O grande embuste
“Olho por olho, e o mundo acabará cego”.
Gandhi
O post de hoje segue a linha anteriormente traçada, que consiste na agregação de pequenos excertos que permitem dar a conhecer aos espíritos inquietos um pouco da História contemporânea, nomeadamente sobre os acontecimentos que envolvem o Islão. Ainda assim, convém ressalvar que este meu post tem somente a pretensão de levantar um pouquinho a ponta do véu que cobre a verdade sobre a invasão do Iraque, levada a cabo pelos Estados Unidos, sob o pretexto de o Iraque estar a apoiar a Al Qaeda, bem como, pretensamente, estar a desenvolver um programa de armas de destruição maciça. Sabe-se hoje, que foi tudo um embuste, e que as justificações apresentadas para a intervenção militar eram falsas. Mas o mal está feito. Teve custos. Custos humanos, sociais e económicos.
“A história de Saddam Hussein e da sua ascensão e queda confunde-se com a História do Iraque contemporâneo. Em Julho de 1958, o general Abd al Karim Qasim tomou de assalto o Palácio Real de Bagdad e mandou massacrar toda a família real, sem poupar mulheres, crianças e criados. O jovem rei Faiçal II, filho de Faiçal I, o companheiro de Lawrence na revolta árabe, sobreviveu à fuzilaria mas morreu a caminho do hospital. Com este golpe, os oficiais progressistas, inspirados pelas ideias do partido Baath, punham termo ao domínio da dinastia hachemita, que consideravam pouco patriótica e lacaia do imperialismo britânico. Depois da vitória, iniciou-se uma sucessão de golpes e contra golpes de Estado, protagonizados por várias cliques militares ligadas ao Baath. Estes golpes, geralmente sangrentos, coexistiram com consecutivas agitações curdas e com uma subida de tensão em relação às monarquias conservadoras da região.
Saddam Hussein, um jovem oriundo de famílias muito pobres da região de Tikrit, era um desses militares e militantes do Baath. Fora sobrevivendo e progredindo entre lutas político-militares e, em 1968, tornara-se vice-presidente do Conselho da Revolução e número dois de Ahmed Hassan al-Backr. É como novo homem forte do país que negoceia um acordo de paz com os curdos iraquianos. Os curdos, espalhados pelos vários Estados da região – Turquia, Irão, Iraque, Síria – vinham sendo os beneficiários e as vítimas das relações entre estes Estados, mas depois do Acordo de Argel entre o Irão e o Iraque (1975), o Xá cortara-lhes o apoio e tinham passado a ter maiores dificuldades de sobrevivência. Em 1979, Saddam alcançou a Presidência, sucedendo a al-Bakr e confirmando o poder de facto que já lhe pertencia.
Começou por proceder a uma purga estalinista entre os altos dirigentes, eliminando preventivamente centenas de suspeitos, entre inimigos reais e virtuais, para instituir uma ditadura pessoal e securitária com o terror como dissuasor. Perante a hostilidade do Irão de Khomeini, que ameaçava sublevar a maioria xiita do Iraque, e contando com as bênçãos norte-americanas e soviéticas, Saddam iniciou uma guerra contra o Irão. Mas o Irão, com uma população três vezes superior à do Iraque, reagiu e Saddam só não saiu vencido graças ao apoio de Washington, de Moscovo, de Paris e das monarquias do Golfo, assustadas com a revolução religiosa dos ayatollahs, os grandes inimigos dos sunitas.
Saddam ganhara a guerra, mas ficara com a economia destroçada e uma gigantesca dívida aos países vizinhos. Pior ainda, apesar do conflito, os preços do petróleo tinham baixado muito nesse ano de 1989, que fora também o ano do fim da Guerra Fria.
Um dos Estados credores da dívida de guerra do Iraque era o Kuwait. Assente num lençol de petróleo, com uma monarquia constitucional, uma certa modernização dos costumes e alguma liberdade intelectual, o Kuwait, governado desde os finais do século XIX pela família al-Sabah, passara de protectorado inglês à independência em 1961, sempre com o beneplácito dos britânicos. No final da guerra Irão-Iraque, com o petróleo em baixa, o Kuwait era credor de uma grande parte da dívida do Iraque. Por isso, os iraquianos procuraram, no seio da OPEP, defender uma política restritiva de produção e exportação de crude, de modo a fazer subir os preços e a revalorizar os recursos do país. Ao contrário, os kuwaitianos, além de não lhes perdoarem a dívida, não quiseram baixar a produção.
Foi então que Saddam Hussein resolveu pôr em marcha um audacioso plano, invocando velhas questões fronteiriças. Tratava-se de invadir e conquistar o Kuwait numa operação militar surpresa.
O que se passou a seguir podia fazer parte de uma narrativa de Maquiavel sobre a perfídia dos príncipes, ou de uma comédia de enganos isabelina. Deixando crescer a tensão entre os dois Estados, Saddam aproveitou um encontro dos sauditas e dos egípcios, que tentavam mediar e resolver o diferendo Iraque-Kuwait, para pôr em marcha o seu plano. A reunião foi marcada para 1 de Agosto, em Jedah. Saddam enviou o seu vice-presidente para conversar com o príncipe herdeiro do kuwait, conversa que correu amigavelmente, tendo ficado agendada nova reunião para Bagdad.
Só que, na madrugada seguinte, a 2 de Agosto, quando o dia nascia sobre o Médio Oriente, as tropas iraquianas já estavam a ocupar o Kuwait City. O pequeno emirato era tomado de assalto em poucos dias – de surpresa, com brutalidade e eficácia. A reacção não se fez esperar: desde o espanto e indignação do rei Fahd da Arábia Saudita e do presidente Mubarak do Egipto, os iludidos mediadores da negociação de Jedah, até ao presidente George H. Bush. Para os sauditas e egípcios, que tinham sido usados e manipulados para adormecer o Kuwait, era grave a ofensa. Para os norte-americanos o caso era inesperado e muito sério. Tinham consciência de que, a partir da aliança com Saddam contra o Irão e das boas relações então criadas este poderia ser concluído que a América não se entreporia no caminho. O ditador iraquiano acabava de sair de uma guerra contra os ayatollahs de teerão, em que tivera a benevolência e o apoio da comunidade internacional e dos grandes poderes. Mais importante, a embaixadora em Bagdad, April Glaspie, que Saddam chamara uma semana antes da invasão para sondar a reacção de Washington a eventuais desenvolvimentos no seu diferendo com o Kuwait, respondera-lhe que os Estados Unidos não tomavam partido nos conflitos entre árabes: «We have no opinion on your conflits with Kuwait», teria sido o comentário da Embaixadora. A partir desta resposta, Saddam teria ficado convencido de que, além de uma obrigatória censura diplomática para salvar a face, os Estados Unidos nada fariam. Na reacção da Embaixadora, Saddam lera um velado aval para a invasão. (…). O que se seguiu é conhecido.
O Muro de Berlim fora derrubado há menos de um ano, a Guerra Fria acabara, Washington e Moscovo estavam quase de mãos dadas a pôr termo aos conflitos periféricos da segunda Guerra Fria. Nascera um clima de quase paz perpétua, que o gesto de Saddam quebrava brutalmente.
Mas era muito o que estava em jogo: o Ocidente, e sobretudo os Estados Unidos, na qualidade de potência mundial, tinham para o Médio Oriente regras estabelecidas. Era do depositário das maiores reservas mundiais de petróleo que se tratava. A norma para essas reservas era o oligopólio de geometria variável, em que o maior produtor – a Arábia Saudita – mais os sultanatos conservadores do Golfo Pérsico superavam e equilibravam países hostis como o Irão. Se o Iraque, com um exército numeroso e a sair de um conflito, ocupasse o Kuwait e ameaçasse a Arábia Saudita, os riscos de que essas regras se quebrassem eram grandes. E isso Washington não queria nem podia aceitar” (PINTO, 2015: 121-125).
(…)
“No terreno militar, após uma fase de bombardeamentos concentrados contra as forças iraquianas de ocupação do Kuwait, bombardeamentos que «amaciaram» as tropas de Saddam Hussein, foi lançada uma ofensiva terrestre que levou a uma vitória rápida na reconquista do Kuwait e neutralizou as reservas militares de Saddam no Iraque. Não foi fácil construir esta coligação e mantê-la contra as manobras divisórias de Saddam Hussein, como os ataques a Israel para provocar a reacção de Telavive que logo poria em cheque a aliança norte americana com os árabes. Os iraquianos acabaram por pedir o fim das hostilidades e os Estados Unidos decidiram que era um mal menor deixar as coisas como estavam. esperavam que Saddam fosse derrubado pelos xiitas e pelos curdos, que oprimira tão duramente. Mas Saddam manteve-se e conseguiu resistir às insurreições internas, não hesitando, para isso, em recorrer a tudo – até aos gases venenosos” (PINTO, 2015: 128-129).
(…).
“A vitória da coligação sobre Saddamm Hussein não surpreendeu o mundo. Apesar da arrogância do homem forte do Iraque, tratava-se de uma aliança militar coordenada pela primeira potência mundial, com os armamentos mais sofisticados e apoiada pela maioria dos Estados da região. Tudo isto contra um poder regional médio.
No entanto, derrotada a força invasora e libertado o kuwait, Bush e a sua equipa entenderam que não deviam derrubar Saddam. A unidade do Iraque saída da Grande Guerra e do plano de Sykes e Picot era frágil: com uma minoria sunita dominante, uma maioria xiita ressentida e a agitação dos curdos do Norte, os Estados Unidos não deveriam meter-se a mudar o Regime, correndo o risco de ficarem com um país partido nos braços. Assim, limitar-se-iam a encorajar a revolta dos dissidentes – curdos e xiitas. Revolta que os insurrectos pagariam cara, perante um Saddam ferido, mas longe de se dar por vencido ou convencido” (PINTO, 2015: 129-130).
A Guerra contra Saddam
“Há múltiplos relatos e teorias sobre como surgiu em Washington a ideia de derrubar Saddam Hussein, segundo acto dessa «Guerra contra o Terrorismo» tão auspiciosamente inaugurada com a campanha do Afeganistão. George Friedman, por exemplo, sustenta que os Estados Unidos precisavam de fazer uma demonstração de força no Médio Oriente, sublinhando que os sauditas e outros poderes da região os achavam débeis depois da Guerra Fria, recuando perante ameaças e agressões – como na Somália e no próprio Médio Oriente, em face dos ataques da Al-Qaeda e dos radicais islâmicos. Além disso, depondo Saddam, os americanos podiam ocupar um país central na região e dali impor os seus interesses. Nas suas memórias, In my Time, Dick Cheney, o todo-poderoso vice presidente de Bush e grande promotor da operação, refere como justificação informações da CIA acerca da existência de contactos entre o governo de Bagdad e a Al-Qaeda para o treino de elementos da organização terrorista no uso de armas biológicas e de armas químicas. Outro factor que levaria à guerra seria a acusação de fabrico e uso, pelo Iraque, de armas de destruição maciça, nomeadamente nucleares, prontas a ser usadas contra o Ocidente” (PINTO, 2015: 129-130).
Hoje há a convicção de que grande parte dos dados fornecidos para sustentar a invasão do Iraque foi fabricada por inspiração dos chamados «neoconservadores», um grupo muito próximo dos interesses estratégicos e das concepções dos partidos da direita de Israel. Este grupo pretendia comprometer o poder americano no Médio Oriente com o apoio à política de Israel. A estratégia teria sido prosseguida de forma quase conspiratória nos meses que precederam a invasão do Iraque, com vasta manipulação de informação e pressões sobre as agências de inteligência e segurança.
Se o apoio dos governos dos países árabes e islâmicos à primeira guerra para expulsar Saddam do Kuwait fora quase unânime, o mesmo não aconteceria com a intenção de mudar o regime do Iraque. A intervenção foi vista por muitos governos árabes, mas também pelos sectores realistas norte-americanos e europeus, como uma tentativa dos neoconservadores de exportarem o modelo político-constitucional vencedor da Guerra Fria, numa nítida afirmação de superioridade civilizacional de contornos imperialistas. O que para os seus inspiradores era «tornar o mundo mais seguro, através da exportação das instituições democráticas». para os visados e para os críticos não passava de um perigoso abuso de poder” (PINTO, 2015: 161).
(…).
“A questão das armas de destruição maciça e dos esforços do governo de Saddam Hussein para conseguir armas nucleares era outro dos temas quentes. Os aliados franceses e alemães da América de Bush mostravam sérias reservas a uma invasão, havia um forte cepticismo na rua europeia e alguns dos aliados árabes também estavam renitentes. No entanto, a ofensiva foi por diante. A invasão começou com um ataque cirúrgico por dois F-117, com bombas de penetração, ao Bunker onde se supunha que Saddam pernoitava com os filhos Udai e Qusai.
Algumas mudanças na região estavam em curso: a Turquia, até aí membro indefectível da NATO e aliada dos Estados Unidos, não permitiu o uso do seu território para atacar o Iraque pelo Norte: o governo recentemente eleito do partido islâmico de Recep Erdogan e o parlamento de Ancara recusaram passagem à 4ª Divisão de Infantaria norte-americana. Mesmo assim, a campanha denominada Operação Iraqi Freedom foi um extraordinário sucesso. O novo exército que Donald Rumsfel estava a criar e quis testar num conflito real, progrediu no terreno e conheceu um baptismo de fogo excepcional” (PINTO, 2015: 162).
. (…). Além de terem um exército mais determinado, bem armado e motivado, os americanos tinham um objectivo: invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein. Este, pelo contrário, só queria evitar a guerra. Os seus aliados russos e franceses tinham-no convencido de que era possível vetá-la nas Nações Unidas, caso Saddam desse garantias e abrisse as portas à fiscalização internacional. Além disso, o ditador estava tranquilo: fora tolerado e apaparicado pelos Estados Unidos e pelas democracias ocidentais na guerra contra o Irão, não estava envolvido com os «fundamentalistas religiosos» e não pensava usar contra os americanos as armas de destruição maciça de que não dispunha. Até porque, ingenuamente, pensava que os americanos saberiam de tudo através dos seus canais de inteligência e, ainda mais ingenuamente, que isso contaria para a decisão.
Por isso não atacou as concentrações de tropas na Arábia Saudita quando o podia ter feito; por isso assentou numa defesa à antiga da fronteira Arábia-Kuwait-Iraque. Sobretudo, não tinha entendido as razões de fundo da guerra. Daí a derrota clara e rápida” PINTO, 2015: 162-163).
“Rumsfeld e o general Tommy Franks, responsável pelo Central Command, aplicaram e testaram as novas concepções de ofensiva; os progressos tecnológicos possibilitavam a permanente observação do terreno e os satélites e os drones permitiam, através da transmissão de dados aos comandantes, o uso de bombas inteligentes e a maximalização das acções combinadas de movimento, fogo e choque. A força de invasão era essencialmente formada pelo Quinto Corpo de Exército, que incluía a 3ª Divisão Aerotransportadas, pela Primeira Força Expedicionária dos Fuzileiros Navais e pela Primeira Divisão Blindada inglesa. Foi esta força de pouco mais de 100 000 homens que bateu o quase meio milhão de soldados do exército iraquiano. À custa de 160 mortos nos 26 dias de combates“(PINTO, 2015: 163).
Se a operação militar foi magistral, a ocupação revelar-se-ia completamente desastrosa. Paul Bremer III, o procônsul ou vive-rei nomeado e investido de todos os poderes, tomou como primeira medida o desmantelamento do exército iraquiano, incluindo o Corpo de Oficiais. Fê-lo em Maio, um mês depois da invasão. Era uma decisão peregrina em termos históricos . Normalmente o vencedor, uma vez negociada a paz ou o cessar-fogo com o vencido, deixava as Forças Armadas e policiais sob algum controlo, mas não as eliminava. Ao fazê-lo, Bremer não só entregava o policiamento do país às Forças Armadas americanas, como criava uma base de recrutamento para a resistência antiamericana” (PINTO, 2015: 164).
“Eram meio milhão de homens no desemprego, que uma economia destruída não podia ocupar. Para completar, Bremer ilegalizara o partido Baath e proibira os seus antigos filiados de exercer quaisquer direitos ou cargos políticos. Se pensarmos num regime como o de Saddam Husssein, onde o partido no poder era o único caminho para os quadros económicos, profissionais e intelectuais, podemos imaginar o caos que se seguiu.
Dez anos depois, Bremer, respondendo à cadeia de televisão Al Arabiya, explicava que se baseara em conversas ocorridas em 2002 com os exilados iraquianos e confessava que o seu erro fora entregar a responsabilidade política aos dirigente iraquianos xiitas, entre eles o famoso Chalabi, exilado nos Estados Unidos e ouvido em foro de santidade nos círculos neoconservadores de Washington. Como escreveria Kishore Mahbubani na edição do National Interest de Julho de 2014:
«A invasão e ocupação do Iraque vai ficar na História como uma das mais fracassadas operações deste tipo. A América gastou 4 biliões de dólares, perderam-se milhares de vidas americanas e milhões de vidas iraquianas para, no final, não se conseguir nada.»
Ao contrário da última ocupação americana bem-sucedida (a do Japão), em que o General MacArtur respeitara algumas instituições e até deixara no trono o imperador Hirodito, no Iraque Bremer e os seus tinha feito tábua rasa institucional.
“Acolhidos como libertadores nos primeiros dias, os americanos logo foram confrontados com o terrorismo e as milícias de várias origens e com a progressiva divisão do país por linhas étnicas e religiosas. Perante o caos, o povo e as elites iraquianas sentiram-se, senão nostálgicos da ditadura familiar de Saddam, pelo menos saudosos de uma autoridade central.
Vão seguir-se anos de terrorismo e anarquia, em que as tropas americanas terão de defrontar sucessivos ataques e insurreições de diferentes grupos. A natureza fragmentada do Estado iraquiano tornava difícil manter a unidade do país, num quadro em que as forças militares e policiais, e mesmo a alta e média burocracia, estavam no desemprego. Daí atexto-justificado formação de grupos de guerrilha nas áreas sunitas e de milícias irregulares comandadas por chefes religiosos nas áreas xiitas. Os curdos, por seu turno, trataram de se instalar numa espécie de Estado independente, apesar das rivalidades entre os clãs Barzani e Talibani” (PINTO, 2015: 164-165).
Bibliografia
PINTO. N. Jaime. (2015). O Islão e o Ocidente. A Grande Discórdia. D. Quixote. Alfragide.