Na arena catedrática

Publicado por: Milu  :  Categoria: FLAGRANTES DA VIDA, Na arena catedrática

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Assim que você confiar em si mesmo, você saberá como viver.” Johann Goethe

Desistir não é de forma alguma meu apanágio. A prova disso é que me deu para levar a cabo mais uma investida para, num salto quântico, ingressar no Ensino Superior. Desta vez, a mão do destino decidiu pela Universidade Internacional, que foi a primeira universidade privada em Portugal, fundada em 1984 com sede em Lisboa e Figueira da Foz. Foi fechada em 2009, devido à falta de viabilidade económica e financeira, ao que parece.

Mas também li aqui que “em 2007, a Universidade Internacional foi investigada pelas autoridades governamentais portuguesas de ensino superior (Inspeção-Geral (IGES) e Direção-Geral do Ensino Superior (DGES)) para esclarecer diversos relatórios anteriores que levantavam preocupações sobre a qualidade e o rigor desta e de outras instituições privadas. Essa situação levou ao encerramento compulsivo da Universidade Internacional em 2009 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) de Portugal.

Tomei conhecimento de que estavam a decorrer as inscrições para a candidatura ao Ensino Superior no regime ha doc, na Universidade Internacional em Lisboa . Recordo que já publiquei aqui um post com a narrativa da minha primeira investida no Ensino Superior, que foi na Faculdade de Direito em Lisboa. Creio que fiz os dois exames no mesmo ano, apenas com alguns meses de intervalo.

No dia aprazado, meti-me no comboio e fui fazer o exame. Seria o ano de 1985 ou 1986, e tendo em conta a localidade onde residia, o comboio era a melhor alternativa devido ao horário alargado, uma vez que eu não fazia a mínima ideia de quando estaria despachada para poder regressar a casa.

Tenho a ideia que o comboio se dirigia para a Estação de Santa Apolónia e que a seguir apanhava o Metro até ao Jardim Zoológico, que fica perto de onde então era a Universidade Internacional. Fiz esse percurso, ir e vir de Lisboa, 3 vezes.

Na primeira vez fui fazer um exame escrito, que consistia em desenvolver um dos dois temas à escolha. Um deles era sobre o terrorismo. O outro era sobre as sociedades, como elas se formaram e como funcionam.

Hossana nas alturas! À semelhança do primeiro exame, na Faculdade de Direito, tinha ali um tema no qual me poderia espraiar até mais não. E foi o que fiz. Desta vez, já mais calejada, não estive para me envolver em pântanos de areias movediças e optar pelo tema manhoso que é o terrorismo.

Tinha lido um livro sobre Economia, mais precisamente Introdução à Economia.
Era tudo quanto eu precisava para mergulhar em cheio no tema – As sociedades, como elas se formaram e como funcionam.

E por que tinha lido eu esse livro??


Acontece que frequentava nessa altura o 3º ano do Curso Geral de Liceus (9 anos de escolaridade) no regime noturno, pois tinha o estatuto de trabalhador estudante. O nosso professor exercia a profissão de advogado, mas para avolumar os seus proventos, dava também umas aulas na nossa escola, e sem ser. O seu método de ensino consistia em percorrer a sala, desfilando pelos corredores entre as carteiras, ao mesmo tempo que proferia uma algaraviada sem sentido, que nos era impossível de decifrar. Alto, magro, de postura direita e olhos pardos fitos no vazio lá ia debitando uma treta qualquer só para preencher o silêncio e o vazio.

Claramente ele não estava ali para ensinar. Estava ali a fingir que dava aulas e os alunos não tinham outra alternativa que não fosse desejar ardentemente pelo toque que lhes anunciasse o fim da aula, o tão desejado fim daquela tortura chinesa. Nunca percebi o que pretendia aquela alminha. Acharia ele, que aquela matéria não nos serviria para nada e por isso agia assim? Bem, se era isto, então, estava redondamente enganado e o que irei contar a seguir é a prova disso.

Com a passagem do tempo, vendo que o comportamento do professor não se alterava, comecei a pensar que eu mesma tinha de deitar mãos à obra, que seria estudar por conta própria, já que desconfiava que ele era menino para no dia da prova, nos colocar à frente um teste com perguntas, como se alguma vez tivesse dado aulas a sério.

Por isso, à cautela, num dia à noite, deitada na cama, que é onde mais gosto de ler, peguei naquele pequeno livro de Introdução à Economia, o nosso manual, e vá de o ler de fio a pavio. E até o li com prazer, sim. Estava bem escrito de uma forma leve mas eficiente.

Mal sabia eu, que estava a fazer algo que me viria a valer tanto! Aquele professor tonto, salvou-me a vida sem nunca ter sido essa a sua intenção. Se ele não tivesse sido parvo, jamais teria feito uma prova escrita tão brilhante e não teria esta história de vida. É bem certo que “Deus escreve direito em linhas tortas”.

Naquele dia, durante a prova, as ideias surgiam-me em catadupa. Ainda não tinha terminado de desenvolver uma ideia e já me estava a ocorrer outra. De forma que, por várias vezes, tive de escrever na folha de rascunho notas ou expressões que representavam ideias, para as retomar quando fosse oportuno. Não dei hipótese para me esquecer de nada.

No dia aprazado para as provas orais, lá foi esta menina novamente de comboio, sozinha, em busca do seu eu, de se descobrir a si mesma. No fundo, o que andava a fazer senão um constante pôr-me à prova?

Chegou-se a noite e não cheguei a ser chamada. Devido às iniciais do meu nome fiquei para o dia seguinte. Contudo, nada perdi porque pude assistir às provas dos outros colegas e assim ficar cada vez mais familiarizada com os métodos utilizados. Assisti, por exemplo, à prova oral de um pobre desgraçado que se atreveu a enveredar pelo tema do terrorismo. Foi sovado sem dó nem piedade. Até eu fiquei dorida e não era nada comigo. Mas também haveria de chegar a minha vez. Também levei um bom enxerto.

O colega deve ter colocado o terrorismo num patamar tão terrífico que, os dignos catedráticos, resolveram dar-lhe a volta e, colocaram a hipótese, de o acto terrorista poder ser o único recurso para a libertação. E, se pensarmos bem, a Revolução Francesa, tão envolta de sangue, foi o acontecimento que inaugurou a Idade Contemporânea e instituiu novas perspetivas políticas que até hoje exercem efeitos no mundo ocidental. Aliás, grandes mudanças na História da Humanidade estão envoltas de sangue.

Ouvi o meu nome. Avancei em direção ao pedestal onde se encontravam sentados os três catedráticos, como quem caminha direto ao cadafalso. Sentei-me na cadeira da tortura e olhei para cima. Sabia que iria ser duro. Eles, os três magnânimos, estavam num plano bem acima de mim, como convém. Sempre amedronta alguma coisa.

O Catedrático que se encontrava no meio era, segundo consta, o Presidente. Olhou para mim e perguntou-me o nome. Baixou a cabeça para olhar para a minha prova durante uns instantes e tornou a olhar para mim, ao mesmo tempo que levantava a mão lentamente e, com dois dedos, ajustar os óculos ao nariz. Poderei viver 100 anos, que jamais me esquecerei deste momento. Foi o primeiro impacto.

A seguir disse: “A senhora escreve bem. Tenho aqui a sua prova que li do princípio ao fim. E do princípio ao fim fui seguindo na perfeição o seu raciocínio. Na verdade, nem precisava ou não deveria estar agora aqui a fazer uma prova oral. Ainda assim, entendemos ser necessário devido à nossa experiência. Não é a primeira vez que nos surgem casos de pessoas inteligentes, mas que vieram a mostrar não ter a inteligência própria para um jurista.”
Foi mais ou menos isto que me foi dado ouvir.

A prova oral consistiu em negar e contrariar as afirmações que eu tinha feito na prova. Parece fácil, e deveria ser, uma vez que não inventei nada. Tudo o que tinha escrito na prova resultava de ter lido recentemente o manual de Introdução à Economia. Mas o examinando está sempre em desvantagem, o medo, a incerteza começa a dominar. Só me recordo de ouvir dizer assim: “A Senhora diz aqui que as leis são igualmente aplicáveis a todos os cidadãos. Como assim, se os homens são (ou eram) obrigados a cumprir o serviço militar e as mulheres não? Onde está o princípio da igualdade?

Respondi que o serviço militar obrigatório não se aplicava às mulheres, tal como as licenças de maternidade também eram só para as mulheres, que tinha que se olhar às circunstâncias, aos contextos, etc. Enfim, o exame decorreu todo neste registo, quando afirmava uma coisa, ele desmantelava-a e dizia que eu estava errada e vice versa. A prova oral teve a duração de terríveis e angustiantes 30 minutos, durante os quais me senti como um touro numa arena, acossada por todos os lados.

Como já referi, eram três professores e apenas o do meio interveio, os outros dois só olhavam, sempre com uma expressão atenta e olhar inquisidor. A dado momento, já tão cansada daquele impiedoso interrogatório, fiz uma expressão de enfado, assim como quem quer dizer “estou farta desta merda”. E este foi um descuido meu, devia ter-me contido.

O professor que me interrogava não viu pois encontrava-se a olhar para a minha prova escrita, em busca de mais um argumento para me “sovar”. Mas os outros dois viram. Um deles endureceu a expressão e lançou-me um olhar frio, gelado. Este momento impactou-me de tal forma que, dos três, foi o único rosto que a minha memória guardou. Ainda hoje ele seria o único que reconheceria de imediato. Refiro-me a vê-lo em fotos, evidentemente, que ele já está a fazer tijolo há muito tempo.

No final, foi colocada uma pauta com os resultados do exame. Não faço a menor ideia se houve muitos ou poucos reprovados. Estava extenuada, andava naquilo há dias e já estava a acusar o esforço, mas quem viu primeiro a minha reprovação foram os meus colegas, que fizeram a prova nesse dia e assistiram à minha prestação. Estavam estupefactos. Eles é que me disseram que tinha sido reprovada. Consideravam que tinha estado bem em todos os sentidos e até me sugeriram que fosse inquirir a secretaria sobre o resultado, pois poderia ser um engano.

Mas eu sabia que não era engano. Tinha visto a expressão do tal professor…

Ainda assim, para fazer a vontade aos colegas, lá fui informar-me mas eles já sabiam, ouviram os comentários dos meus colegas e perceberam de imediato que algo deveria ter-se passado e aqueles professores eram como deuses na terra. Aconselharam-me, então, a candidatar-me ao Curso de Gestão de Empresas, cujas inscrições ainda estavam abertas, que até haveria muita probabilidade de passar, uma vez que eram os segundos exames. Pelo menos era o que costumava acontecer, disseram.

Mas já não estava interessada, afinal, o que quis foi sobretudo viver uma experiência, enfrentar um desafio, pôr-me à prova e, estava, sobretudo cansada. Decidi mandar aquilo tudo à merda.

Já era tarde, ainda me assustei porque o Metro já estava quase a fechar. No comboio, quando fui a reparar, a carruagem estava repleta de magalas, que se dirigiam para o Entroncamento. Eu, encolhida num cantinho, triste como as coisas tristes, sentia-me um passarinho ferido. Quanto aos magalas, olhavam para mim com uma expressão preocupada. Sim, eu vinha mal. Mas as lições de vida foram muitas. Ainda hoje posso ter perante mim uma pessoa tida como muito ilustre que eu não me deslumbro. Por detrás daquela carapaça cheia de brilho pode estar o maior dos canalhas, um grande monte de merda.

Mas aquilo fazia-se? Então, não vale de nada o empenho, a coragem, o arrojo, a presença de espírito de uma jovem de 25 anos (que eles perceberam bem que era uma pobretanas, e continuo a ser pobre) que se atira ao mundo num sonho de estudar?

Mas eles não viram o que estava perante eles? Não era uma jovem que iria estudar à pala dos proventos dos papás. Era antes alguém que estava prestes a contrariar a lei da reprodução social.

Mas o Universo manda muito. A saga continuou. E, à terceira, foi de vez. Esta será a próxima história de vida. E estou prestes a dar cabo da Lei de Lavoisier, ao afirmar convicta:

Na natureza No Universo, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Por outros caminhos

Publicado por: Milu  :  Categoria: LIVROS, Por outros caminhos

“Uma mudança deixa sempre patamares para outra mudança”. (Maquiavel)

Em tempo de férias, que é o meu caso, pois estou de férias, há sempre espaço e muita vontade para “devorar” alguns livros. Desta vez, resolvi variar. Não direcionar tanto as minhas leituras que, ultimamente, incidiram sobre a área das Ciências Sociais, nomeadamente na Sociologia. Apercebi-me que, a Sociologia, me dava respostas para questões que há muito me intrigavam, até mesmo desde a minha meninice. Ou seja, fez-me compreender os fenómenos humanos, facto que, de certa forma, contribuiu para o meu empoderamento. Posto isto, quem haveria de ter “calhado na rifa”, para me entreter na lassidão destes longos dias?

João Tordo. Ainda não tinha tido oportunidade de o ler, e quis o acaso que, recentemente, tivesse ouvido alguém tecer rasgados elogios à sua obra . Pois então vamos a isso, pensei de mim para mim. O primogénito foi nem mais nem menos do que “O Livro dos Homens Sem Luz”. Em boa hora, diga-se a verdade, é que já aproveitei algumas ideias que me caíram que nem uma luva…

Pois então, “O Livro dos Homens Sem Luz” é uma obra intrigante e emocionante escrita por João Tordo, um renomado autor português. Publicado em 2011, o livro mergulha o leitor em uma jornada literária que abrange diversas temáticas, como a complexidade das relações humanas, a busca por sentido na vida e a exploração das dificuldades da psique humana.

A trama do livro gira em torno de personagens que, de alguma forma, estão em busca de respostas para questões existenciais. O título em si, “O Livro dos Homens Sem Luz”, sugere uma exploração da natureza da humanidade e uma jornada em busca de sabedoria e iluminação. João Tordo utiliza uma narrativa envolvente para abordar os desafios emocionais e espirituais enfrentados pelos personagens, permitindo que o leitor se conecte com suas lutas internas. O livro é conhecido por sua prosa poética e profundidade psicológica. João Tordo mergulhou fundo nos pensamentos e sentimentos dos personagens, oferecendo uma visão rica e complexa de suas vidas interiores. Através dessa abordagem, ele cria uma atmosfera densa e reflexiva que convida o leitor a contemplar as questões fundamentais da existência. Além disso, a trama é habilmente construída, alternando entre diferentes perspetivas e momentos temporais. Essa estrutura narrativa mantém o leitor envolvido, revelando gradualmente os segredos e conexões entre os personagens. A escrita de João Tordo é carregada de simbolismo e de metáforas, proporcionando várias experiências de interpretação e incentivando a reflexão sobre os temas abordados.

Assim, “O Livro dos Homens Sem Luz” não é apenas uma obra de ficção, mas também uma exploração filosófica e espiritual. Ao longo do livro, os personagens são confrontados com dilemas morais, conflitos internos, a procura por um sentido mais profundo em suas vidas. Essa busca pela iluminação e pela compreensão do eu interior é uma constante ao longo da narrativa. No geral, “O Livro dos Homens Sem Luz” é uma leitura enriquecedora para aqueles que apreciam uma prosa reflexiva. João Tordo construiu um mundo literário rico em emoções e questionamentos existenciais, oferecendo aos leitores uma oportunidade de explorar as complexidades da natureza humana e as várias facetas da luz que brilham em cada um de nós.

“…«Estiveste, há pouco tempo, no mesmo lugar que a tua mulher e a tua filha. Um restaurante. Entre a tua mesa e a delas existia não mais do que o espaço de três passos largos. O que seria de esperar de um homem era que tudo fizesse para as recuperar, para as trazer para junto dele. A tua única reacção, no entanto, foi fugir. Claro, os motivos das tuas acções pertencem-te apenas a ti – medo, cobardia, indiferença, tanto faz – e são indescortináveis. Mas as consequências das tuas acções trazem-te ao ponto em que estás agora, de arma em punho, considerando tirares a tua própria vida, quando um pequeno gesto bastaria para que tivesses recuperado o que te pertencera»”

«Não acredito nisso. Mentes.»

«Achas que te minto? Dou-te outro exemplo: Lembras-te de, a certa altura, seguires o teu amigo do prédio em frente?»

«Sim.»

«E recordas-te de uma tarde em que, por acidente ou não, chegaram a trocar palavras?»

Uma espécie de vergonha miudinha invadiu-me. Murmurei algo indistinto.

«Tiveste nesse momento outra oportunidade de estabelecer contacto, de quebrar o isolamento, de reconheceres um outro como alguém que existe fora de ti. O que te estou a tentar mostrar é isto: a tua vida dependeu apenas da tua vontade, e tu fugiste-lhe em todos os momentos. Preferiste a tua reclusão e escolheste o desespero em vez de reconstruíres o mundo em teu redor. Não tens um único amigo e não conheces ninguém. Vives como um condenado, fechado num quarto de cortinas cerradas, aguardando o fatídico dia em que irás desaparecer, anónimo e ausente, da memória de outros. Para trás deixarás nada, ou menos do que nada. Por tua vontade tornar-te-ias um fóssil , uma pedra sem nome, antiga como a criação, sem outro destino senão estar enterrada no fundo do mar, ou ser chutada ao acaso por entre rochas cobertas de visco. Creio que é justo, e corrige-me se estiver enganado, quando te digo que não passas de um fantasma.»” (Tordo, 2011:73-74).

Bibliografia

Tordo, João. (2011). O Livro dos Homens sem Luz. Dom Quixote. Alfragide.