A caça às bruxas

Publicado por: Milu  :  Categoria: A caça às bruxas, PARA PENSAR

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“É melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão.”

 

 

Apontamentos retirados do livro intitulado “Um Mundo Infestado de Demónios” da autoria do cientista astrofísico Carl Sagan, um autor representativo da Terceira Cultura, que nos demonstra até onde pode ir a credulidade humana. E, já agora, até onde pode ir, também, a crueldade humana – o Homem lobo do Homem. Conhecer a História da Humanidade é estarmos de sobreaviso. Estão  a dar-se muitos acontecimentos que ainda há pouco tempo achávamos impossíveis. A estupidez humana não tem limites.

“As obsessões com os demónios começaram a atingir um crescendo quando, na sua famosa bula de 1484, o papa Inocêncio VIII declarou:

“Chegou aos nossos ouvidos que pessoas de ambos os sexos não se privam de ter relações sexuais com anjos do mal, íncubos e súcubos, e que estes, com as suas feitiçarias, encantamentos, sortilégios e conjurações, sufocam, matam, e fazem as mulheres perder os filhos que trazem no ventre.”

“além de provocarem muitas outras calamidades.Com esta bula, Inocêncio desencadeou um movimento de acusação, tortura e execução sistemáticas de inúmeras «bruxas» em toda a Europa. Elas eram culpadas daquilo a que o Santo Agostinho tinha chamado «uma intromissão criminosa no mundo invisível». Apesar de a bula referir equitativamente «pessoas de ambos os sexos», não é de surpreender que as perseguições tenham recaído sobretudo sobre raparigas e mulheres.

“Nos séculos seguintes, muitos dirigentes protestantes, apesar das suas divergências com a igreja católica, adoptaram uma posição praticamente idêntica. Mesmo humanistas como Desidério Erasmo e Thomas More acreditavam em bruxas. «Abandonar a ideia da bruxaria», disse John Wesley, o fundador do metodismo, «representa de facto o abandono da Bíblia».”

(…)

“O papa Inocêncio louvou «os Nossos queridos filhos, Henry Kramer e James Sprenger», que «foram nomeados, por carta apostólica, inquisidores destas depravações heréticas». Se «as abominações e enormidades em questão permanecerem impunes, as almas de muitos enfrentarão a condenação eterna».”

“O papa encarregou Kramer e Sprenger de escreverem uma análise completa, utilizando todo o arsenal académico de finais do século XV. Estes, com citações exaustivas das Escrituras e de eruditos antigos e modernos produziram o Malleus Maleficarum, o «Carrasco das Bruxas» – apropriadamente descrito como um dos documentos mais terríveis da história da Humanidade. Thomas Ady, em A Candle in the Dark [Uma Luz na Escuridão], acusou-o de serem «doutrinas e invenções torpes», «mentiras horríveis e coisas impossíveis», que serviam para esconder «a crueldade ímpar [dos autores] dos ouvidos do mundo».

O Malleus resume-se, em grande medida, à regra de que, se alguma mulher foi acusada de bruxaria, é uma bruxa. A tortura é um meio infalível de demonstrar a validade da acusação. A ré não tem quaisquer direitos. Não há oportunidade de um confronto com os acusadores. Dá-se pouca atenção à possibilidade de as acusações poderem ser feitas com objectivos ímpios – por ciúme, por exemplo, ou por vingança ou pela cupidez dos inquisidores, que costumavam confiscar em seu proveito os bens da acusada. Este manual técnico para torturadores também inclui métodos de sevícias concebidos para libertar os demónios do corpo da vítima antes de esta ser morta. Com o Malleus na mão e a certeza do apoio do papa, os inquisidores começaram a multiplicar-se por toda a Europa.”

“Isto tornou-se rapidamente um sistema de fraude financeira. Todos os custos da investigação, julgamento e execução ficavam a cargo da acusada e seus familiares – incluindo as diárias pagas aos investigadores privados contratados para espiar a ré, vinho para os guardas, banquetes para os juízes, as despesas de viagem de um mensageiro enviado para ir buscar um torturador mais experiente a outra cidade, bem como a lenha para a fogueira, o alcatrão e a corda para o enforcamento. E havia ainda um bónus para os membros do tribunal por cada bruxa queimada. O remanescente dos bens da bruxa condenada, se ainda houvesse algum, era dividido entre a Igreja e o Estado. À medida que este assassínio e roubo em massa, sancionados pela lei e pela moral, se institucionalizaram, criando uma enorme burocracia para servir o processo, a atenção foi-se desviando das velhas miseráveis para pessoas da classe média e abastadas de ambos os sexos.”

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“Quanto mais eram aqueles que, sob tortura, confessavam a prática da bruxaria, mais difícil era afirmar que todo o processo era uma mera fantasia. Uma vez que cada «bruxa» era forçada a denunciar outras, o número de acusadas cresceu exponencialmente. Estas constituíam «a prova aterradora de que o Diabo ainda está vivo», como foi dito mais tarde na América, no julgamento das bruxas de Salém. Numa época de credulidade, o testemunho mais fantástico era aceite – que dezenas de milhares de bruxas se tinham reunido para um sabat em praças públicas em França, ou que 12 000 escureceram o céu quando voaram para a Terra Nova. A Bíblia tinha prescrito que «Não consentirás que uma bruxa viva». Legiões de mulheres foram queimadas na fogueira. E as mais horríveis torturas eram infligidas por norma a todas as rés, jovens ou velhas, após os instrumentos de tortura serem previamente benzidos pelos padres. O papa Inocêncio morreu em 1492, após tentativas infrutíferas de o manter vivo com transfusões (que provocaram a morte de três rapazes) e amamentando-o ao peito de uma ama. Foi chorado pela amante e pelos filhos.”

“Na Grã-Bretanha contratavam-se caçadores de bruxas, também chamados «prickers», que recebiam uma recompensa generosa por cada rapariga ou mulher que entregassem para ser executada. Não tinham qualquer incentivo para serem prudentes nas suas acusações. Normalmente, procuravam «marcas do Demónio» – cicatrizes, sinais de nascença ou nevos – que, quando picadas com um alfinete, não provocavam dor nem sangravam. Muitas vezes, um simples truque com as mãos fazia que parecesse que o alfinete penetrava profundamente na carne da bruxa. Quando não se vislumbravam marcas, bastavam as «marcas invisíveis». Sobre o patíbulo, um pricker de meados do século XVII «confessou que era responsável pela morte de mais de 220 mulheres na Inglaterra e na escócia, com um lucro de 20 xelins por cada uma.”

“Um espírito crédulo…  tem grande prazer em acreditar em coisas estranhas, e quanto mais estranhas estas são, mais fácil lhe é aceitá-las; mas nunca considera as que são simples e viáveis, pois nestas todos os homens podem acreditar.”

Samuel Butler, Characteres (1667-69)

Bibliografia

SAGAN, Carl. (1998). Um Mundo Infestado de Demónios. Gradiva. Lisboa.pp. 127-130.

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