Os Amantes da Liberdade

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O livro, Os Amantes da Liberdade de Claudine Monteil, que li quase de uma assentada, descreve-nos a vida de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir, desde o nascimento até à morte. Ler este livro encantou-me, excepto quando, chegada à parte final, fui confrontada com o relato das mortes e funerais dos escritores, que para o meu gosto está demasiado pormenorizado e a roçar o mórbido. No entanto, o balanço final da leitura deste livro é positivo e até aproveito para registar aqui algumas impressões que me suscitaram alguma curiosidade.

Jean-Paul Sartre tratava habitualmente Simone por Castor. Simone, deve a alcunha à proximidade inglesa da palavra beaver (castor) e à sua fenomenal capacidade de trabalho em grupo.
Por volta de 1944, com os parisienses recentemente libertos da ocupação alemã, mas sem que a guerra tivesse já terminado, Sartre voou para os Estados Unidos, onde veio a conhecer Dolores, aquela que viria a ser uma das suas amantes que mais fascínio exerceu sobre Sartre. Simone, que o não havia acompanhado, decidiu vir até Lisboa, a convite da sua irmã Hélène, refugiada em Portugal com Lionel, seu marido, que trabalhava no Instituto Francês de Lisboa, e que havia organizado um ciclo de conferências para Simone.
Foi neste ponto do livro que li algo que não esperava, embora sabendo que a França estava ocupada pelos alemães, enquanto Portugal se mantinha um país neutro. Percebi melhor as consequências de uma guerra:

“Simone tomou o comboio para Lisboa. (…) Trocava uma cidade ferida pelo racionamento por um país que não conhecera a guerra. À chegada, sofreu um tal choque perante a abundância inesperada nas prateleiras e nas montras que a irmã lhe perguntou se se sentia bem” (Monteil, 1999: p. 92).

Mais à frente, a confirmar o contraste  entre Paris e Lisboa, surge o seguinte:

“Com o dinheiro ganho nas conferências organizadas por Lionel, pôde comprar vestidos, saias, sapatos meias, tudo o que faltava em Paris” (Monteil, 1999: p. 95).

Simone em dada altura apercebe-se que tanto ela como Sartre não estiveram à altura dos acontecimentos da guerra. Andaram tão ocupados com eles próprios que não se apercebiam dos dramas que clamavam à sua volta. Apesar de Simone  e de Sartre defenderem as grandes ideias da liberdade, não souberam reconhecer o momento de as passar à prática e assim salvar vidas. São sentimentos que Simone expõe num dos seus romances através das suas personagens. Uma vez disse:

Enquanto eu envernizava as unhas eram embarcados os judeus!(Beauvoir, 1945: p. 297) in (Monteil, 1999: p. 97).

A questão da noção da liberdade está bem patente no seguinte trecho:

Para Sartre e Simone integrar-se na sociedade significava excluir-se do seu mundo. Apenas contava a marginalidade, a sacrossanta liberdade, mesmo se implicasse a miséria (Monteil, 1999: p. 105).

A questão do feminismo por oposição a uma sociedade profundamente machista:

O convite para proferir conferências na Tunísia e na Argélia foi uma feliz diversão para Simone, que aceitou imediatamente. Ela estava impaciente por descobrir Argel, a cidade do seu amigo Albert Camus. O seu maior desejo era falar com ele antes de partir. No entanto, (…), quando tentou falar do assunto, Camus riu-se dela, como fazia sempre que ela tentava ter uma conversa séria com ele. Camus preferia discutir com homens. Simone não estava habituada a este género de humilhações. Desde os seus anos na Sorbonne que dialogava, de igual para igual, com os seus pares. (…). O criador de Combat tratava-a como se ela fosse uma simples dona de casa. Cada uma das suas palavras lembrava-lhe que, aos seus olhos, ela seria sempre e apenas uma mulher, que o mesmo é dizer algo que pode ser desprezado” (Monteil, 1999: p. 110).

E ainda:

Para escrever o seu ensaio sobre Le Deuxième Sexe, Simone tinha muito que fazer. Ler e reler os textos desde a antiguidade, reflectir. Todos os dias descobria até que ponto o mundo em que vivia fora concebido pelos homens. (…). (…) Séneca, Platão, Aristófanes, sentia vontade de gritar. As observações de desprezo relativamente às mulheres desfilavam sob os seus olhos de século em século, de livro em livro, sem que ninguém, no decurso de milénios, tivesse pensado em protestar” (Monteil, 1999: p. 112).

Sobre Portugal e o regime fascista de Salazar:

“David Rousset não perdia uma só ocasião para lhes lembrar as realidades da ditadura soviética. No entanto, apesar das revelações de Kravchenko e do testemunho de David Rousset, Sartre retorquiu que os regimes fascistas instalados, a Espanha de Franco e o Portugal de Salazar, eram apoiados pelos Estados Unidos e que, nessas condições, não poderia ele tornar-se inimigo da URSS (Monteil, 1999: p. 130).

Aquando do Manifesto 121, que apelava à desobediência dos soldados franceses que combatiam na Argélia e que foi assinado por 121 personagens de relevo incluindo Sartre, e que vieram a sofrer consequências, Sartre e Simone pediram para serem presos, mas  o general de Gaulle ter-se-ia oposto e terá até acrescentado:

Não se prende Voltaire” (Sartre, 1981: p. LXXX) in (Monteil, 1999: p. 181).

Há uma parte neste livro que me fez lembrar a actualidade no que consta à hipótese da lei sobre a despenalização do aborto ser revista, nomeadamente em Espanha, tendo em conta as notícias que tenho lido. Pois este livro refere que Simone recomendou prudência às meninas do movimento de Libertação das Mulheres para que fossem prudentes e que recebessem a vitória nos tribunais com modéstia, porque ganhar uma batalha não significa que se ganhou a guerra, e diz:

Tudo isto é muito bonito, mas é preciso não esquecer que nada está definitivamente conquistado. Basta que surja uma crise económica para que estes direitos voltem a estar em causa” ( Monteil, 1999: p. 237).

Outra vez em Portugal:

Em Lisboa, a revolução dos cravos dirigida pelos militares derrubou a ditadura herdada do regime de Salazar. Simone viajou com Sartre para Portugal onde se celebrava o fim da ditadura que havia durado quarenta e oito anos. (…). O país estava ainda mais pobre. Os livros de Simone estavam proibidos. (…) Dirigiu-se ao hospital de Lisboa (…) e descobriu à sua volta mulheres que haviam sido espancadas pelos maridos e ostentavam múltiplas contusões. Sartre conversou com numerosos intelectuais portugueses sedentos de liberdade, felizes por se sentirem ainda vivos nesta Europa dividida pela guerra fria. Castor (Simone), por seu lado, media mais uma vez o longo caminho a percorrer para libertar as mulheres de outros países que não o seu” (Monteil, 1999: p. 252)

Por último resta-me dizer que, exceptuando a última parte, a dos funerais, o livro é apaixonante, por isso recomendo-o a quem ainda não o leu. Fiquei a saber muitas coisas, que agora me permitem perceber todo o livro que estou a ler no momento, e que vem na senda deste,  cujo título é A cerimónia do Adeus, escrito por Simone de Beauvoir após a morte de Sartre e do qual chega a ser acusada de fazer revelações íntimas de Sartre.

A Esquizofrenia

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Por enquanto lê-se! 😀

A ler este livro. Consta de uma abordagem da esquizofrenia sob o ponto de vista de várias correntes e de outras abordagens. O autor,  Nicolas Georgieff, psiquiatra, situa as diferentes concepções e o olhar que cada uma delas projecta sobre a doença.

O Esplendor de Portugal

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O Esplendor de Portugal

De

António Lobo Antunes

Percurso literário aqui

O Esplendor de Portugal é um romance da autoria de António Lobo Antunes que desenrola com admirável mestria  o cenário, qual quadro impressionista, da colónia de Angola, no apogeu da colonização e no degradante período pós-colonial. Através das suas personagens, nomeadamente aquando do seu papel de narradores, somos levados a viajar no tempo e no espaço do que foram as suas vidas.

António Lobos Antunes  usa de um estilo próprio que faz dele um género único, que se caracteriza por um tipo de escrita densa e enfática, muito propícia a adensar os dramas humanos que projecta nas personagens por si criadas, tornando-as deste modo e  inequivocamente, em perfeitos candidatos  a utentes de um consultório psiquiátrico. Sem dúvida que António Lobo Antunes alia as suas duas facetas profissionais. O profissional de medicina psiquiátrica caminha de mãos dadas com o profissional da escrita.

Este livro centra-se na história de uma família que se desmembra quando os filhos de Isilda, o Carlos, o Rui e a Clarisse fugidos à violência e aos horrores da guerra civil em Angola, demandam para Portugal e se refugiam no pequeno apartamento da Ajuda, em Lisboa, até que chegou um dia em que, Carlos, o irmão mestiço, dominado pela intolerância e pelo ressentimento dos traumas antigos, expulsa os irmãos de casa. Porém, no dia 24 de Dezembro de 1995, Carlos sente-se invadido por uma profunda nostalgia, que lhe traz à memória os seus dois irmãos, e sem mais nem para quê, dá por si a ansiar que estes o acompanhem na noite da consoada. Na demora e na incerteza da presença dos irmãos, embrenha-se num mundo de recordações do que foi sua existência em Angola.

Através dos sentimentos e traumas desta família, avó, pais e  filhos, personagens que vão emergindo no decorrer da acção, que ora avança, ora recua no espaço temporal, vamos tomando conhecimento de quão horrível foi a guerra civil de Angola, que a deixou transformada numa colossal poça de sangue, tão devastada que  “já nem Deus lhe podia valer”.

A   carcomida avó, mãe de Isilda,  é-nos retratada como alguém que nutre  um profundo ódio aos pretos, que se estende ao Carlos, o seu neto, que não era neto, mas mestiço. Contudo, no seu leito de morte foi à preta Josélia a quem dedicou aquele que seria o seu derradeiro sopro de vida. Despeitada e amargurada pelos desgostos da vida, sofreu na pele a humilhação de ter sido rejeitada  pelo marido, que fugia dela como o diabo foge da cruz, privando-a dos ansiados consolos conjugais, refugia-se dos frequentes embaraços no seu tão peculiar gesto de contar as gotas para a tensão, e fá-lo com tal meticulosidade, que todos os que este acto presenciam, dão por si a contá-las também.

A mãe, Isilda, que comprou o Carlos, fruto da traição do marido que se havia envolvido com uma preta e de cuja insídia se vingará entregando-se ao chefe da polícia, ali mesmo no escritório da sua casa, ao alcance da curiosidade dos filhos e perante as barbas do desditoso marido, que transformado num bandalho, se auto-destrói numa profunda dedicação aos gargalos  e ao gorjeio do tilintar de copos. A filha, Clarisse, toda ela vaidade e só com olhos para os homens. Tão absorvida  nos ensejos da sedução, que foi incapaz de perceber que o farrapo humano que era o seu pai, a amava imensamente, para quem Clarisse sempre foi a sua doce menina, ela que só tinha ouvidos não para os apelos paternos, mas para as buzinadelas que da rua a chamavam. O Rui, que para sua desgraça nasceu  epiléptico, em contrapartida, o único da família que era feliz, talvez  por ser doido. Ele e a sua espingarda de chumbinhos  eram a dupla  mais temida das redondezas, já que teimava em apontar a tudo quanto mexia.

O Esplendor de Portugal, que a mim me pareceu o esplendor da vergonha é, enfim, uma obra que alberga no seu coração, as cruas e nuas imagens do horror, do sofrimento, da solidão, do desencanto e da desesperança. Do pior que a vida tem.