E a saga continua…
“Se você não contar a verdade sobre si mesmo, não pode contar a verdade sobre as outras pessoas.”
VIRGINIA WOOLF
Quando publiquei o post anterior tinha a intenção de logo escrever um outro, onde vos daria conta de mais algumas atitudes perfeitamente reveladoras do carácter abjecto desta senhora, que tem vindo a ser protagonista das minhas mais recentes histórias, que insana, ainda tinha a veleidade de pensar, que era tida por todos quantos a conheciam, como o exemplo acabado de uma senhora fina, oriunda de uma casta superior e detentora de uma polida educação. No fundo o que eu pretendia mesmo era escrever uma história que servisse na perfeição de corolário para todas as outras, o mesmo é dizer que, de todas as histórias esta seria a pior, aquela que conteria factos ainda mais inconcebíveis, contudo, vou ter de adiar esse meu projecto, já que a Flordeliz, uma das minhas fiéis visitantes, num dos seus comentários ao post anterior, a propósito do recado em que eu acartava um malote cheio de laranjadas e outras bebidas, comentou que a meio da leitura ainda chegou a pensar que me teria atrevido a beber uma das laranjadas, o que me fez lembrar de uma outra situação, na qual e para meu infortúnio, mais uma vez fui uma inocente vítima da invulgar mesquinhez que caracterizava esta senhora.
Mas, a verdade seja dita: Se nunca me deu na veneta de beber uma das laranjadas foi tão-somente porque a isso nunca me senti tentada. Vendo bem até que me seria fácil, visto que a minha casa me ficava no caminho, teria aberto uma das garrafas com a velha e ferrugenta chave que de tão pouco uso jazia esquecida no fundo da gaveta, pois que, laranjada na minha casa só mesmo quando o rei fazia anos. Mas também sabia que o meu desplante e atrevimento me iriam valer um correctivo, que tanto poderia ser um valente par de açoites ou até mesmo, já não seria a primeira vez, uma violenta saraivada de chineladas aplicadas no traseiro, além de que, disso tenho a certeza, a minha mãe faria questão de pegar em dinheiro e pagar o meu estrago, o que me faria sentir duplamente culpada. Lá levar porrada era uma coisa, praticamente só dói naquela altura, mas fazer com que a minha mãe tivesse de gastar o pouco dinheiro que tínhamos, já era outra! Mas vamos ao caso que a Flordeliz me fez recordar:
Um dia houve em que pude testemunhar o quanto a sovinice e avareza das pessoas pode ser desprezível. Quanto a mim, as pessoas que assim são, deveriam ser emparedadas junto com todas as suas notas de banco, já que tanto gostam delas o dinheiro que lhe servisse de companhia para toda a eternidade.
Na altura eu já era uma adolescente de 14 anos, sei disso porque o meu pai havia falecido recentemente, o que nos fez a nós, à minha mãe e aos seus três filhos menores, mergulhar num mundo de dificuldades, foi um tempo em que quase tudo nos faltou. Não é de admirar, portanto, que de repente nos tivéssemos tornado no alvo das atenções das pessoas que melhor nos conheciam, ou que de alguma forma nos fossem próximas. Parecia que todas queriam dar o seu contributo, ajudando cada uma à sua maneira. Todavia e para minha infinita tristeza não demorei a compreender que as aparências iludem. Infelizmente o que as pessoas mais gostam de fazer, não é bem aquela ajuda com atitudes dignas e em tempo útil, o que se aprestam a fazer e de bom grado é a chamada caridadezinha, que não só não melhora as condições de vida de quem precisa, como em vez disso, chega a ser humilhante. Afinal sempre há alguma desconcertante verdade no adágio que nos diz que, “Santos ao pé da porta não fazem milagres”.
Pois esta senhora numa conversa com a minha mãe transmitiu-lhe a ideia de eu ir à sua casa para fazer uns trabalhos de limpeza, juntamente com outras duas senhoras que trabalhavam à hora, que me pagaria igual a elas, para eu poder ter o meu dinheirinho, já que agora era uma jovenzinha com todas as necessidades que isso implicava, que assim e que assado. E a minha mãe achou jeito àquela conversa, pelo que se esforçou para me convencer a aceitar, até porque se não fosse iria ser criticada, logo diriam que eu não queria trabalhar, que era uma mandriona e porque torna e porque deixa.
Lá fui! Pouco ou nada entusiasmada, é certo, mas com a esperança de que o dinheiro ganho servisse para comprar algo de que gostaria muito porque de necessidades estava eu inundada, já nem valia a pena pensar nisso, o que queria mesmo era uma coisa de que gostasse, que me servisse de verdadeiro alento e recompensa, como por exemplo um verniz de uma cor bem bonita para pintar as unhas ou um lápis preto para delinear os olhos, enfim, algumas daquelas coisas para as quais a minha normal vaidade de adolescente começara a despertar.
Calhou-me a ingrata tarefa de remover com um áspero esfregão de arame a cera velha do soalho da sala, da mesma sala onde tantas vezes me inebriei de encantamento ao ver as séries televisivas de então. Durante horas, que me pareceram uma dura eternidade, lá andei intrépida na desagradável penumbra da sala virada a norte, que ainda para mais cheirava intensamente a tabaco, suando as estopinhas e já profundamente arrependida de me ter metido naquela empreitada. Subitamente deram-me ganas de atirar com o esfregão para longe e largar o serviço, mas, em vez disso, apliquei-me ainda com mais fervor ao trabalho, esfregando com tanta força que quase arrancava farpas de madeira, ferindo ainda mais o já tão castigado pavimento.
Lá pelo meio da tarde ouvi-lhe a vozinha melosa com que habitualmente se me dirigia, a chamar por mim, para que fosse à cozinha a fim de retemperar as forças com o lanche que me havia preparado. Fiquei surpreendida com tamanha amabilidade que não era seu apanágio, mas não deixa de ser verdade que até as pessoas mais duras e secas são capazes de momentos de fraqueza, por isso foi com prazer e considerável alívio, já que aproveitei para descansar um bocadinho da rudeza da faina, que engoli uma sandes composta por um pastel de bacalhau dentro de um papo-seco e um pequeno copo de laranjada para ajudar a desembuchar.
Depois de lanchada foi com entusiasmo renovado que me atirei com assanhado fulgor à tarefa de que havia sido incumbida e que para minha infinita alegria já ia grandemente adiantada. Quando um pouco mais tarde dei por finda a tão penosa labuta olhei para o resultado do meu esforço e sorri maravilhada, apesar de me sentir derreada das costas. Afinal tinha valido a pena! Aquele chão que tanto me havia atormentado brilhava resplandecente, pois que, depois de removida a cera velha havia-lhe aplicado uma generosa camada de Dabri, (passe a publicidade, mas foi mesmo este produto que me recordo de ter usado). Finalmente e para meu grande contentamento era chegado o momento mais desejado, aquele em que iria receber o produto do meu trabalho, o dinheirinho que durante toda a tarde tantas vezes gastei em sonhos ditados pela minha imaginação.
Mas, eis que o insólito estava para acontecer!!! No momento de efectuar o pagamento da minha prestação de trabalho esta senhora resolveu dizer que não iria pagar-me igualmente às outras duas mulheres, porque estas, habituadas a trabalhar à hora, haviam sido mais lestas, como quem diz que eu teria andado o tempo todo a engonhar. Pareceu-me mal! Pois pareceu! Então, se assim havia sido, porque não se queixou antes? Se logo no início me tivesse acusado de estar a fazer ronha, e se eu entendesse que me estava a pedir demais, sempre podia ter largado o trabalho enquanto era tempo. Contudo deixei-me ficar calada apesar de imensamente desiludida. Tinha a nítida impressão de que estava a ser vilmente enganada, mas perante um adulto o que faz uma indefesa adolescente de quem todos se aprestariam a duvidar? Naqueles tempos um adulto gozava de mais credibilidade do que um qualquer adolescente, quanto mais eu, tornada tão frágil devido ao meu quase total desamparo.
Mas por incrível que possa parecer a avareza não se ficou por aqui, uma outra situação inédita aconteceu:
No auge da indecência, esta senhora fez-me saber que do montante restante que me haveria de pagar seria descontado o valor do lanche que eu havia tomado. Ao ouvir tamanha aleivosia fiquei sem fala! Era demais para mim. Então se nem sequer estava a contar com o lanche, de bom grado teria estado sem comer desde que recebesse o meu dinheiro!! A triste verdade é que com o meu esforçado e diligente trabalho paguei um pastel de bacalhau, que de bacalhau só tinha o nome, um papo-seco, que era mesmo seco, tinha pelo menos três dias e um diminuto e mísero copo de laranjada!..
Pois aqui tens Flordeliz, o episódio que tu me lembraste, quando referiste que ainda chegaste a pensar que num qualquer dos recados para ir comprar bebidas, teria mandado o temor do consequente castigo às urtigas e vá de emborcar pelo gorgomilo abaixo uma das deliciosas laranjadas! Escusado será dizer que este episódio ditou o fim da minha parceria nos trabalhos domésticos em casa desta senhora. Ninguém gosta de trabalhar para aquecer!…
Dezembro 7th, 2009 as 23:41
O trabalho infantil não é crime, uma criança deve ter o direito de ganhar para comer. Crime é o trabalho da criança não ser valorizado e o aproveitamento que fazem de ele ser para cumprir a primeira necessidade: comer.
As tuas histórias testemunham o que poucos escritores podem revelar com autenticiade: por regra são sempre filhos da senhora.
Um abraço do mesmo chão
Dezembro 8th, 2009 as 1:34
Meu Deus, já parecias o Oliwer Twist do romance de Charles Dickens.
Eu, eu… Eu não lhe fazia nada, porque uma criança não tem vós, obedece e pronto.
Com que então a “nina” andou a fazer cera?
pelo que contas, andas-te a retirar cera, o que não é a mesma coisa.
As outras trabalhadores, é que se negaram ao trabalho.
Tivesses ido ontem à Parede, ao encontro-almoço dos “Blogueiros” em vez de beberes laranjada terias bebido moscatel como aperitivo que o Zé fez questão de levar.
Bj.
Dezembro 8th, 2009 as 15:43
Que dizer que não tenha sido escrito no post?
Dezembro 8th, 2009 as 20:00
Desculpa minha cara amiga, mas face aos anteriores procedimentos dessa vizinha moralmente mal formada comestes-te o erro de voltar a dar-lhe oportunidade para te amesquinhar. E pelos vistos ela não perdeu a oportunidade que lhe proporcionas-te. É certo sendo adolescente acreditas-te nas boas intenções dessa mal formada criatura sem pejo em explorar uma adolescente, que merecia como reacção da tua parte dizer-lhe das boas e com a indignação o que não aconteceu. Este episódio agora narrado só te enaltece. Um beijinho
Raul
Dezembro 8th, 2009 as 21:33
Essa senhora fez-me lembrar o MR. Scrooge…
Que coisinha mais malvada e sem o menor sentido de humanidade!
Dezembro 9th, 2009 as 1:09
Olá Pata Negra!
Lembro-me que naqueles tempos era um pouco assim, não importava aos adultos se a criança era explorada, pois o que lhes parecia verdadeiramente importante era que a criança evidenciasse espírito para o trabalho. E depois achavam tudo normal, que a criança fosse explorada, que os pais lhe ficassem com o dinheiro, enfim, não eram reconhecidos os devidos direitos da criança.
A mim foi-me ensinado o dever do respeito pelo adulto, como se o adulto fosse uma entidade intocável, como se a todo o adulto fosse reconhecida uma conduta irrepreensível, algo que muito me confundia, pois já tinha a noção de que alguns eram uns escroques. Não imaginas o quanto me foi difícil convencer a minha mãe de que aquela senhora havia cometido um abuso sobre mim. É que a minha mãe tinha uma dificuldade enorme em aceitar que as pessoas nem sempre são correctas e que podem ser muito mal intencionadas, por isso esforçava-se por justificar os actos dos outros, às vezes até o injustificável. Não foram tempos nada fáceis para mim já que me era ensinado uma coisa e eu via outra bem diferente.
Um grande abraço.
Dezembro 9th, 2009 as 1:34
Olá Zé!
Neste caso Zé, nem sei bem se aceitei tudo aquilo por obediência. Eu estava era surpreendida com tanto descaramento. Julgo que a falta de vergonha daquela senhora me desarmou, de tão assombrada que fiquei. Então eu precisava tanto do dinheiro e ela estava a maquinar maneiras de me ficar com ele!!? Não é de se ficar aparvalhado? Claro que dentro de mim estava a nascer uma tremenda revolta e dizia de mim para mim que ela não me apanhava lá mais. Foi remédio santo!
Não sabia desse encontro dos blogueiros mas olha que não sou grande apreciadora de bebidas doces. Eu gosto é de vinho tinto, quando ele é mesmo bom antes não o quero provar, que é para não haver desgraças. Mas um moscatel para abrir caminho para uma lauta refeição calhava bem. 😀
Um beijinho.
Dezembro 9th, 2009 as 1:46
Olá António de Almeida!
Você ficou sem palavras, não foi? Também eu assim fiquei quando tudo aquilo me estava a acontecer! Queria-me ajudar porque agora como não tinha pai precisava mais, mas afinal estava mais interessada em ajudar-se a ela mesma. Mas uma coisa é certa: não foi para mim, nem foi para ela, ficou cá tudo! De cá ninguém leva seja o que for!
Dezembro 9th, 2009 as 2:06
Olá Raul!
A verdade é que desta vez foi mais para fazer a vontade à minha mãe. Ficar sozinha com três filhos para criar só com o ordenadito dela fragilizou-a muito. Para ela o pouco já era alguma coisa, em contrapartida o nada era mesmo nada, por conseguinte mais valia ter esse pouco. A questão da exploração a que fui sujeita extravasava a compreensão dela, porque entendia que se eu tinha pago, também tinha comido, logo não estava assim tão desajustado, mas não lhe passava pela ideia de que esta acção havia sido feita propositadamente, para que recebesse menos, até porque eu poderia ter ido comer a casa, que ficava a dois passos. Só anos depois é que a minha mãe começou a pensar verdadeiramente nas coisas e a saber analisar as situações com outro espírito, um espírito mais esclarecido. Foram tempos muito difíceis para mim, tive de lutar em muitas frentes. A ignorância que me rodeava foi uma delas!
Um beijinho.
Dezembro 9th, 2009 as 2:19
Olá mfc!
Uma vez quando ela estava a conversar com uma pessoa que por ali passara junto ao jardim da moradia, ouvia-a dizer: – Ah, eu e o meu marido gostamos de ter…
Este “ter” era muito abrangente pois significava que gostavam de amealhar, fosse a que custo fosse! Mas para quê tanta a sede se nem filhos tinham? O curioso é que neste casal eram os dois avaros!
Dezembro 9th, 2009 as 14:50
Sê bem aparecida.
Beijinhos
Dezembro 9th, 2009 as 19:25
Olá Lino!
Estimo muito que apareça por aqui. Embora nem sempre comente no seu blog, a verdade é que o entendo, basta-me para isso verificar o que publica no seu blog, aliás, esta é uma premissa válida para todos, porque também é assim que se pode conhecer quem está do outro lado!
Um beijinho.
Dezembro 9th, 2009 as 23:20
Senti-me culpada, por te fazer lembrar coisas tristes, mas…
Gosto da forma como as descreves e acima de tudo as tratas. Sem rodeios. Como merecem ser tratadas.
Não foi fácil. Marcaram a tua vida. Fizeram parte dela.
Mas como alguém diz: O que não nos mata fortalece-nos!
Retratas como ninguém a mesquinhez e a falsa bondade. Porque a viveste, porque a sentiste e porque a partilharam contigo quando passavas muito bem sem ela e sem sentir a sua falta.
Por momentos lembrei-me da minha mãe e da quinta onde vivíamos. Da sua saída da fábrica aos Sábados às 11 horas. De chegar cansada para cuidar dos filhos, da casa e ter um recadinho dos patrões da quinta “Maria a senhora pediu para ir lá baixo lavar e passar a ferro”…
Uso e abuso dos mais fracos (sabiam que vinha de trabalhar). Era empregada deles na fábrica, vivia na casa alugada da quinta e ainda trabalhava “a seco” sempre que lhes faltava uma empregada doméstica!
Ficávamos de barriga vazia à espera que a dispensassem para nos alimentar. E de noite, à luz de um lampião bem tarde lavava a roupa na água fria do tanque e ainda cuidava da casa. Sempre com medo que os “senhores” recebessem visitas (acontecia quase todas as semanas) e quisessem mostrar e entrar pela “nossa” casa dentro (nem pediam licença) e ela estivesse limpa e cuidada.
Isto conta a minha mãe. Eu era pequenita. E porque saímos de lá quando ainda tinha quatro anos, não me tocou a escravidão destas tarefas.
Este, foi o motivo principal para os meus pais mudarem de casa. O outro foi o meu pai ter emigrado e a minha mãe não se sentir segura com um ditador (habituado a ser dono de tudo, se me entendes…) por perto.
Beijinho
flordeliz
Dezembro 10th, 2009 as 0:16
Milu,
Muito interessante esta sua história, até mais que a outra.
Quando você disse “as pessoas que assim são, deveriam ser emparedadas junto com todas as suas notas de banco, já que tanto gostam delas o dinheiro que lhe servisse de companhia para toda a eternidade” logo me lembrei dos Faraós do antigo Egito, suas tumbas e suas Pirâmides…
Ainda acho que sua mãe deveria ter logo acreditado em você e ter ido ao seu auxílio cobrando o que lhe era devido áquela mulher mesquinha e maquiavélica.
Hoje no Brasil, o que ocorreu com você poderia ser classificado como exploração do trabalho infantil, o que, infelizmente, ainda ocorre muito por estas terras abaixo do equador.
Aqui conseguimos uma boa legislação recentemente, o ECA: Estatudo da Criança e do Adolescente. Trabalho para menor só se for na condição de menor-aprendiz ! Mas você bem sabe a diferença entre a legislação e a sua aplicação.
um bj e obrigado por compartilhar conosco mais uma de suas histórias de vida.
Dezembro 10th, 2009 as 2:37
Olá Milu
Fico contente por vê-la de volta. Já cá fazia falta. E, vai daí, brindou-nos logo com mais um texto fantástico desta “saga” cheia de peripécias! É impressionante o realismo com que descreve a sovinice daquela senhora, o cheiro a tabaco da sala e o trabalho desgraçado duma criança franzina, toda derreada, à mercê dum mundo cruel que lhe deu cabo da auto-estima. Ao rico não devas e ao pobre não prometas, mas às crianças, Senhor… Maldito esfregão!
Desejo-lhe um Feliz Natal.
Dezembro 11th, 2009 as 15:39
Olá Flordeliz!
Compreendi muito bem o que se passou com a tua mãe, pois a minha mãe nesse aspecto também tem muito que contar. E foi mesmo por causa de tudo o que ela passou que nem reparava no que faziam à filha, já que tinha vivido ainda muito pior. Para ela aquilo que eu estava a viver não era nada, se comparado com a sua experiência. Eu bem bradava, mas quantas vezes me dizia ela que a vida era assim, e esgrimia argumentos que mais não eram do que um apelo para que me resignasse e aceitasse as minhas circunstâncias de vida, como se fosse um grande pecado rebelar-me contra a injustiça. A minha mãe aos oito anos foi retirada da escola para ir trabalhar a troco de pouco mais de uma côdea de pão, provavelmente a intenção foi a minha avó ficar com menos uma boca para alimentar, tudo isto porque o meu avô a deixou, e foi para a capital na mira não sei de quê, se foi na mira de enriquecer falhou em grande medida, visto que passados catorze anos retornou para a mulher, mais pobre do que nunca, roto e andrajoso, com as solas dos sapatos atadas com arames ao peito do pé, contava-nos a minha mãe, e nós, os filhos, ríamos-nos a bom rir, só de imaginar aquela imagem, mas a minha mãe ralhava-nos porque não conseguia ver onde estava tanta piada, pudera!
Um beijinho.
Dezembro 12th, 2009 as 1:29
Olá Milu, não vou referir as saudades, porque também padeço de ausências, por isso dou-lhes valor, são sempre por boas causas e lucra sempre quem espera, como mais uma vez se comprova por este texto maravilhoso e sentido.
Ouvi alguém dizer há dias, creio que na rádio, conversa que apanhei a meio, que nisto da infância há dois tipos de pessoas, as que se esqueceram dela e afirmam que foi maravilhosa e a melhor altura das suas vidas, e outras que a têm bem presente e consequentemente a consideram uma passagem para a melhor altura das suas vidas, pois como poderia alguém ser absolutamente feliz suportando a tirania dos adultos quer no ambiente doméstico quer no ambiente escolar. Também não esqueci a infância, por isso concordo com aquele conceito, que já não sei copiar em palavras, só tenho pena de não ter chegado a saber quem as proferiu, mas não me teriam ocorrido melhores. Este texto é mais um belo exemplo disso mesmo.
Dezembro 12th, 2009 as 22:44
Olá José Rosa!
Penso que era o que muita gente gostava, isto é, levar o dinheiro e todos os bens para o outro mundo, mas se por um lado pode haver bastantes vantagens por se ter nascido num berço de ouro, por outro lado quando se morre tanto faz partir entalado entre quatro tábuas carunchosas como albardado num caixão de madeiras raras! Haja justiça!
A minha mãe nem sequer conseguia alcançar até que ponto é que esta senhora me explorava, já que ela viveu experiências ainda mais dramáticas do que as minhas. Muitas vezes só à distância que a passagem do tempo proporciona se torna possível analisarmos melhor uma qualquer situação ou circunstância da nossa vida. Eu sentia que esta senhora procedia mal comigo, sabia ver que as suas acções eram verdadeiramente desprezíveis, mas tudo isso aceitava por pensar que faziam parte da vida.
Um beijinho.
Dezembro 12th, 2009 as 23:00
Olá José Pinto.
Obrigada pelas suas palavras de incentivo! Para a saga ficar completa ainda falta mais uma história e o epílogo, por assim dizer. Depois dou por encerrado este capítulo tão profícuo da minha infância.
Também para si um Feliz Natal.
Dezembro 12th, 2009 as 23:42
Olá CybeRider!
Na minha infância nem tudo foi mau, pois liberdade tive quanta quis, brinquei muito, principalmente aquelas brincadeiras de rua, que se podiam estender pelo mato e pinhais afora, onde se fosse preciso era capaz de me enfiar em qualquer buraco, sem medo de bicharada, nem nada. Mas digo-te com todo o à vontade que é possível ter quando há a certeza de não estar a errar, que em regra as minhas relações com os adultos foram um tanto infelizes. Basta ler estas minhas histórias para se poder retirar essa ilação. Começou na escola… O que por vezes me inquieta é o facto de me lembrar tão bem destes episódios, diria, que já na altura eu sabia reconhecer a hediondez destes actos que aqui tenho registado. Tenho a impressão que aqueles que na infância foram muito protegidos também foram assim impedidos de viver em pleno, logo, um dia mais tarde, nada terão para recordar. Lembro-me da minha infância mas não tenho saudades dela.
Dezembro 13th, 2009 as 18:05
Milú
Esta história dói de tão real.Dói e envergonha porque todos fazemos parte desse painel quer como personagens activos quer como meros figurantes. Por isso todos somos responsáveis pela humilhação que relatas.
Querida, aceita um abraço apertado.
Dezembro 13th, 2009 as 21:22
Que saudades eu tinha dos teus escritos! foi com prazer que verifiquei o teu regresso, que vontade me dá de ter estado ao teu lado nestas alturas, de certeza te ajudaria a tratar da malvadez da senhora…
Bjs
Dezembro 14th, 2009 as 23:49
Olá Lídia!
Quando contei este episódio da minha vida, foi para além de outros também com o propósito de desmascarar aquele tipo de pessoas que a todos querem fazer crer nas suas boas intenções, quando na verdade só pensam nelas. Chegou a um ponto que me bastava ouvir a vozinha dela toda lamechas, como se fosse uma criança, para me pôr de atalaia, alguma estava para me aprontar… Tantas fez que acabou por ficar mal -vista nas redondezas. O próximo post desta saga disso dará conta.
Um beijo grande.
Dezembro 14th, 2009 as 23:58
Olá Lilás!
Muito obrigada Lilás, por todo o apoio que me tens prestado. Pois aqui ando de novo e espero divertir-te, enquanto não esgotar as minhas historietas de criança! 😀
Mas depois se verá!
Beijinhos.
Dezembro 24th, 2009 as 13:07
Venho retribuir-te os votos de Boas Festas. Com muita saúde, alegria e felicidade junto dos que te são queridos. Com um beijinho do
Raul
Janeiro 29th, 2010 as 17:39
Olá Milu,
O que aqui relatas, quanto a mim, não se trata apenas de avareza. Essa senhora, transportava consigo uma ânsia, pseudo-senhorial, recalcada por eventuais outras escravidões de que ela própria fora vitima.
A sua má formação, o desrespeito, a indignidade e o modo como te tratava, demonstravam um sentimento incontrolável de submeter os mais frágeis à sua existência autoritária mesquinha. Ela própria terá, eventualmente, sido miserável… Se ou não foi, era-o agora. Infelizmente, encontramos muitos que entendem que um dia se vingarão, nem que seja em quem será sempre muito mais digno que eles próprios. Principalmente, porque foram suficientemente superiores para interromper a cadeia de vingança.
Sabes que mais? Um lobo tem de rosnar. Se te lamber as mãos, vai te morder!
Um beijo Milu
Janeiro 30th, 2010 as 1:30
Olá Mário!
Parte da vida desta senhora nunca a cheguei a conhecer. Mas sei que não tinha família, ancestrais ou descendentes, isto é filhos. Chegou a ter um filho, mas este ou morreu pouco depois de nascer ou já nasceu morto, foi mais ou menos isto que ela nos contou. Tinha-se a ela própria como a fina flor da sociedade, porque tinha bens. Antigamente quem tivesse bens era considerado alguém de casta superior, ainda que não passasse de uma besta. Desculpa Mário, esta minha frontalidade, mas as coisas eram mesmo assim. Actualmente já assim não é, felizmente. Porque seja lá quem for, mesmo muito rico, se não tiver cuidado com a compostura arrisca-se a ser alvo de duras críticas através dos mais mediáticos meios de informação. No YouTube, por exemplo! 😀
Um beijinho