotel, a beberricar o champanhe. De repente saímos daquele torpor, já que tudo nos tinha saído furado, decidimos ir para casa, para a nossa confortável caminha, ao menos essa não nos traía, como sempre lá estaria à nossa espera, para nos acolher de braços abertos, por assim dizer.
No silêncio da noite apenas se ouviam os nossos passos que calcorreavam o caminho de casa, quando ao passar numa estreita rua, ouvimos vozes e uma porta que se abria, dirigimo-nos para lá, estávamos ansiosas para estar com gente. Era um bar gay! Empurrámos a porta que se encontrava entreaberta e entrámos. Ao fundo encontrava-se uma mesa baixa e corrida que ostentava diversos acepipes, chegámo-nos a ela e sentámo-nos nuns pequenos bancos. A fome apertava! O champanhe tinha aberto uma cratera nos nossos já desprovidos estômagos!
Timidamente, estendemos o braço até um prato recheado de croquetes. Pelo canto do olho perscrutámos alguma possível reacção negativa ao nosso ataque voraz, porém, a indiferença pela nossa presença era total. Parecia que nem tinham dado por nós! Continuámos no desbaste das iguarias e pedimos duas “minis”, que prontamente nos foram colocadas à nossa frente! E outras mais se seguiram, nem sei quantas, mas que apareciam, oportunamente, sem que as tivéssemos pedido. Eles, os homens, que se encontravam no bar, conversavam entre si, um deles trajava um longo vestido preto, era louro e bonito! Ninguém nos dizia nada, e lá fomos ficando, comendo e bebendo em silêncio, para não perturbar a magia do momento! Tudo parecia muito normal, como se já estivessem à nossa espera. Pela primeira vez, senti-me a viver num ambiente de perfeita irmandade. Havia um sentimento invulgar de aceitação plena. Ninguém apontava nada a ninguém. Naquele local não era sentido o mínimo sentimento de rejeição ou de curiosidade, tão usual noutros ambientes, nos quais se perguntaria, de imediato, porque andariam duas mulheres e uma criança perdidos na noite. Se estivéssemos num outro sítio, provavelmente estaríamos com as mesmas pessoas de sempre e a dizermos todas aquelas coisas de circunstância, balofas e carecidas de sentido ou de qualquer importância. Quis o destino que assim não fosse, e, nesse primeiro dia de um ano que há muito se foi, pude viver uns momentos onde o meu espírito se banhou de um maravilhoso e intenso sentimento de profunda paz, como se de um sonho se tratasse! Porque há coisas, que apenas são possíveis nos nossos sonhos!
Maio 24th, 2009 as 16:28
Do que se lembra a nossa amiga Milú.
Mais vale ficar com a nossa presença solitária do que acompanhada e tristemente só.
Fazer de conta é do pior!
Fazer de conta que são nossos amigos…
Fazer do conta que nos querem bem…
Fazer de conta que não incomodamos…
Fazer de conta que uma criança incomoda numa banal despedida de ano…ARRE!
Parabéns a ti e à corajosa prima. Podia ter sido tristonha a noite, podia… mas souberam tirar partido da diferença e isso preencheu-a. E de alguma forma ainda hoje te lembras dela e sorris da pequena aventura e da coragem de ficarem sós – apenas porque SIM!
Resto de Domingo bom
Maio 24th, 2009 as 16:50
Belíssimo comentário o teu, minha amiga!
Lembro-me de quase tudo o que vivi, em tudo consigo ver uma lição de vida, embora nem sempre aprenda como devia! Porque é assim que somos humanos! Na verdade eu não estava propriamente rodeada de amigos, mas de pessoas que se faziam passar por isso, facto que eu não desconhecia, daí a facilidade com que me descartei delas! Afinal fui premiada, porque os sentimentos que experimentei nessa noite são para sempre inolvidáveis! Estive há pouco tempo com a minha prima e falámos disto, porque já fazia intenção de fazer um post com este acontecimento. Rimo-nos muito e pude constatar que também ela tem uma recordação grata desta passagem de ano. Ambas sentimos igual em relação a esta experiência!
Também para ti um bom Domingo, quase findo, infelizmente!
Um beijo!
Maio 24th, 2009 as 19:24
Fins de ano… Recordações, muitas, muitas…
Deambulando pelas ruas da nossa capital, sem “cheta”
para festas, visita aos bordeis do Bairro Alto, comemorando no Hotel Dom you de Zaragoza, jantando no Tavares Rico, na Galiza, comendo numa mesa de cozinha colocada na sala, esta completamente despida de moveis (2008/09), o Zé achava que já batia o recorde. Agora num bar de gays, não lembrava o diabo.
Gostei do conto, isso gostei.
Beijocas
Maio 24th, 2009 as 19:59
Também já vivi algumas passagens de ano atribuladas, umas mais divertidas que outras, mas não é uma noite à qual ligue grande importância.
Maio 25th, 2009 as 0:20
Olá, Zé,
Também tenho outras recordações de passagens de ano, grandes jantares, bailes e muitas loucuras, mas esta foi especial e tão diferente, que quase me fez sentir num outro mundo ou noutra dimensão!
Beijinho!
Maio 25th, 2009 as 0:29
Olá, António Almeida,
O fim de ano é uma das datas, às quais progressivamente tenho vindo a deixar de dar importância, mas dantes não pensava assim. Actualmente, se for caso disso, nem saio de casa. Também não me faz falta nenhuma a grande bebedeira que se costuma apanhar nessa altura, nem considero interessante passar o primeiro dia do ano, com uma colossal ressaca e dor de cabeça. Eu gosto é de comemorar as minhas datas, aquelas que me dizem muito, pelo que elas para mim representam!
Maio 25th, 2009 as 14:19
episódios da vida que o tempo consome… afinal, viver é o mais importante, respirar…
abraço
Maio 25th, 2009 as 16:52
Olá martelo!
Ainda bem que muitos episódios deixam recordações gratas! As outras, as recordações menos boas, são para esquecer! 😀
Um abraço!
Maio 25th, 2009 as 20:00
Para começar a imagem inicial é um espanto! ((belos tons lilás) depois conseguiste despertar-me de tal maneira a curiosidade que quase atropelei as letras com a pressa de chegar ao fim…e para terminar fiquei cá com uma vontade de comer croquetes!!!
Beijinhos
Adorei
Maio 26th, 2009 as 2:14
Olá Lilás!
De facto usei as tuas cores preferidas para ilustrar e encabeçar este post! 😀
O post tem um texto que em dada altura faz parecer que resvala para uma determinada coisa e, afinal, resvala para outra, é mais ou menos assim!
Quanto aos croquetes eram realmente bons, tenho a vaga ideia de que demos cabo deles todos, e de outras coisas que por lá havia.
Beijinhos
Maio 26th, 2009 as 21:13
Li atentamente o post e não posso deixar de concordar que deve ter sido um vivência interessante partilhada connosco. Não sei se alguma das suas habituais visitas é tendencialmente anti-gay. Porque efectivamente a vossa presença não os incomodou minimamente, portaram-se civilizadamente sem vos hostilizar o que até poderia ser compreensível perguntarem o que estariam ali a fazer três pessoas duas mulheres e uma criança absolutamente foram daquele contexto. Facto que vem provar que afinal eles, os gays, são tolerantes com as outras pessoas o que se calhar não acontece com situações inversas.
Maio 27th, 2009 as 12:50
Olá Raul!
O que me impressionou foi a naturalidade com que toleraram a nossa presença. Viram-nos entrar, sentar à mesa, começar a comer o que era deles e a beber e, ainda assim, continuaram na deles, a conversar uns com os outros, como se não dessem por nada! No entanto, tiveram sempre a preocupação de verificar quando é que já precisávamos de outra “mini”! 😀
É caso para dizer – atentos, mas discretos!
Maio 29th, 2009 as 22:19
Olá Milu
E finalmente vamos ter um fim de semana com sol e calor! espero que o teu seja cheiínho de coisas boas.
Bjs
Maio 29th, 2009 as 23:02
Bons são os dias que nos ficam para sempre na memória, os que não esquecem! Estes dias acontecem a qualquer um! Parabens pela descrição solta e sem pretenciosismos! A vida, contada assim, é uma curte!
Um abraço independentemente do calendário
Maio 30th, 2009 as 12:52
Olá Lilás!
Espero que este bom tempo seja para ficar, gosto muito do Verão, pois gosto! Um beijo e um bom fim-de-semana!
Maio 30th, 2009 as 13:02
Olá Pata Negra!
Faço questão de contar as cenas da minha vida, que por alguma razão, a minha memória foi guardando. É uma forma de partilhar o que me diverte, sim, porque me rio com muitas das minhas peripécias! Um abraço!