O eterno retorno
“Há uma parte de ti que dorme desde que nasceste, e o meu medo é que um dia destes sejas obrigado a acordar violentamente.”
José Saramago
Saramago. Outra vez. Todas as vezes.
O jeito que a alguns dá que os outros, que são muitos, creiam em Deus.
Dizia Voltaire mais ou menos isto: «A mim até me convém que o meu alfaiate creia em Deus, porque assim, por princípio, ele não me vai levar mais dinheiro pelos fatos que me faz; a mim até me convém que o meu merceeiro creia em Deus, porque assim, por princípio, não tentará enganar-me; a mim até me convém que a minha mulher creia em Deus, porque assim, por princípio, ela não me trairá».
E assim vamos vivendo, confiando numa justiça divina, que serve de freio para os mais afoitos. Mas porque será, que são sempre só os pobres a provar das implacáveis e divinas penas??
O eterno retorno – para bom entendedor, claro.
“Depois da terra, a primeira coisa de que Lamberto precisa é de um feitor. O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães. Convém que seja cão para conhecer as manhas e as defesas dos cães. Não se vai buscar um feitor aos filhos de Norberto. Alberto é Humberto, feitor é primeiro criado, com privilégios e benesses na proporção do excesso de trabalho que for capaz de arrancar à canzoada. Mas é um criado. Está colocado entre os primeiros e os últimos, é uma espécie de mula humana, uma aberração, um judas, o que traiu os seus semelhantes a troco de mais poder e de algum pão de sobra.
A grande e decisiva arma é a ignorância.
É bom, dizia Sigisberto no seu jantar de aniversário, que eles não saibam, nem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar,
que considerem e aceitem que o mundo não pode ser mudado, que este mundo é o único possível, tal como está, que só depois de morrer haverá paraíso, o padre Agamedes que explique isto melhor,
e que só o trabalho dá dignidade e dinheiro, porém não têm de achar que eu ganho mais do que eles, a terra é minha, quando chega o dia de pagar impostos e contribuições não é a eles que vou pedir dinheiro emprestado, que aliás sempre foi assim, e será, se não for eu a dar-lhes trabalho quem dará, eu e eles, eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que quis assim as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí à guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade.
Mas diga-me, senhora mãe, bate também a guarda nos donos do latifúndio. Credo, que esta criança não regula bem da cabeça, onde é que tal se viu, a guarda meu filho, foi criada e sustentada para bater no povo, Como é possível, mãe, então faz-se uma guarda só para bater no povo, e que faz o povo, O povo não tem quem bata no dono do latifúndio que manda a guarda bater no povo, Mas eu acho que o povo podia pedir à guarda que batesse no dono do latifúndio, Bem digo eu, Maria, que esta criança não está em seu juízo, não a deixes andar por aí a dizer estas coisas, que ainda temos trabalhos com a guarda.
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado.
Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros.
É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão.
é preciso que o homem esteja abaixo do animal,
que esse, para se limpar, lambe-se,
é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem as seus próximos.
Bibliografia
SARAMAGO, José. (1987). Levantado do Chão. Editora Caminho. 7ª Edição. Lisboa. pp. 72-73.
Novembro 24th, 2015 as 23:55
Ao pobre não era reconhecida a capacidade de ser inteligente.
E não lhe bastava ser pobre; tinha de parecê-lo! Era a sua condição! A sua sina!
E a higiene?! Credo! Coisa doutras castas! Pobre que é pobre, trabalha e anda sujo.
E hoje?! Ainda há castas?
– Saberá Vossa Excelência que sim!
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Os meus respeitosos cumprimentos. Beijinhos, Milu.
Novembro 25th, 2015 as 20:28
Olá Zé 😀
Antes de mais quero agradecer o teu comentário, e como não poderia deixar de ser, vou pegar numa das tuas deixas, para contar-te uma história, à boa maneira de antigamente 😀 Que as tenho para contar 😀
Disseste, no teu comentário, que ao pobre não bastava sê-lo, tinha também de parecê-lo.
Pois tens razão. Muita…
Aconteceu com a minha mãe, que andou parte da sua vida a servir, como criada, que era, como tu muito bem sabes, como se designava antigamente o que hoje chamamos de empregada doméstica. Uma vez trabalhou para uma senhora em Leiria, que exigia, que quando saíssem de casa, para passeios ou outras andanças pela cidade, a minha mãe seguisse ligeiramente atrás dela e… descalça.
Ainda há bem pouco tempo tive com ela esta conversa. Ela então, ficou uns momentos calada, a fitar o vazio e disse: “E se eu tinha uns bons sapatos, filha!”
Isto é, a minha mãe até tinha o que calçar nos pés. Uns bons sapatos, segundo ela, mas para a patroa era urgente que as condições sociais ficassem ali bem demarcadas.
Ao passear-se pela cidade com uma rapariga na sua retaguarda e descalça, dava a entender a quem as visse, de quem era a patroa e a respectiva serviçal.
Ora isto mete nojo.
Perguntei. Mas porque é que você aguentou tanta humilhação sem ao menos uma pequena vingançazita (eu já a magicar no que faria se fosse eu), para acalmar os ímpetos, para se sentir mais apaziguada?
Diz-me ela, o que tantas vezes lhe ouvi: “Eram outros tempos. Se eu tivesse tido algum gesto mais atrevido ganhava má fama, não teria mais quem me recomendasse e ficaria sem trabalho, sem ganhar mesmo o pouco que me ia chegando. Mas por vezes, quando me lembro destas e doutras, sinto uma dor tão grande!”
Que dor? Perguntei. O que sente?
“Pena de mim” – disse-me.
E eu fiquei muda. O que se diz numa situação destas? Uma vulgaridade qualquer, enveredando pelos lugares comuns?
Fiquei em silêncio.
É por isto, também, que eu gosto e entendo Saramago. Que nos diz, que enquanto compactuarmos com situações destas, não haverá missa, hóstia, pai nosso, avé maria, nem acto de contrição que nos salve. Tudo isso passa a ser uma macacada.
Beijinhos Zé! 😀
Novembro 26th, 2015 as 3:39
Olá, Milu
A criada tinha a obrigação de parecer “criada”! Coitada da patroa, cheia de inveja!
Tal comportamento espelha, dalgum modo, a política do Estado Novo. A propósito e sem mais delongas, transcrevo a lição da pág.75 do antigo *Livro de Leitura para a 3ª classe do Ensino Primário Elementar – aprovado oficialmente, Editora Educação Nacional* de António Figueirinhas:
“O QUE É UM CRIADO
Um dia em que meu filho Pedro tinha tratado com sobrançaria um criado, fiz-lhe notar que eu, seu pai, dava sempre provas da mais respeitosa amizade à nossa velha criada Catarina.
– Ora! – replicou ele – Catarina não é uma criada em nossa casa.
– Então, que é um criado?
Ele coçou na cabeça e, por fim, respondeu:
– Diga-me o Papá o que é!
– Um criado é um operário a quem se paga por mês ou por ano para exercer na casa cinco ou seis ofícios muito difíceis, nenhum dos quais tu nem eu sabemos fazer. Experimenta, apenas, mudar uma vez os pratos, logo à noite, quando jantarmos.
Ele tentou isso, mas fez tolice sobre tolice; quebrou alguma louça, deitou nódoas e acabou por desistir…
– Imagina, por um momento – disse-lhe eu então – que tu eras obrigado a fazer uma cama, a esfregar um soalho, a engraxar o calçado, a escovar fatos, a limpar do pó os móveis, a lavar os espelhos e as vidraças, a afiar as facas, a polir os pratos, a lavar a louça e a cozinhar.
E, todavia, em dez casas de família da classe média há nove em que todos esses trabalhos tão diferentes são feitos por uma única pessoa, que se chama criada para todo o serviço. Em casa de meus Pais, Catarina foi uma dessas criadas; e, além disso, muitas vezes fez de enfermeira, arriscando a vida pelos doentes. Aí tens porque a estimo e respeito muito.”
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Tratando-se dum texto pretensamente moralizador, o protagonista pai é manipulador e logo mente ao miúdo quando refere “cinco ou seis ofícios muito difíceis, nenhum dos quais tu nem eu sabemos fazer”. Em vez de “sabemos” devia dizer “queremos” fazer.
Mais adiante, gaba-se de fazer parte da elite dos nove que “em dez casas de família da classe média” manda fazer tudo a uma só pessoa a quem, sem qualquer pudor, chama “criada para todo o serviço”.
E conclui, rematando para o miúdo: “aí tens por que a estimo e respeito muito”!
Ai, respeita, respeita!
Por aqui me fico.
Beijinhos, Milu. 🙂
Novembro 26th, 2015 as 19:23
Magnífico comentário Zé! Na verdade, se atentarmos nas mensagens ou lições de moral dos livros escolares e de histórias para crianças, encontraremos sempre pormenores, que traduzem conceitos, que uma vez desconstruídos deixam-nos a pensar. É que uma coisa é o que se diz, que até fica muito bem dizer, e outra coisa é aquilo que se vai fazendo. Nem sempre coincidem, por vezes, as mais das vezes, nalguns casos, o que se pratica é a antítese do que se propala, do que se defende 😀